quarta-feira, 5 de junho de 2019

S. Paulo adaptou os ensinamentos de Jesus sobre o matrimónio? O "Privilégio Paulino"

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“A Igreja tem vindo a adaptar os ensinamentos de Jesus ao longo da histĂłria pelo chamado «privilĂ©gio Paulino» (e na sua extensĂŁo no que ficou conhecido como o «privilĂ©gio petrino»)".


É o que afirma, num artigo recente, publicado na revista Brotéria, o Pe. Miguel Almeida, S.J.
Mas esta afirmação Ă© imprecisa, porque o “privilĂ©gio Paulino” nĂŁo se aplica propriamente aos ensinamentos de Jesus sobre o matrimĂ´nio vivido na luz e na graça do seu Evangelho, aos quais S. Paulo se refere em 1 CorĂ­ntios 7, 10-11, mas sim ao matrimĂ´nio “natural”, instituĂ­do por Deus desde o inĂ­cio da Criação, e concretamente ao matrimĂ´nio entre um homem e uma mulher «pagĂŁos», dos quais um se converte Ă  fĂ© cristĂŁ e Ă© batizado, e o outro permanece na infidelidade.

O caso Ă© este:

Quando duas pessoas não batizadas se casam validamente, existe entre elas o vínculo natural. Admitamos, porém, que uma delas se converte à fé e recebe o Batismo. Se a outra parte continua não batizada e torna insustentável a vida conjugal, a Igreja reconhece a dissolução desse vínculo natural, para que a parte batizada possa contrair novo matrimônio, devendo este ser necessariamente sacramental.
Esta prática baseia-se no chamado Privilégio Paulino, segundo o que Apóstolo S. Paulo escreve em 1 Coríntios 7, 12-16:

"Digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem esposa não cristã, e esta consente em habitar com ele, não a repudie. E, se alguma mulher tem marido não cristão, e este consente em habitar com ela, não o repudie. Pois o marido não cristão é santificado pela esposa, e a esposa não cristã é santificada pelo marido cristão. Se não fosse assim, os vossos filhos seriam impuros, quando na realidade são santos. Porém, se a parte não cristã quer separar-se, separe-se! Neste caso, o irmão ou a irmã não estão mais ligados; foi para viver em paz que Deus vos chamou. Porque, porventura sabes tu, ó mulher, se salvarás o teu marido? Ou sabes tu, ó marido, se salvarás a tua mulher?"
Nada nos permite afirmar, portanto, que S. Paulo adapte os ensinamentos de Jesus relativamente ao matrimĂ´nio na nova ordem do Reino de Deus, por Ele instituĂ­do, embora restrinja o alcance da indissolubilidade do matrimĂ´nio “natural”, que Ă© relativizada em favor da fĂ©.
Ainda menos o impropriamente chamado “privilĂ©gio petrino” se propõe adaptar quaisquer ensinamentos de Jesus relativos ao matrimĂ´nio celebrado e plenamente vivido por um homem e uma mulher no âmbito da Nova Aliança, mas apenas se aplica a diversos casos de matrimĂ´nios nĂŁo sacramentais.

Assim se explica no texto seguinte:

PRIVILÉGIO PAULINO E PRIVILÉGIO PETRINO
PRIVILÉGIO PAULINO (Privilegium paulinum)
O privilégio Paulino chama-se assim pelo seu fundamento no texto Paulino da 1ª Carta aos Coríntios (7,12-15).


S. Paulo fala como apóstolo, e tenta decidir uma questão concreta não decidida antes de ele intervir. Ainda que não se trate de um privilégio em sentido jurídico estrito, contém uma exceção à lei geral da indissolubilidade. Tal exceção tem lugar quando a um matrimônio válido e legítimo, contraído originariamente na infidelidade, falta o pressuposto da estabilidade por culpa do cônjuge não-batizado, que quer separar-se, e não consente à parte convertida a prática pacífica da religião cristã.
Em tal caso, o cônjuge cristão não fica ligado ao vínculo matrimonial, podendo separar-se e contrair novas núpcias. Os motivos que apoiam esta exceção são a paz religiosa e a liberdade de espírito que Deus quer para o cristão.
Trata-se, em substância, de um matrimĂ´nio entre dois nĂŁo-batizados, no qual um se converte, e recebe o Batismo, e o outro rejeita a fĂ© e a coabitação pacĂ­fica com o fiel; tal matrimĂ´nio, ainda que consumado, dissolve-se “em favor da fĂ©” (CĂłdigo de Direito CanĂ´nico, cân. 1143). O “favor da fĂ©” protege o valor supremo da salus animarum (a salvação das almas), da qual diz o cân. 1752 “que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema” e a causa justa, fundada em motivos e valores espirituais.
O matrimônio dissolve-se sem necessidade de recorrer à Santa Sé, como ocorre noutros casos, quando se verificam as condições previstas (cân. 1142).
O privilĂ©gio Paulino nĂŁo tem lugar no matrimĂ´nio entre uma parte batizada e outra infiel. É necessário que a parte infiel se separe fĂ­sica ou moralmente, rejeitando coabitar pacificamente com a parte fiel sine contumelia Creatoris (“sem ofensa do Criador”). A parte fiel nĂŁo deve ser causa responsável do abandono da parte infiel. Se esta consente na coabitação pacĂ­fica, o matrimĂ´nio nĂŁo se dissolve, e a parte fiel pode manter a esperança fundada da conversĂŁo da infiel, ou poderá recorrer Ă  simples separação manete vinculo (permanecendo o vĂ­nculo).
No caso previsto no Privilégio Paulino, o vínculo matrimonial contraído na infidelidade dissolve-se, quando a parte fiel contrai novamente matrimônio, ficando a parte infiel livre para também contrair outro.
As interpelações que deve fazer a parte convertida Ă  infiel constituem um acto legĂ­timo, e sĂŁo necessárias para a validade (cân. 1144 § 1); e devem ser feitas depois do batismo da parte convertida e antes da conversĂŁo da outra parte, dentro, portanto, do tempo no qual o uso do PrivilĂ©gio Paulino Ă© válido e lĂ­cito (cân. 1144 § 2). O cânon permite que, por causa grave, possam fazer-se as interpelações antes do baptismo da parte que se converte e que, tanto antes como depois do baptismo, possam dispensar-se as interpelações, quando nĂŁo se possam fazer, ou se prevĂŞ com certeza moral que serĂŁo inĂşteis.
A forma de fazer as interpelações pode ser solene ou jurídica, e privada. A primeira é feita pelo Ordinário local em forma sumária e extraconjugal, concedendo, se for solicitado, à parte infiel um prudente espaço de tempo para refletir antes de tomar a sua decisão; com a advertência de que, se nesse tempo não se obtém resposta, presume-se que é negativa, isto é, que se nega a coabitar pacificamente. A segunda, privada, tem lugar quando, não podendo fazê-la o Ordinário, a faz a parte convertida, e é válida e lícita, contanto que conste no foro externo. Há casos em que pode ser suficiente o interrogatório feito por um missionário, a declaração de duas testemunhas ou de um só católico digno de fé e sob juramento ou, finalmente, também um escrito autêntico da parte infiel em que declare que não quer converter-se nem habitar pacificamente (cân. 1145).
O vĂ­nculo do matrimĂ´nio legĂ­timo nĂŁo se dissolve com o batismo de uma das partes, de tal modo que, se esta prefere nĂŁo contrair novas nĂşpcias com uma parte catĂłlica, a parte infiel permanece ligada ao matrimĂ´nio anterior.
O vínculo dissolve-se indiretamente, pois fica também livre a parte infiel, com o batismo da parte que se converte. Esta pode usar de seu direito de contrair matrimônio sacramental, enquanto durem as condições que exige o cânon, ainda que, sendo cristã, tenha vivido dentro do matrimônio com o seu consorte infiel.
Se, durante este tempo, mudam as circunstâncias, e a parte infiel se converte e batiza, já não cabe novo matrimônio e, se ambos estavam separados, estão obrigados a restabelecer a sua vida conjugal, a não ser que, existindo causa grave e justa e sendo o seu matrimônio simplesmente rato e não consumado, obtenha a dispensa que pode ser dada neste caso (cân. 1142).
Pode suceder que a parte que se converteu, afastada do cônjuge infiel em virtude do Privilégio Paulino, queira contrair novo matrimônio com outra parte não-católica, batizada ou não. Neste caso, a parte católica necessita de uma concessão especial do Ordinário local. Para esta concessão, deve existir causa grave, posto que existe o perigo de perversão do recém-convertido. Se, a juízo do Ordinário, não existe causa grave, é necessário recorrer à Santa Sé, sob pena de nulidade. Estamos então nos matrimônios mistos, aos quais se devem aplicar os câns. 1124-1128 (e 1147).

PRIVILÉGIO PETRINO (Privilegium petrinum)

A expressĂŁo PrivilĂ©gio Petrino surge por analogia com a de “PrivilĂ©gio Paulino”. Se queremos conservar um certo sentido preciso e autĂ´nomo da expressĂŁo, devemos afirmar que se refere ao supremo poder vigário de Pedro e dos seus sucessores para dissolver toda a classe de matrimĂ´nios, exceto os compreendidos sob o PrivilĂ©gio Paulino, e desde logo o matrimĂ´nio, enquanto rato e consumado, o qual “nĂŁo pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa alĂ©m da morte” (cân. 1141).
Surge entĂŁo a dificuldade de considerar ambos os PrivilĂ©gios como dois modos distintos e duas possibilidades jurĂ­dicas concretas de dissolução matrimonial, esquecendo que o PrivilĂ©gio Paulino nĂŁo pode nĂŁo estar compreendido no Petrino e que, portanto, se introduz uma distinção puramente artificial e exposta a confusões. Acrescente-se a dificuldade que gera o termo “PrivilĂ©gio” que, nĂŁo sendo mais que o supremo poder vigário, nĂŁo Ă©, de modo algum, “privilĂ©gio”. (No máximo, para manter a analogia de termos, poderia falar-se de “PrivilĂ©gio Piano” (S. Pio V), “PrivilĂ©gio Gregoriano” (GregĂłrio XIII) e, para evitar confusões, “PrivilĂ©gio de Paulo III”, aludindo Ă s suas cĂ©lebres Constituições, recolhidas no cân. 1125 do CĂłdigo de 1917 (cf. cân. 1148 do CĂłdigo de Direito CanĂ´nico de 1983).
Uma dificuldade prática, digna de se ter em conta Ă© que, referindo-se ao privilĂ©gio petrino, existem tantas sentenças quanto os autores e que, silenciadas todas (sĂŁo, pelo menos, dez distintas), parece mais conveniente prescindir desta pouco afortunada expressĂŁo, e referir-se simplesmente ao sumo poder vigário da Igreja para dissolver o matrimĂ´nio, mantendo-se o sentido estrito do “PrivilĂ©gio Paulino” como um dos modos tĂ­picos desse poder e excluindo sempre o Ăşnico matrimĂ´nio que na prática Ă© absolutamente indissolĂşvel: o rato e, enquanto tal, consumado.
NĂŁo parece conveniente identificar, nem tampouco incluir, o PrivilĂ©gio Petrino no Privilegium fidei, (privilĂ©gio da fĂ©), nem sequer entendido num sentido muito amplo que o identifique com a dissolução in favorem fidei, (a favor da fĂ©), porque, alĂ©m de ficar incluĂ­do o “PrivilĂ©gio Paulino” sob esta epĂ­grafe, nĂŁo Ă© sempre a fĂ© em sentido estrito a protegida, senĂŁo que entra tambĂ©m a salus animarum (salvação das almas) como fim da Igreja e como suprema lei jurĂ­dica da mesma (cân. 1752).
Por esta justa causa da salus animarum, a Igreja, em virtude de seu supremo poder vigário, pode dissolver inclusive o vínculo de um matrimônio legítimo (entre dois infiéis), mesmo que este matrimônio tenha sido consumado. Este poder pode ver-se compreendido dentro do Privilégio Petrino, porém entendendo este como o poder do Vigário de Cristo para dissolver, pelo bem das almas, qualquer vínculo natural, ainda que consumado, não sacramental.
No Código de Direito Canônico não figura, com bom critério, a designação de Privilégio Petrino, que tão-pouco é usada nos documentos da Santa Sé. A partir de Pio XII, são vários os matrimônios puramente legítimos que foram dissolvidos.

Fonte:
Carlos Corral Salvador - Dicionário de direito canĂ´nico", trad. brasileira, Edições Loyola, SĂŁo Paulo, Brasil, 2ÂŞ ed., 1997, pp. 605 – 607 (texto adaptado)

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