IHU
- O momento mais significativo do silĂȘncio de Jesus Ă© a PaixĂŁo. Aqui o silĂȘncio Ă© muito mais denso do que as palavras. Na PaixĂŁo, Jesus
fala poucas vezes, nunca para se defender, mas apenas para explicar a
sua identidade. O silĂȘncio Ă© uma palavra importante para explicar quem
ele Ă©.
A reflexão é do biblista e sacerdote italiano Bruno Maggioni , professor da Universidade Católica de Milão. O artigo foi publicado no jornal italiano Avvenire, 10-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando se menciona o silĂȘncio de Jesus, imediatamente o pensamento se volta para o silĂȘncio da PaixĂŁo.
E, na verdade, Ă© ali que o silĂȘncio atingiu o ponto mais alto de seu
poder expressivo. Ăs vezes, o silĂȘncio diz mais do que as palavras.
Mas os Evangelhos nĂŁo falam apenas do silĂȘncio da PaixĂŁo. HĂĄ tambĂ©m o silĂȘncio do homem que permanece em silĂȘncio diante de Jesus, ou porque a sua palavra o enche de admiração, ou porque a sua verdade o incomoda. E hĂĄ o silĂȘncio de Jesus diante de questĂ”es espĂșrias, ou inĂșteis, aqueles que fingem interrogĂĄ-lo. E hĂĄ o silĂȘncio que Jesus impĂ”e a quem gostaria de falar com ele antes de ter um vislumbre da novidade, que Ă© a Cruz.
Para a pergunta feita por Jesus na sinagoga de Cafarnaum
(Mc 3, 1-6), se era melhor, no sĂĄbado, salvar a vida ou destruĂ-la, os
fariseus, que estavam a observĂĄ-lo, nĂŁo responderam: "Mas eles se
calavam". NĂŁo Ă© o silĂȘncio de quem nĂŁo sabe e estĂĄ prestando atenção,
mas Ă© o silĂȘncio de quem observa para acusar. Ă o silĂȘncio do homem que,
nĂŁo tendo nenhuma razĂŁo para se opor a uma verdade que o incomoda,
recorre Ă violĂȘncia para silenciar o profeta que a pronuncia.
E, de fato, o episĂłdio termina dizendo que "os fariseus saĂram da
sinagoga e, junto com os herodianos, faziam um plano para matar Jesus"
(3, 6). Esse Ă© um silĂȘncio obstinado, imĂłvel, consciente, resultado de
um coração endurecido, que não vai se deixar, por motivo algum,
perturbar pela pergunta que o coloca em questĂŁo. Um silĂȘncio irritante,
um dos poucos casos em que os evangelistas escrevem a indignação de Jesus:
"Jesus então olhou ao seu redor com indignação, entristecido com a
dureza dos seus coraçÔes". Indignado e triste: a raiva e a compaixão.
Por trås da obstinação que desperta indignação, Jesus descobre o vazio dessas pessoas e sente pena delas. Um homem que se fecha para a escuta se fecha para a vida.
Diante de perguntas insinceras, Jesus opÔe o
silĂȘncio. Assim foi diante dos fariseus que lhe pediram um "sinal do
alto": "E, deixando-os, Jesus entrou de novo na barca e se dirigiu para a
outra margem" (Mc 8, 13).
Após a purificação do templo (Mc 11, 27-33), fazem a Jesus
uma pergunta importante ("Com que autoridade fazes tais coisas?"), mas
insincera; e ele nĂŁo responde. Ă inĂștil responder se nĂŁo houver
sinceridade na busca. Jesus nĂŁo estĂĄ disposto a ter um diĂĄlogo fingido.
Comovente e majestoso, em seguida, Ă© o silĂȘncio de Jesus diante de Herodes
(Lc 23, 8-11), que lhe interroga "com muitas perguntas". Mas essas sĂŁo
perguntas curiosas, superficiais, porque nĂŁo surgem do desejo da
verdade, mas da esperança de ver algum prodĂgio. E Jesus nĂŁo responde.
Mais do que os outros evangelhos, o de Marcos recorda vĂĄrias vezes que Jesus impunha o silĂȘncio Ă queles que queriam divulgar a sua messianidade.
NĂŁo permitia que os demĂŽnios falassem dele "porque o conheciam" (Mc 1,
25.34). Ordena ao leproso a não contar a ninguém (1, 44). Recomenda
vivamente que ninguĂ©m fique sabendo da ressurreição da filha de Jairo (5, 43). TambĂ©m dĂĄ aos discĂpulos ordens estritas para nĂŁo contar a ninguĂ©m sobre a sua messianidade (8, 30).
Mas, depois, diante do sumo sacerdote e do Sinédrio,
serĂĄ Ele mesmo que vai proclamĂĄ-la abertamente (14, 61). O fato Ă© que
as circunstĂąncias mudaram: antes, a sua messianidade corria o risco de
ser mal interpretada; durante a PaixĂŁo, nĂŁo mais. O Messias jĂĄ nĂŁo corre
o risco de ser separado da Cruz. Pelo contrĂĄrio, Ă© claro para todos que
a sua messianidade deve ser lida precisamente a partir da Cruz, seja
para reconhecĂȘ-la (15, 39), seja para rejeitĂĄ-la (15, 29-32). NĂŁo basta a
coragem do anĂșncio para fazer um verdadeiro discĂpulo. TambĂ©m deve
haver o espaço de silĂȘncio necessĂĄrio para compreender a novidade de Jesus.
Caso contrĂĄrio, fala-se d'Ele sem comunicar a novidade que surpreende,
diante da qual a indiferença não tem lugar (como sempre, ao invés,
diante do que Ă© dado como certo), mas apenas o sim e o nĂŁo.
Ă surpreendente o silĂȘncio de Jesus diante da morte de LĂĄzaro
(Jo 11). Jesus deixa cair no silĂȘncio a demanda das irmĂŁs: "Senhor, o
teu amigo estĂĄ doente" (11, 2). Jesus se cala diante de uma pergunta que
nasce da angĂșstia, de uma pergunta feita por uma pessoa amada. Esse
comportamento pode parecer desconcertante. Na realidade, Ă© o espelho do
silĂȘncio de Deus, um silĂȘncio que o prĂłprio Jesus encontra na sua oração
no GetsĂȘmani e na sua pergunta sobre a Cruz.
O relato do GetsĂȘmani (Mc 14, 32-42) Ă©, aparentemente, um diĂĄlogo. Jesus
fala cinco vezes, sempre dirigindo-se para alguĂ©m: aos discĂpulos ou ao
Pai. Mas ninguém lhe responde, quase como se fosse um monólogo. As
cinco palavras de Jesus caem no vazio, até mesmo a sua oração ao Pai.
Mas queremos comentar esse texto com um poema do padre Davide Turoldo. Os seus Ășltimos poemas foram reunidos em um livro intitulado Canti ultimi
(Ed. Garzanti, MilĂŁo, 1991). Ăltimos porque sĂŁo os Ășltimos cantos da
sua vida, mas Ășltimos tambĂ©m porque falam da experiĂȘncia Ășltima do
homem, a mais profunda, a mais reveladora: o homem diante da morte, o
homem na sua verdade nua. O Pe. Davide viveu a sua longa experiĂȘncia de dor com o olhar fixo na Cruz de Jesus.
Na sua poesia, a experiĂȘncia de Jesus e a sua prĂłpria se sobrepĂ”em, iluminando-se reciprocamente. Entre os seus poemas mais belos estĂĄ, talvez, esta releitura do GetsĂȘmani:
"Te invocava com nome muito terno:/ o rosto no chĂŁo / e pedras no chĂŁo
banhadas / com gotas de sangue:/ as mĂŁos seguravam punhados / de relva e
de lama: / repetia a oração do mundo:/ "Pai, Abba, se possĂvel"... / sĂł
um raminho de oliveira / balançava acima da sua cabeça / um silencioso
vento...".
O motivo do silĂȘncio de Deus Ă© recorrente na poesia de Turoldo: ele o entrevĂȘ na paixĂŁo de Jesus e
o encontra em si mesmo: "Mas nem um espinho Tu / tiraste da tua
coroa... e nem uma mĂŁo / despregaste do lenho...". A experiĂȘncia do
silĂȘncio de Deus nĂŁo fala da fraqueza da fĂ©, mas sim da profundidade e
da humanidade da fé, e leva para o centro do homem e da história, lå
onde Deus e o homem parecem se contradizer, onde Deus parece ausente ou
distraĂdo, onde a morte parece ter a Ășltima palavra sobre a vida e a
mentira, sobre a verdade. Mas, se compreendido no mistério de Cristo,
entĂŁo o silĂȘncio de Deus aparece na sua realidade, ou seja, como uma
forma diferente de falar.
De fato, no GetsĂȘmani, o Pai falou: nĂŁo com o milagre que liberta da morte, mas com a coragem de enfrentar a morte, atravessando-a. Se, no inĂcio, Jesus
estĂĄ angustiado e petrificado, no fim, apĂłs de ter rezado, Ele voltou a
ficar sereno e pronto: "Levantem-se! Vamos! Aquele que vai me trair jĂĄ
estĂĄ perto" (Mc 14, 42).
O momento mais significativo do silĂȘncio de Jesus Ă© a paixĂŁo. Aqui o silĂȘncio Ă© realmente mais denso do que as palavras. Na paixĂŁo, Jesus
fala poucas vezes, nunca para se defender, mas apenas para explicar a
sua identidade. O silĂȘncio Ă© uma palavra importante para explicar quem
Ele Ă©.
Solicitado pelo sumo sacerdote para responder às muitas acusaçÔes, Jesus
se cala (Mc 14, 60). Ă o silĂȘncio de quem, tambĂ©m na humilhação, ainda
conserva intacta a sua dignidade. Ă o silĂȘncio de quem estĂĄ lucidamente
consciente da insinceridade dos juĂzes, que fingem um interrogatĂłrio, jĂĄ
tendo decidido,na realidade, a condenação: Ă© inĂștil se defender. A
verdade se cala diante da violĂȘncia, nĂŁo porque nĂŁo tenha nada a dizer,
mas porque jĂĄ disse tudo e Ă© inĂștil dizer de novo. Acima de tudo, Ă© o silĂȘncio do justo, que, diante das acusaçÔes, nĂŁo se defende, porque colocou a sua confiança inteiramente no Senhor, que nĂŁo abandona.
Esse silĂȘncio de Jesus sugere diversas alusĂ”es ao Antigo Testamento.
A mais conhecida Ă© a de IsaĂas 53, 7: "Maltratado, aceitou a humilhação
e nĂŁo abriu a boca". Diante dos homens que o condenam por causa da sua
justiça, o silĂȘncio do servo do Senhor expressa dignidade; e diante de
Deus expressa aceitação e confiança: "Estou em silĂȘncio, nĂŁo abro a
boca, porque Ă©s Tu quem ages" (Sl 39, 10). Esse silĂȘncio de Jesus
foi retomado depois e interpretado em um hino da primeira comunidade
cristã: "Ultrajado, não respondia com ultrajes; sofrendo, não ameaçava
vingança, mas confiava naquele que julga com justiça" (1Pd 2, 23).
Nos relatos da paixĂŁo, ao lado dos personagens expressamente
nomeados, estĂĄ sempre presente - aparentemente na sombra, mas na
realidade muito luminosa - a figura do Justo sofredor, que Jesus
revive e engrandece. Ă uma figura sem tempo, presente em todos os
momentos da histĂłria e em todos os lugares. Jesus Ă© a sua gigantografia.
Ă a figura do homem que anuncia a verdade e, justamente por isso, Ă©
atingido. Como jĂĄ observado, uma caracterĂstica importante dessa figura Ă©
o silĂȘncio. NĂŁo expressa indiferença, mas dignidade. E Ă© um silĂȘncio
que fala mais do que muitas palavras.
A cena dos ultrajes (Mc 14, 65) Ă© de surpreendente densidade. NĂŁo hĂĄ
uma palavra a mais, nem um adjetivo, nem uma redundĂąncia, nem alguma
aparĂȘncia de retĂłrica. Mas, justamente por isso, a figura de Jesus insultado
e espancado é esculpida ao vivo, como em uma pedra. Em uma espécie de
jogo de "cabra-cega", com o rosto coberto, golpeado, Jesus tem que
adivinhar quem bate nele. Ele afirmou ser o Messias e profeta, que o
demonstre!
Mas Jesus estĂĄ em silĂȘncio e nĂŁo adivinha. E assim,
de um lado, a pretensĂŁo de ser o Messias, que estĂĄ sentado Ă direita de
Deus e que vem sobre as nuvens do cĂ©u; por outro, o silĂȘncio de um pobre
homem que nem sequer (parece) sabe quem o fere. A evidĂȘncia contra a
pretensão, aqui estå o contraste que tanto faz rir. Mas aqui também estå
a razĂŁo que faz crer. O silĂȘncio de Jesus, de fato, pode ser lido de
duas maneiras: como a prova da total improcedĂȘncia da sua pretensĂŁo
messiùnica, ou como a revelação da surpreendente e fascinante novidade
do seu ser Messias. Um Messias que estĂĄ no jogo e adivinha quem o
golpeia é uma absoluta obviedade. Ao invés, um Messias que estå no jogo
do seu jeito e nĂŁo adivinha quem o fere, mas permanece em silĂȘncio
revela toda a sua diferença, uma diferença teológica, a diferença que
existe entre o modo com que o homem imagina Deus e o modo como Deus
realmente Ă©.
No relato joanino do processo romano, tambĂ©m se menciona o silĂȘncio de Jesus
(19, 9). Ele respondeu à pergunta sobre a sua realeza, até mesmo
demorando para deixar clara a diversidade. A novidade de Jesus nĂŁo pode
abrir mĂŁo da palavra que a explica. Mas tambĂ©m precisa do silĂȘncio.
Jesus permanece em silĂȘncio nos dois momentos culminantes: quando a sua
realeza Ă© ridicularizada (19, 1-3) e quando ela Ă© mostrada em pĂșblico
(19, 5). Justamente quando a sua realeza, ridicularizada e rejeitada,
tinha maior necessidade de uma palavra ou de um sinal, Jesus nĂŁo diz uma
palavra nem faz um gesto.
Mas a anotação explĂcita do silĂȘncio de Jesus, JoĂŁo
reserva para a pergunta mais importante (19, 9): "De onde tu és?". Aqui
nĂŁo estĂĄ mais em discussĂŁo simplesmente a sua realeza, mas sim o
mistério mais profundo da sua origem. E sobre isso Jesus se cala. Não colabora, deixando Pilatos
sozinho diante da pergunta que o perturba: ou porque Ă© inĂștil dizer,
uma vez que tudo jĂĄ foi dito; ou porque a resposta deve ser buscada nos
fatos que Pilatos vĂȘ e nĂŁo nas palavras que ele poderia ouvir; ou porque
Ă© uma pergunta que sĂł pode ser respondida por quem a faz. Diante do
mistério que o interpela e o inquita, cada homem deve encontrar pessoalmente a resposta. à uma decisão pessoal que não pode ser delegada a ninguém, uma resposta que nem Deus pode dar no seu lugar.
Nos relatos de Marcos (15, 24-39) e Mateus
(27, 32-50) em torno do Crucificado hĂĄ muitos que falam: os
transeuntes, os sacerdotes, os guardas, os dois ladrĂ”es. Todos falam de Jesus e contra Jesus, mas Ele se cala. Dirige uma pergunta para o seu Deus ("Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?") que cai no silĂȘncio. Morreu com um grito sem palavras: "Mas Jesus deu um forte grito e expirou". E, no fundo, mais nĂtida do que nunca, a grande figura do Justo sofredor, evocada pelo Salmo 22.
O Pai falarå, mas depois, com a ressurreição. A Cruz é o momento em que cabe ao Filho manifestar toda a sua confiança no Pai.
Cabe ao crucificado manifestar até que ponto um Filho de Deus
compartilha a experiĂȘncia do silĂȘncio que o homem encontra diante do seu
Deus. Cabe ao Crucificado revelar até que ponto chega o amor de Deus.
Toda essa surpreendente revelação estĂĄ contida no silĂȘncio de Jesus na Cruz.
Nenhum comentĂĄrio:
Postar um comentĂĄrio
SĂł serĂĄ aceito comentĂĄrio que esteja de acordo com o artigo publicado.