Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
A fala não foi dada ao homem para ocultar seus
pensamentos, mas para expressar a verdade.1
No entanto, para espalhar seus erros, os hereges escondem o fundo de seus
pensamentos na obscuridade, para serem compreendidos apenas pelos iniciados.
Ambigüidade
e heresia
Em geral, do mesmo modo como as corujas e outras
aves de rapina noturnas aproveitam a escuridão da noite para surpreender suas
presas, assim também o herege usa as sombras da ambigüidade para enganar os
fiéis. Foi o que fizeram os hereges jansenistas, tentando fugir da condenação,
ao longo de suas sucessivas metamorfoses. Mas seus ardis não escaparam à
vigilância do Papa Pio VI [quadro acima],
que na Bula Auctorem Fidei, de 28 de
agosto de 1794, denuncia assim os promotores do Sínodo de Pistoia2: “Eles conheciam
bem a arte maliciosa dos inovadores, que temendo ofender os ouvidos dos
católicos, esforçavam-se por dissimular seus ardis sob palavras fraudulentas,
para que o erro, oculto entre sentido e significado (São Leão Magno, Carta 129
da edição de Baller), fosse mais fácil de insinuar-se nas mentes e, uma vez
alterada a verdade da sentença por meio de uma breve adição ou variante, se
consiga que o testemunho que devia trazer a salvação, depois de uma mudança sutil,
conduza à morte”.3?
In Dubio pro Reo?
A ambigüidade protege um herege da condenação? Evita que ele seja denunciado? Alguns católicos
acreditam que, se uma proposição é capaz de uma boa interpretação, apesar de
seu manifesto mau significado, nenhuma medida canônica pode ser tomada contra
ela ou seu autor. “In dubio pro reo”,
dizem eles. De fato, caso se trate
de uma única declaração ambígua, ou de apenas algumas, elas podem ser
atribuídas à má escolha de palavras, à improvisação desajeitada, à fadiga, ou a
alguma outra explicação razoável desse tipo. No entanto, quando as
ambigüidades são contínuas, repetidas e, além disso, acompanhadas de atos,
gestos, atitudes e omissões que confirmam a interpretação errônea das
declarações, podemos legitimamente concluir que esse é o seu verdadeiro
significado. Neste caso, não há mais dúvida quanto ao seu significado.
Portanto, o axioma em “in dubio pro reo”
não se aplica4.
Desmascarando
a heresia camuflada “sob o véu da ambigüidade”
Portanto, como afirma o
Papa Pio VI, é necessário desmascarar a heresia camuflada “sob o véu da
ambigüidade”. Isso se faz expondo seu verdadeiro significado: “Contra esses ardis,
que infelizmente se renovam em todas as épocas, não se estabeleceram meios
melhores do que expor as sentenças que, sob o véu da ambigüidade, envolvem uma
perigosa discrepância de sentidos, apontando o sentido perverso sob o qual se
encontra o erro que a Doutrina Católica condena.”5
É precisamente o que São Pio X fez com o Modernismo. Em sua encíclica Pascendi Dominici Gregis [capa acima], o Papa mostrou como as
declarações ambíguas, confusas e suspeitas dos modernistas formavam um sistema
coerente e herético quando analisado como um todo e da perspectiva de sua
filosofia imanentista subjacente: “E visto
que os modernistas (tal é o nome com que vulgarmente e com razão são chamados)
com astuciosíssimo engano costumam apresentar suas doutrinas não coordenadas e
juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, afim de
serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato estão firmes e
constantes, convém, Veneráveis Irmãos, primeiro exibirmos aqui as mesmas
doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só
corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remédios
para debelar-lhes os efeitos perniciosos.”6 Além de desmascarar o
significado herético subjacente das declarações ambíguas, devem ser analisados os
atos, gestos, atitudes e omissões de quem é suspeito de heresia para
verificar se confirmam ou não o desvio doutrinário e a intenção de favorecer o
erro.
Heresia
e ódio a Deus
Para entender melhor a
gravidade do ensino ambíguo, devemos considerar a gravidade do pecado de
heresia. Em nossos dias dominados pelo relativismo, e com o
diálogo ecumênico e interreligioso apresentado como a nova norma da fé, as noções
de verdade e erro, bem e mal estão se tornando cada vez mais indistintas. Com
isso, a noção da seriedade da heresia e suas conseqüências está praticamente
perdida. O pecado de heresia participa do mais grave dos
pecados, o ódio a Deus. Porque sendo a heresia uma rejeição da verdade
revelada, constitui um ato de revolta contra Deus, por cuja autoridade nós acreditamos
no que Ele revelou. Ao rejeitar a verdade revelada, o herege se substitui a
Deus. São Tomás de Aquino explica que “a heresia é uma espécie de incredulidade, pertencente àqueles que
professam a fé cristã, mas corrompem seus dogmas”.7 A heresia “torna-se
voluntária pelo fato de um homem odiar a verdade que lhe é proposta”. Assim,
“é evidente que a incredulidade deriva
sua pecaminosidade do ódio de Deus,8de Quem a verdade é o objeto da fé.9
Por sua vez, o ódio a Deus “é o mais
grave dos pecados”, e “é
principalmente um pecado contra o Espírito Santo.”10
“Sem
fé, é impossível agradar a Deus”
A heresia destrói a vida sobrenatural, pois separa o
herege da fonte da graça, que é Deus. O herege “pretende concordar com Cristo, mas falha em sua escolha daquelas
coisas em que ele concorda com Cristo, porque ele não escolhe o que Cristo
realmente ensinou, mas as sugestões da própria mente.”11 Assim, mesmo que o herege aceite algumas verdades
reveladas, sua crença não é um ato de obediência a Deus, mas de adesão ao que escolheu.
Deste modo, ele substitui
a vontade divina pela sua própria. Sua fé é puramente humana, sem valor
sobrenatural. Agora, São Paulo ensina — ensinamento que é repetido
pelo Magistério da Igreja12
— que “sem fé é impossível agradar a
Deus” (Heb 11,6). Portanto, ao aderir à heresia e abandonar a fé
sobrenatural, o herege rompe com Deus, perde a vida sobrenatural e segue o
caminho da condenação eterna.
O
herege deve ser evitado
Dada a extrema gravidade do pecado de heresia e o
perigo de ser influenciado por um herege, o Apóstolo fez uma séria advertência
aos Gálatas: “Mas, ainda que nós mesmos
ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho
anunciado, seja anátema.”(Gálatas 1,8). Ele completa seu pensamento na Epístola a Tito: “Ao homem herege, depois de uma e outra
admoestação, evita-o, sabendo que esse tal está pervertido, e peca, estando já
em si mesmo condenado.” (Tito 3,10-11). Da mesma forma, São João, o Apóstolo do Amor Divino,
ordenou: “Todo aquele que prevarica, e não persevera na doutrina de
Cristo, não tem a Deus. […] Se alguém vem ter convosco, e não traz esta
doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis.” (2 João 9-10).
Ambigüidade
e ódio a Deus
A ambigüidade doutrinal e moral — especialmente em
atos e documentos do Magistério — é algo muito sério, que deve ser tratado com
a mesma severidade que uma heresia professada abertamente. Ou antes, ainda mais
rigorosamente, uma vez que faz o seu caminho sub-repticiamente. A ambigüidade
esconde a heresia e leva à heresia. Em outras palavras, leva os fiéis ao ódio a
Deus.
__________
Notas:
1. “A
palavra foi dada ao homem para esconder seus pensamentos.” Esta frase
cínica é atribuída a Charles-Maurice de Talleyrand (1754-1838), o notório bispo
apóstata, que se transformou em político e diplomata, a serviço da Revolução
Francesa e de Napoleão Bonaparte.
2. O Sínodo de Pistoia foi um sínodo
diocesano de 1786, convocado pelo Bispo Scipione de’ Ricci. Ele queria reformar
a Igreja Católica segundo as doutrinas do jansenismo.
3. Pio VI,
Bula Auctorem Fidei, 28 de agosto de 1794,
http://w2.vatican.va/content/plus-vi/it/documents/bolla-auctorem-fidei-28-agosto-1794.html.
(Nossa tradução).
4. Ver Arnaldo Vidigal Xavier da
Silveira, Não só a heresia pode ser
condenada pela autoridade eclesiástica, Catolicismo n° 203, novembro/1967.
7. São
Tomás de Aquino, Suma Teológica,
II-II q. 11, a, 1, c.
8. Alguém poderia objetar que o homem
não pode odiar a Deus como seu supremo bem e supremo fim, o que é verdade. Mas
o Doutor Angélico explica que “pode haver
alguém que odeia a Deus, porque ele O considera como alguém que proíbe pecados
e inflige punições” (Ibid., II-II, 34, 1).
12. Concílio de
Trento, “Decreto sobre a Justificação, cap. 7; Concílio Vaticano I, Dei
Filius, cap. 3, “Sobre a Fé”, nº 5.
13. Como assinalado
por Pio VI: “Se essa maneira tortuosa e
errônea de dissertar é viciosa em qualquer manifestação oratória, ela não deve
de nenhum modo ser praticada em um Sínodo, cujo primeiro mérito deve consistir
em adotar no ensinamento uma expressão tão clara e límpida que não deixe margem
a objeções perigosas”. Pio VI, Auctorem
Fidei.
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