sexta-feira, 21 de março de 2014

O silĂȘncio de Jesus no centro da histĂłria

IHU - O momento mais significativo do silĂȘncio de Jesus Ă© a PaixĂŁo. Aqui o silĂȘncio Ă© muito mais denso do que as palavras. Na PaixĂŁo, Jesus fala poucas vezes, nunca para se defender, mas apenas para explicar a sua identidade. O silĂȘncio Ă© uma palavra importante para explicar quem ele Ă©.
A reflexĂŁo Ă© do biblista e sacerdote italiano Bruno Maggioni , professor da Universidade CatĂłlica de MilĂŁo. O artigo foi publicado no jornal italiano Avvenire, 10-03-2014. A tradução Ă© de MoisĂ©s Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando se menciona o silĂȘncio de Jesus, imediatamente o pensamento se volta para o silĂȘncio da PaixĂŁo. E, na verdade, Ă© ali que o silĂȘncio atingiu o ponto mais alto de seu poder expressivo. Às vezes, o silĂȘncio diz mais do que as palavras.
Mas os Evangelhos nĂŁo falam apenas do silĂȘncio da PaixĂŁo. HĂĄ tambĂ©m o silĂȘncio do homem que permanece em silĂȘncio diante de Jesus, ou porque a sua palavra o enche de admiração, ou porque a sua verdade o incomoda. E hĂĄ o silĂȘncio de Jesus diante de questĂ”es espĂșrias, ou inĂșteis, aqueles que fingem interrogĂĄ-lo. E hĂĄ o silĂȘncio que Jesus impĂ”e a quem gostaria de falar com ele antes de ter um vislumbre da novidade, que Ă© a Cruz.
Para a pergunta feita por Jesus na sinagoga de Cafarnaum (Mc 3, 1-6), se era melhor, no sĂĄbado, salvar a vida ou destruĂ­-la, os fariseus, que estavam a observĂĄ-lo, nĂŁo responderam: "Mas eles se calavam". NĂŁo Ă© o silĂȘncio de quem nĂŁo sabe e estĂĄ prestando atenção, mas Ă© o silĂȘncio de quem observa para acusar. É o silĂȘncio do homem que, nĂŁo tendo nenhuma razĂŁo para se opor a uma verdade que o incomoda, recorre Ă  violĂȘncia para silenciar o profeta que a pronuncia.
E, de fato, o episĂłdio termina dizendo que "os fariseus saĂ­ram da sinagoga e, junto com os herodianos, faziam um plano para matar Jesus" (3, 6). Esse Ă© um silĂȘncio obstinado, imĂłvel, consciente, resultado de um coração endurecido, que nĂŁo vai se deixar, por motivo algum, perturbar pela pergunta que o coloca em questĂŁo. Um silĂȘncio irritante, um dos poucos casos em que os evangelistas escrevem a indignação de Jesus: "Jesus entĂŁo olhou ao seu redor com indignação, entristecido com a dureza dos seus coraçÔes". Indignado e triste: a raiva e a compaixĂŁo. Por trĂĄs da obstinação que desperta indignação, Jesus descobre o vazio dessas pessoas e sente pena delas. Um homem que se fecha para a escuta se fecha para a vida.
Diante de perguntas insinceras, Jesus opĂ”e o silĂȘncio. Assim foi diante dos fariseus que lhe pediram um "sinal do alto": "E, deixando-os, Jesus entrou de novo na barca e se dirigiu para a outra margem" (Mc 8, 13).
ApĂłs a purificação do templo (Mc 11, 27-33), fazem a Jesus uma pergunta importante ("Com que autoridade fazes tais coisas?"), mas insincera; e ele nĂŁo responde. É inĂștil responder se nĂŁo houver sinceridade na busca. Jesus nĂŁo estĂĄ disposto a ter um diĂĄlogo fingido.
Comovente e majestoso, em seguida, Ă© o silĂȘncio de Jesus diante de Herodes (Lc 23, 8-11), que lhe interroga "com muitas perguntas". Mas essas sĂŁo perguntas curiosas, superficiais, porque nĂŁo surgem do desejo da verdade, mas da esperança de ver algum prodĂ­gio. E Jesus nĂŁo responde.
Mais do que os outros evangelhos, o de Marcos recorda vĂĄrias vezes que Jesus impunha o silĂȘncio Ă queles que queriam divulgar a sua messianidade. NĂŁo permitia que os demĂŽnios falassem dele "porque o conheciam" (Mc 1, 25.34). Ordena ao leproso a nĂŁo contar a ninguĂ©m (1, 44). Recomenda vivamente que ninguĂ©m fique sabendo da ressurreição da filha de Jairo (5, 43). TambĂ©m dĂĄ aos discĂ­pulos ordens estritas para nĂŁo contar a ninguĂ©m sobre a sua messianidade (8, 30).
Mas, depois, diante do sumo sacerdote e do SinĂ©drio, serĂĄ Ele mesmo que vai proclamĂĄ-la abertamente (14, 61). O fato Ă© que as circunstĂąncias mudaram: antes, a sua messianidade corria o risco de ser mal interpretada; durante a PaixĂŁo, nĂŁo mais. O Messias jĂĄ nĂŁo corre o risco de ser separado da Cruz. Pelo contrĂĄrio, Ă© claro para todos que a sua messianidade deve ser lida precisamente a partir da Cruz, seja para reconhecĂȘ-la (15, 39), seja para rejeitĂĄ-la (15, 29-32). NĂŁo basta a coragem do anĂșncio para fazer um verdadeiro discĂ­pulo. TambĂ©m deve haver o espaço de silĂȘncio necessĂĄrio para compreender a novidade de Jesus. Caso contrĂĄrio, fala-se d'Ele sem comunicar a novidade que surpreende, diante da qual a indiferença nĂŁo tem lugar (como sempre, ao invĂ©s, diante do que Ă© dado como certo), mas apenas o sim e o nĂŁo.
É surpreendente o silĂȘncio de Jesus diante da morte de LĂĄzaro (Jo 11). Jesus deixa cair no silĂȘncio a demanda das irmĂŁs: "Senhor, o teu amigo estĂĄ doente" (11, 2). Jesus se cala diante de uma pergunta que nasce da angĂșstia, de uma pergunta feita por uma pessoa amada. Esse comportamento pode parecer desconcertante. Na realidade, Ă© o espelho do silĂȘncio de Deus, um silĂȘncio que o prĂłprio Jesus encontra na sua oração no GetsĂȘmani e na sua pergunta sobre a Cruz.
O relato do GetsĂȘmani (Mc 14, 32-42) Ă©, aparentemente, um diĂĄlogo. Jesus fala cinco vezes, sempre dirigindo-se para alguĂ©m: aos discĂ­pulos ou ao Pai. Mas ninguĂ©m lhe responde, quase como se fosse um monĂłlogo. As cinco palavras de Jesus caem no vazio, atĂ© mesmo a sua oração ao Pai.
Mas queremos comentar esse texto com um poema do padre Davide Turoldo. Os seus Ășltimos poemas foram reunidos em um livro intitulado Canti ultimi (Ed. Garzanti, MilĂŁo, 1991). Últimos porque sĂŁo os Ășltimos cantos da sua vida, mas Ășltimos tambĂ©m porque falam da experiĂȘncia Ășltima do homem, a mais profunda, a mais reveladora: o homem diante da morte, o homem na sua verdade nua. O Pe. Davide viveu a sua longa experiĂȘncia de dor com o olhar fixo na Cruz de Jesus.
Na sua poesia, a experiĂȘncia de Jesus e a sua prĂłpria se sobrepĂ”em, iluminando-se reciprocamente. Entre os seus poemas mais belos estĂĄ, talvez, esta releitura do GetsĂȘmani: "Te invocava com nome muito terno:/ o rosto no chĂŁo / e pedras no chĂŁo banhadas / com gotas de sangue:/ as mĂŁos seguravam punhados / de relva e de lama: / repetia a oração do mundo:/ "Pai, Abba, se possĂ­vel"... / sĂł um raminho de oliveira / balançava acima da sua cabeça / um silencioso vento...".
O motivo do silĂȘncio de Deus Ă© recorrente na poesia de Turoldo: ele o entrevĂȘ na paixĂŁo de Jesus e o encontra em si mesmo: "Mas nem um espinho Tu / tiraste da tua coroa... e nem uma mĂŁo / despregaste do lenho...". A experiĂȘncia do silĂȘncio de Deus nĂŁo fala da fraqueza da fĂ©, mas sim da profundidade e da humanidade da fĂ©, e leva para o centro do homem e da histĂłria, lĂĄ onde Deus e o homem parecem se contradizer, onde Deus parece ausente ou distraĂ­do, onde a morte parece ter a Ășltima palavra sobre a vida e a mentira, sobre a verdade. Mas, se compreendido no mistĂ©rio de Cristo, entĂŁo o silĂȘncio de Deus aparece na sua realidade, ou seja, como uma forma diferente de falar.
De fato, no GetsĂȘmani, o Pai falou: nĂŁo com o milagre que liberta da morte, mas com a coragem de enfrentar a morte, atravessando-a. Se, no inĂ­cio, Jesus estĂĄ angustiado e petrificado, no fim, apĂłs de ter rezado, Ele voltou a ficar sereno e pronto: "Levantem-se! Vamos! Aquele que vai me trair jĂĄ estĂĄ perto" (Mc 14, 42).
O momento mais significativo do silĂȘncio de Jesus Ă© a paixĂŁo. Aqui o silĂȘncio Ă© realmente mais denso do que as palavras. Na paixĂŁo, Jesus fala poucas vezes, nunca para se defender, mas apenas para explicar a sua identidade. O silĂȘncio Ă© uma palavra importante para explicar quem Ele Ă©.
Solicitado pelo sumo sacerdote para responder Ă s muitas acusaçÔes, Jesus se cala (Mc 14, 60). É o silĂȘncio de quem, tambĂ©m na humilhação, ainda conserva intacta a sua dignidade. É o silĂȘncio de quem estĂĄ lucidamente consciente da insinceridade dos juĂ­zes, que fingem um interrogatĂłrio, jĂĄ tendo decidido,na realidade, a condenação: Ă© inĂștil se defender. A verdade se cala diante da violĂȘncia, nĂŁo porque nĂŁo tenha nada a dizer, mas porque jĂĄ disse tudo e Ă© inĂștil dizer de novo. Acima de tudo, Ă© o silĂȘncio do justo, que, diante das acusaçÔes, nĂŁo se defende, porque colocou a sua confiança inteiramente no Senhor, que nĂŁo abandona.
Esse silĂȘncio de Jesus sugere diversas alusĂ”es ao Antigo Testamento. A mais conhecida Ă© a de IsaĂ­as 53, 7: "Maltratado, aceitou a humilhação e nĂŁo abriu a boca". Diante dos homens que o condenam por causa da sua justiça, o silĂȘncio do servo do Senhor expressa dignidade; e diante de Deus expressa aceitação e confiança: "Estou em silĂȘncio, nĂŁo abro a boca, porque Ă©s Tu quem ages" (Sl 39, 10). Esse silĂȘncio de Jesus foi retomado depois e interpretado em um hino da primeira comunidade cristĂŁ: "Ultrajado, nĂŁo respondia com ultrajes; sofrendo, nĂŁo ameaçava vingança, mas confiava naquele que julga com justiça" (1Pd 2, 23).
Nos relatos da paixĂŁo, ao lado dos personagens expressamente nomeados, estĂĄ sempre presente - aparentemente na sombra, mas na realidade muito luminosa - a figura do Justo sofredor, que Jesus revive e engrandece. É uma figura sem tempo, presente em todos os momentos da histĂłria e em todos os lugares. Jesus Ă© a sua gigantografia. É a figura do homem que anuncia a verdade e, justamente por isso, Ă© atingido. Como jĂĄ observado, uma caracterĂ­stica importante dessa figura Ă© o silĂȘncio. NĂŁo expressa indiferença, mas dignidade. E Ă© um silĂȘncio que fala mais do que muitas palavras.
A cena dos ultrajes (Mc 14, 65) Ă© de surpreendente densidade. NĂŁo hĂĄ uma palavra a mais, nem um adjetivo, nem uma redundĂąncia, nem alguma aparĂȘncia de retĂłrica. Mas, justamente por isso, a figura de Jesus insultado e espancado Ă© esculpida ao vivo, como em uma pedra. Em uma espĂ©cie de jogo de "cabra-cega", com o rosto coberto, golpeado, Jesus tem que adivinhar quem bate nele. Ele afirmou ser o Messias e profeta, que o demonstre!
Mas Jesus estĂĄ em silĂȘncio e nĂŁo adivinha. E assim, de um lado, a pretensĂŁo de ser o Messias, que estĂĄ sentado Ă  direita de Deus e que vem sobre as nuvens do cĂ©u; por outro, o silĂȘncio de um pobre homem que nem sequer (parece) sabe quem o fere. A evidĂȘncia contra a pretensĂŁo, aqui estĂĄ o contraste que tanto faz rir. Mas aqui tambĂ©m estĂĄ a razĂŁo que faz crer. O silĂȘncio de Jesus, de fato, pode ser lido de duas maneiras: como a prova da total improcedĂȘncia da sua pretensĂŁo messiĂąnica, ou como a revelação da surpreendente e fascinante novidade do seu ser Messias. Um Messias que estĂĄ no jogo e adivinha quem o golpeia Ă© uma absoluta obviedade. Ao invĂ©s, um Messias que estĂĄ no jogo do seu jeito e nĂŁo adivinha quem o fere, mas permanece em silĂȘncio revela toda a sua diferença, uma diferença teolĂłgica, a diferença que existe entre o modo com que o homem imagina Deus e o modo como Deus realmente Ă©.
No relato joanino do processo romano, tambĂ©m se menciona o silĂȘncio de Jesus (19, 9). Ele respondeu Ă  pergunta sobre a sua realeza, atĂ© mesmo demorando para deixar clara a diversidade. A novidade de Jesus nĂŁo pode abrir mĂŁo da palavra que a explica. Mas tambĂ©m precisa do silĂȘncio. Jesus permanece em silĂȘncio nos dois momentos culminantes: quando a sua realeza Ă© ridicularizada (19, 1-3) e quando ela Ă© mostrada em pĂșblico (19, 5). Justamente quando a sua realeza, ridicularizada e rejeitada, tinha maior necessidade de uma palavra ou de um sinal, Jesus nĂŁo diz uma palavra nem faz um gesto.
Mas a anotação explĂ­cita do silĂȘncio de Jesus, JoĂŁo reserva para a pergunta mais importante (19, 9): "De onde tu Ă©s?". Aqui nĂŁo estĂĄ mais em discussĂŁo simplesmente a sua realeza, mas sim o mistĂ©rio mais profundo da sua origem. E sobre isso Jesus se cala. NĂŁo colabora, deixando Pilatos sozinho diante da pergunta que o perturba: ou porque Ă© inĂștil dizer, uma vez que tudo jĂĄ foi dito; ou porque a resposta deve ser buscada nos fatos que Pilatos vĂȘ e nĂŁo nas palavras que ele poderia ouvir; ou porque Ă© uma pergunta que sĂł pode ser respondida por quem a faz. Diante do mistĂ©rio que o interpela e o inquita, cada homem deve encontrar pessoalmente a resposta. É uma decisĂŁo pessoal que nĂŁo pode ser delegada a ninguĂ©m, uma resposta que nem Deus pode dar no seu lugar.
Nos relatos de Marcos (15, 24-39) e Mateus (27, 32-50) em torno do Crucificado hĂĄ muitos que falam: os transeuntes, os sacerdotes, os guardas, os dois ladrĂ”es. Todos falam de Jesus e contra Jesus, mas Ele se cala. Dirige uma pergunta para o seu Deus ("Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?") que cai no silĂȘncio. Morreu com um grito sem palavras: "Mas Jesus deu um forte grito e expirou". E, no fundo, mais nĂ­tida do que nunca, a grande figura do Justo sofredor, evocada pelo Salmo 22.
O Pai falarĂĄ, mas depois, com a ressurreição. A Cruz Ă© o momento em que cabe ao Filho manifestar toda a sua confiança no Pai. Cabe ao crucificado manifestar atĂ© que ponto um Filho de Deus compartilha a experiĂȘncia do silĂȘncio que o homem encontra diante do seu Deus. Cabe ao Crucificado revelar atĂ© que ponto chega o amor de Deus. Toda essa surpreendente revelação estĂĄ contida no silĂȘncio de Jesus na Cruz.

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