sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Código de barras» ou código Sacrum?

 

 

Por: Mons. Alberto José González Chaves 

 

Vários jovens padres  me enviaram um artigo, expressando-me seu desagrado e perplexidade. Como o autor me era completamente desconhecido e eu nunca havia lido aquela revista, não me interessei muito em lê-lo. No entanto, por insistência de outros clérigos, especialmente do sudeste da Espanha, finalmente o fiz. Era um texto muito simples. Não me incomodou, nem achei desproporcional a preocupação daqueles que me enviaram o artigo: que um texto de natureza pessoal (não teológico, nem mesmo doutrinal) pudesse fomentar uma compreensão horizontalista da Santa Missa, como se seu centro residisse mais na assembleia do que em Deus. 

As afirmações do artigo eram sempre introduzidas por alusões a experiências subjetivas: "Eu gosto", "Eu acredito", "quando vou", "Eu encontrei", "Eu sofro", "Eu aprecio". Isso me levou a interpretá-lo mais como um desabafo psicológico do que como ensinamento pastoral, do qual não oferecia qualquer indício. Não obstante, decidi escrever estas linhas, que não pretendem refutar opiniões (o grau mais baixo da verdade), e muito menos discutir gostos ou desgostos, mas reafirmar com serenidade teológica aquilo que a Igreja sempre acreditou sobre o Mistério Eucarístico: que a Missa é sacrifício, culto trinitário e presença real do Divino Mártir e Sacrificador do Calvário. 

I. A Missa, um “Código de Orientação” 

O Concílio de Trento definiu com luminosa clareza a natureza do augusto Sacrifício Eucarístico: 

“Neste divino sacrifício celebrado na Missa, o próprio Cristo, que outrora se ofereceu com sangue no altar da Cruz, é contido e imolado sem sangue.” (Concílio de Trento, Sessão XXII, Capítulo II; Denz. 1743-1748). 

E acrescentou: 

“Este sacrifício é verdadeiramente propiciatório e é oferecido não só pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades dos fiéis vivos, mas também pelos falecidos que morrem em Cristo.”

Daí se conclui que o valor da Santa Missa não depende da presença do povo, embora seja bom e desejável que o povo participe ativamente. O essencial não é a assembleia que celebra, mas Cristo que se oferece ao Pai no Espírito Santo, e em quem a Igreja também se oferece (cf. Pio XII, Mediator Dei, 118). 

O Concílio Vaticano II, longe de contradizer esta doutrina, reafirmou-a vigorosamente: 

“Nosso Salvador, na Última Ceia, instituiu o sacrifício eucarístico do seu Corpo e Sangue para perpetuar o sacrifício da Cruz ao longo dos séculos até a sua gloriosa volta” (Sacrosanctum Concilium, 47). 

Assim, o altar cristão não é um palco, nem uma mesa profana, nem um lugar de encontro, mas o Calvário reaberto na terra. 

A Missa é um ato de adoração trinitária. O sacerdote, agindo in persona Christi, oferece ao Pai a santa Vítima e, com ela, as orações e os sofrimentos de toda a Igreja. Nesse momento, cumpre-se o objetivo final de toda liturgia: gloria Dei et sanctificatio hominum — a glória de Deus e a santificação do homem. Portanto, segundo o último Concílio, a liturgia é o exercício do sacerdócio de Cristo. 

Esta, e nenhuma outra, é a sua verdadeira e autêntica definição. Se na Grécia antiga a liturgia era “obra do povo”, na Igreja Católica a Sagrada Liturgia é a Opus Dei: 

“Com razão, então, a liturgia é considerada o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo. Nela, sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação do homem, e assim o Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, a Cabeça e seus membros, exerce o culto público completo. Consequentemente, toda celebração litúrgica, sendo obra de Cristo Sacerdote e de seu Corpo, que é a Igreja, é uma ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo aspecto e no mesmo grau, não encontra paralelo em nenhuma outra ação da Igreja” (Sacrosanctum Concilium, 7). 

A Santa Missa realiza os quatro fins do sacrifício: 

  1. Ação de Graças (Eucaristia): pela redenção realizada por Cristo. 
  2. Adoração: porque no altar, Deus recebe a adoração da latria, a única e suprema adoração. 
  3. Reparação: porque a Vítima inocente se oferece pelos pecados do mundo. 
  4. Petição: ao implorar a misericórdia e a graça de Deus pelos vivos e pelos mortos.

Este sublime equilíbrio se dilui quando a Missa é apresentada apenas como uma “celebração comunitária” ou como um “serviço público”. Na realidade, a Santa Missa é obra de Deus, da qual o povo participa. É o ato mais sublime que acontece todos os dias na Terra. Nada se compara a ela. Em cada altar, visível ou oculto, Cristo renova o sacrifício de Seu Amor; os anjos se prostram; as almas do purgatório recebem alívio; os santos se unem em louvor; e a humanidade redimida oferece ao Pai o Coração de Seu Filho. 

Portanto, a Igreja ensina que a Missa tem valor infinito, mesmo quando celebrada sem os fiéis: porque não depende da observação humana, mas da presença ativa do Supremo e Eterno Sacerdote. 

Quando o sacerdote pronuncia as palavras da consagração no silêncio do altar, o tempo para, o Calvário se torna presente e o céu se abre. 

Ali, cumpre-se o propósito último do universo: que Deus seja adorado e glorificado em seu Filho pelo poder do Espírito Santo. 

A autêntica renovação litúrgica não consiste em multiplicar inovações, mas em voltar o nosso rosto para o Senhor. Não há ministério pastoral mais fecundo do que um altar centrado em Cristo, um sacerdote que age in persona Christi e um povo que adora, chora pelos seus pecados, dá graças e implora graças ao Deus Uno e Trino.

A liturgia não precisa de frases simplistas nem de metáforas fáceis e depreciativas. Ela precisa de silêncio, fé e sacralidade. 

Porque na Missa, realiza-se a maior coisa que pode acontecer na Terra: “Por Ele, com Ele e nEle, a Vós, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e a glória, pelos séculos dos séculos. Amém.” 

II. “Código Beneditino” 

Entre os grandes mestres contemporâneos da liturgia, Bento XVI profeticamente recordou a natureza teocêntrica da celebração eucarística. Em O Espírito da Liturgia, escreveu, ainda como Cardeal Ratzinger: 

“Quando sacerdote e fiéis olham na mesma direção — para o Senhor que vem, para o Oriente — expressa-se a verdadeira natureza da liturgia: não olhando uns para os outros, mas caminhando juntos em direção ao Senhor.” 

Essa orientação, tanto física quanto espiritual, não deriva de nostalgia arqueológica ou de um esteticismo ultrapassado, mas de uma teologia do Mistério: a liturgia não é um círculo fechado, mas uma abertura para o Deus transcendente. 

Por essa razão, o Papa Bento XVI propôs — como gesto de equilíbrio e clareza — que mesmo na celebração versus populum, um grande crucifixo ladeado por castiçais seja colocado no altar, para que o celebrante e os fiéis tenham um ponto de referência comum: o Senhor crucificado.

“O crucifixo não é um ornamento; é o sinal que torna visível a direção da liturgia. Nele se concentra a oração comum, e ele nos lembra que não estamos frente a frente, mas juntos diante dEle.” (O Espírito da Liturgia, III, 2). 

Este sinal restaura a sacralidade do altar, impedindo que o sacerdote se torne protagonista ou facilitador, evitando assim um clericalismo ridículo, e confere a Deus o lugar central. Se essa orientação se perde, a liturgia corre o risco de se dissolver num ato antropocêntrico, horizontal e autorreferencial — um círculo fechado tão tedioso que nem mesmo os esforços criativos mais incessantes e peregrinos conseguirão rompê-lo. 

O altar cristão não é medido por critérios estéticos ou arquitetônicos, mas pelo seu valor teológico: é o limiar entre o céu e a terra. Quando o crucifixo e os castiçais são colocados sobre ele, o objetivo não é a ornamentação, mas manifestar visivelmente o Mistério que ali se celebra, atenuando ao máximo o incômodo e invasivo personalismo clerical. 

O altar é trono e sepulcro, mesa e pedra do altar, memorial e presença. Ali, o mesmo Cristo do Gólgota é oferecido. Chamar ironicamente essa disposição tradicional de “código de barras” denota mais ignorância do que engenhosidade: não se tratam de linhas decorativas, mas da “geometria do mistério”. O que para alguns é um código, para a Igreja é uma hierarquia de símbolos: as velas, como orações ascendentes; a cruz, como eixo do universo reconciliado. 

III. O “Código Corporal” do Comungante 

Nas últimas décadas, juntamente com a simplificação dos altares, introduziu-se uma prática igualmente nova: receber a comunhão em pé, após uma procissão desajeitada, eufemisticamente e pomposamente chamada de “procissão”, supostamente a expressão exclusiva da condição de ser “homem pascal”. (Desculpem: homens e mulheres!). Isso leva à afirmação irada de que receber a comunhão de joelhos é um anacronismo ou uma negação do espírito pascal.

Tais afirmações carecem de fundamento na tradição litúrgica e na teologia sacramental. A Igreja jamais considerou o ato de ajoelhar-se um sinal inapropriado para o cristão ressuscitado; pelo contrário, sempre o viu como o gesto supremo de adoração, humildade e amor diante da Presença Real do Senhor. Isso foi verdade por muitos séculos e até muito recentemente, e não em todas as igrejas. Ninguém que tenha feito a Primeira Comunhão na década de 1960 pode dizer que nunca viu um comungatório. Sejamos honestos: naquela época, e ainda hoje, em muitas paróquias, crianças (e adultos também) recebem a Comunhão de joelhos. 

“Ajoelhar-se não é servilismo, mas expressão da liberdade redimida: quem se ajoelha diante de Deus não se ajoelha diante de nenhum poder do mundo.” (O Espírito da Liturgia, III, 4). 

A postura de ajoelhar-se expressa o que a língua não consegue conter: a alma reconhece-se como criatura diante do seu Criador, pecadora diante do Redentor e adoradora diante de seu Deus. 

Organizar a Comunhão como uma “procissão em pé” cria um efeito mais coreográfico do que teológico. A fé não se mede pelo movimento corporal, mas pela adoração interior. A antiga tradição da Igreja — Oriente e Ocidente — venera o momento da Comunhão com gestos de prostração, silêncio e recolhimento. O altar, longe de ser um obstáculo, é uma “arquitetura de corpo e alma”, uma linha de humildade onde o comungante, tomado pela “maravilha eucarística”, nas palavras de João Paulo II, vê o céu se curvando sobre ele. 

É verdade que o Concílio Vaticano II apelou à participação ativa dos fiéis. Mas essa participação não consiste primordialmente em falar ou mover-se, mas em adorar e oferecer-se, unindo-se interiormente ao sacrifício de Cristo. O grande Pio XII já o havia escrito alguns anos antes: 

“Que todos os fiéis compreendam que o seu dever principal e a sua maior dignidade consistem na participação no sacrifício eucarístico; e isto, não com um espírito passivo e negligente, ponderando e divagando sobre outras coisas, mas de modo tão intenso e ativo que se unam mais intimamente ao Sumo Sacerdote, segundo as palavras do Apóstolo: ‘Tenham em seus corações o mesmo modo de pensar que Jesus Cristo tinha’; e ofereçam este sacrifício juntamente com ele e por meio dele, e com ele ofereçam-se também” (Mediator Dei, 99). 

A liturgia, disse Bento XVI, não é uma invenção da comunidade, mas uma recepção do Mistério. Quanto mais se entra no silêncio, na reverência e na contemplação, mais se participa verdadeiramente. Não se trata de “fazer coisas”, mas de deixar que Deus as faça em nós. A liturgia é obra de Cristo; nós somos suas testemunhas e beneficiários. E nós também somos herdeiros, guardiões e zeladores daquilo que alguns chamam de "ritos antigos que nos são impostos pelos interesses privados de alguns, sem respeito, e que nos dividem". Prefiro acreditar que meus avós não estavam errados. 

Referências 

  1. Concílio de Trento, Sessão XXII, Doutrina do Sacrifício da Missa (Denz. 1738-1759). 
  2. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, n. 47-48. 
  3. Pio XII, Mediator Dei, n. 99-137. 
  4. Joseph Ratzinger – Bento XVI, O Espírito da Liturgia, Ed. Cristiandad, Madrid 2001. 
  5. Catecismo da Igreja Católica, n. 1362-1372, 1410-1419. 

  

Fonte - infovaticana


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