terça-feira, 9 de setembro de 2025

Lex Orandi e a ruptura eclesial: uma breve crítica teológica e canônica ao artigo 1º dos Custódios Traditionis

 

 

 

 

Resumo: este breve artigo analisa criticamente o artigo 1o dos Custos da Tradição Motuproprio (2021), que afirma que os livros litúrgicos reformados por Paulo VI e João Paulo II constituem “a única expressão da lex orandi do Rito Romano”. Esta declaração, se interpretada como exclusiva e obrigatória, implica uma ruptura objetiva com a tradição litúrgica orgânica da Igreja, contradiz o Magistério anterior e introduz um princípio teologicamente instável: a obsolescência de formas litúrgicas anteriores que durante séculos expressaram a fé católica. O ensaio mostra como essa posição pode gerar uma forma de cisma latente, não por aqueles que preservam a liturgia tradicional, mas por aqueles que negam sua legitimidade eclesial e teológica.

1. Introdução: uma declaração sem precedentes e desestabilizadora

O artigo 1o dos Custos Motuproprio Traditionis, promulgado pelo Papa Francisco em 16 de julho de 2021, introduz um princípio nunca expresso de forma tão absoluta na história recente do Magistério:

“Os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II [...] são a única expressão da lex orandi do Rito Romano.”

A declaração não se limita a regular o uso do Missal de São Pio V (edição 1962), mas implicitamente exclui-o da própria definição da oração oficial da Igreja Latina. Surgiu, portanto, uma questão essencial: pode uma nova reforma litúrgica, por mais autorizada que seja, declarar-se o único portador da lex orandi, relegando a expressão anterior desatualizada, tolerada ou teologicamente ultrapassada? E se assim for, quais são as implicações doutrinais, canônicas e comunitárias de tal exclusão?

2. A lex orandi como princípio teológico vinculativo

Já nos séculos patrísticos, o lex orandi foi reconhecido como uma expressão normativa da lex credendi. Prospero d’Aquitaine resumido: ut legem credendi lex statuat supplicandi – a lei da oração estabelece a lei da fé. Não nos deparamos com uma fórmula devocional, mas um princípio dogmático: a liturgia não é um ornamento de fé, mas sua manifestação e veículo.

O Catecismo da Igreja Católica no número 1124 afirma:

A fé da Igreja precede a fé do crente, que é convidado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos.

A liturgia é, portanto, parte da Tradição Apostólica: cada forma aprovada, transmitida e vivida na Igreja constitui não só um modo ritual, mas um locus teológico. Eliminar uma forma venerável como o rito tridentino, negando-lhe a dignidade do lex orandi atual, significa minar a natureza orgânica da Tradição.

3. O magistério anterior: desenvolvimento orgânico, não substituição

O princípio do “progresso orgânico” da liturgia tem sido repetidamente reiterado pelo recente magistério.

3. 1 Pio XII: Mediator Dei (1947):

"A liturgia não pode ser considerada nem como um museu a ser preservado ou como um laboratório de experimentação. Ela cresce como uma árvore, da raiz da fé apostólica”.

3. 2 João XXIII – Rubricarum Instructum (1960):

“Confirmamos e ordenamos que o que a Tradição recebeu e transmitiu com veneração seja mantido intacto.”

3.3 Benedetto XVI – Summorum Pontificum (2007):

O que para as gerações anteriores era sagrado, mesmo para nós, permanece sagrado e grande, e não pode ser subitamente proibido ou julgado prejudicial.

Todas as reformas anteriores, até a de João XXIII, justificam-se não com uma ruptura, mas com uma continuidade: o que é adaptado, simplificado ou devolvido, permanece sempre interno ao desenvolvimento da Tradição. Nenhum Papa jamais disse que a reforma aboliu a validade teológica da forma anterior.

4. Contradição sistêmica: Se hoje não é mais lex orandi, ontem nunca tinha sido

Se for afirmado que a Missa Tridentina hoje não é mais uma expressão da lex orandi, é-se obrigada a concluir:

  • O que a Igreja tem expressado durante séculos uma fé liturgicamente deficiente ou imprópria;
  • ou que a fé pode ser expressa em formas mutuamente excludentes;
  • ou que o critério atual prevalece sobre o que foi transmitido, transformando a Traditio em uma decisão contingente.

Como Joseph Ratzinger escreveu:

Na liturgia, o que era verdade antes não pode tornar-se falso depois. (Relatório sobre a fé, 1985)

O risco, então, é introduzir uma hermenêutica da cesura, na qual a fé da Igreja não seja mais a guarda orgânica do depósito recebido, mas a reformulação como autoritária de acordo com os critérios pastorais do momento.

5. Risco de cisma litúrgico: diacrônico, não sincrônico

O cânon 751 do Código de Direito Canônico define o cisma como “responsável submissão ao Sumo Pontífice ou comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos”. No entanto, também pode-se levantar uma forma de cisma litúrgico diacrônico, ou uma ruptura entre a Igreja de hoje e a Igreja de ontem, se for negado que o que foi durante séculos lex orandi ainda pode ser.

Neste caso, não aqueles que celebram segundo a Tradição colocam-se fora de comunhão, mas aqueles que negam que a Tradição ainda está viva e legítima. Como escreveu Alcuin Reid:

Uma Igreja que se contradiz no culto se contradiz em sua identidade. (Desenvolvimento Orgânico da Liturgia, 2004)

E Bento XVI:

As divisões litúrgicas muitas vezes precedem as doutrinais, pois a lex orandi precede a lex credendi.

Negar a legitimidade litúrgica do Missal de 1962, sem formalmente declará-lo herético ou inválido, produz uma fratura silenciosa, mas profunda.

6. Consequências canônicas e teológicas do artigo 1

6.1 O poder papal e seus limites

O Papa goza de pleno poder em matéria litúrgica (cf. Sacrosanctum Concilium, 22), mas não arbitrariamente. O Concílio Vaticano I (Pastor Aeternus) afirma:

O Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de Pedro para manifestar uma nova doutrina, mas para que eles possam guardar santo e fielmente explicar a Revelação transmitida.

6.2 Validade, legalidade e marginalização do antigo rito

O Missal de 1962 é válido, ortodoxo e nunca formalmente revogado. O artigo 1o dos Custos da Tradição não o declara inválidos ou heréticos, mas não o priva de relevância regulatória. Isto gera uma forma de suspensão eclesial: o que é válido já não é expressão de comunhão.

6.3 Unidade visível e pluralidade ritual

A unidade da Igreja não se realiza na uniformidade litúrgica, mas em comunhão na verdade. A coexistência de diferentes ritos (por exemplo, católicos orientais, ambrosianos, dominicanos, etc.) nunca afetou a unidade eclesial. Por que, então, negar essa pluralidade dentro do Rito Romano?

7. Precedentes históricos e advertências eclesiais

Os monofisitas também se separaram para disputas litúrgicas. O Skew do Oriente foi favorecido por inovações no símbolo e adoração latina (por exemplo, Filioque (em inglês). A história ensina que as mudanças litúrgicas radicais, não ancoradas na Tradição, podem gerar fraturas duradouras.

No caso em apreço, a declaração do artigo 1.o, se absolutizada, estabelece uma ruptura entre o pré-conciliar e o lexndi pós-conciliar, criando um hiato de continuidade que nenhuma autoridade pode legitimar sem contradizer a sua identidade.

8 - O que se cal e o 8. Conclusão: Restaurar a comunhão na tradição viva

O artigo 1o dos Custórios da Tradição, tal como é formulado, introduz uma reviravolta e litúrgica e eclesiástica que corre o risco de minar a confiança na estabilidade da fé celebrada. A reforma litúrgica não pode tornar-se o critério exclusivo da catolicidade. A verdadeira reforma não elimina, mas não erradica. Ele não declara obsoleto as formas precedentes, mas interpreta-as à luz do único Mistério.

A resistência a essa lógica de exclusão não é a desobediência, mas o exercício do sensus fidei fidelium. Ele pede para não negar o que formou a santidade, a doutrina e a cultura da Igreja durante séculos. É uma fidelidade que não se opõe ao Papa, mas recorda-a ao vínculo sagrado da Tradição Apostólica.

Objeção 1: O artigo 1o não nega o valor do antigo rito, mas estabelece uma norma unitária para as necessidades pastorais.

Resposta:
Embora formulado como um ato disciplinar, o artigo 1 tem implicações teológicas porque declara que uma única forma (o Novus Ordo) é a única expressão da lex orandi do Rito Romano. A lex orandi, sendo uma expressão da lex credendi, não é uma ferramenta funcional de cuidado pastoral, mas um lugar teológico. Substituí-lo inevitavelmente implica que a forma anterior já não exprime adequadamente a fé da Igreja. Isso supera o escopo de uma simples norma disciplinar e escorrega para uma contradição doutrinária implícita.

Objeção 2: A afirmação do artigo 1o deve ser lida no contexto da unidade pós-conciliar, não como uma ruptura.

Resposta:
A unidade da Igreja não é obtida pela uniformidade, mas pela comunhão na verdade. O rito romano conhece uma pluralidade interna há séculos (rito de bebê, ambrosiano, cartuxo, etc.), sem essa ameaçadora unidade eclesial. Se o artigo 1 impõe uma exclusividade litúrgica absoluta, interrompe a natureza orgânica da Tradição, substituindo um princípio de fidelidade recebido por uma visão de “unidade por decreto”. A hermenêutica da reforma não pode ser separada da hermenêutica da continuidade.

Objeção 3: O Papa tem plena autoridade para determinar a forma ritual da Igreja.

Resposta:
Sim, mas a sua autoridade é vicária e não criativa. Como ensinado pelo Vaticano I (Pastor Aeternus), o Papa não recebe o Espírito Santo para revelar novas doutrinas, mas para guardar fielmente e explicar a Revelação. A autoridade litúrgica do Pontífice também está subordinada à Tradição recebida: ele pode regular, mas não abolir arbitrariamente as formas aprovadas e santificadas pelo uso secular e pela vida dos santos.

Objeção 4: O artigo 1.o é apenas uma medida disciplinar, sem valor doutrinal.

Resposta:
Esta distinção não se aplica no caso da liturgia. Uma vez que o lex orandi é um lugar teológico, toda exclusão normativa tem repercussões doutrinárias implícitas. Se dissermos que só o novo rito exprime a fé da Igreja hoje, declara implicitamente que o rito anterior já não a exprime: mas isto implica um juízo de conteúdo, não só de prática. A teologia católica não pode aceitar que um rito ortodoxo, aprovado por séculos, seja agora rebaixado como teologicamente inadequado, sem quebrar a Tradição.

Bibliografia essencial

  • Bento XVI, Summorum Pontificum (2007)
  • Francisco, Custos da Tradição (2021)
  • Catecismo da Igreja Católica, nn. 1066-1209, 1124
  • Pio XII, Mediator Dei (1947)
  • João XXIII, Rubricarum Instructum (1960)
  • Sacrosanctum Concilium, Vaticano II (1963)
  • Joseph Ratzinger, Relatório sobre a Fé (1985)
  • Alcuin Reid, O Desenvolvimento Orgânico da Liturgia (2004)
  • Dom Prosper Guéranger, L’Année Liturgique (1858)
  • John Henry Newman, Um Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã (1845)

 

Fonte - pellegrininellaverita


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