sábado, 16 de fevereiro de 2013

Pela fé somente?

avidasacerdotal



Caríssimos, venho aqui expor uma doutrina relativamente complicada, mas essencial para a vivência cristã. Tentarei ser o mais breve possível, de modo a mostrar por que nós católicos consideramos a doutrina da justificação pela fé somente como uma heresia que, no fundo, nega-nos a filiação e amizade divina.
Será apresentado em pontos: a) pelo batismo, a Trindade habita em nós, sendo tal habitação atribuída à Pessoa do Espírito Santo; b) a habitação nos faz filhos adotivos de Deus e partícipes de sua divindade; c) tal graça inicial, imerecida, nos faz possível de méritos sobrenaturais; e d) justificação enquanto recebimento da graça santificante e santificação enquanto processo contínuo de desenvolvimento.


a) A habitação da Trindade atribuída ao Espírito Santo pelo Batismo.

Nós sabemos que pelas Sagradas Escrituras, o Pai gera o Filho no Espírito Santo, conforme diz o Salmo 2,7: "Vou publicar o decreto do Senhor. Disse-me o Senhor: Tu és meu filho, eu hoje te gerei.". Nós não conseguimos entender o "hoje" expresso, já que pelo caráter de geração eterna, não nos entra na mente, senão em analogia de proporção da geração das coisas corpóreas. Sabemos também que essa geração é feita pelo amor, no qual o Pai põe toda sua afeição no Filho, como demonstra S. Lucas 3,22: "e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como uma pomba; e veio do céu uma voz: Tu és o meu Filho bem-amado; em ti ponho minha afeição." , e que o caráter desse amor é dar tudo que é do Pai ao Filho, conforme S. João 16, 15:  "Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse: Há de receber do que é meu, e vo-lo anunciará. " Daqui podemos entender então que o Pai gera o Filho no Espírito Santo, sendo a este atribuído o amor. 

Leiamos primeiramente tais versos: 

"Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim." (S. João 17, 21 ss)

Como a glória do Pai para o Filho é nos dada, então nós passamos a fazer parte, não por natureza, mas acidentalmente da geração do Filho pelo Pai no Espírito Santo. Tal glória é completamente superior a tudo que nós temos de natural, e, por isso, é analogicamente tomada como substância de nossa vida sobrenatural.  Se nós a perdêssemos, voltaríamos ao nada anterior, na miséria anterior. Quando a recebemos, nós passamos a ser chamados filhos de Deus e amigos de Deus. Tal como Jesus, ao instaurar o sacramento do batismo recebeu o Consolador, segundo a afeição do amor eterno do Pai no Espírito Santo, nós também recebemos tal amor, de uma maneira não igual ao Filho, mas semelhante.

b) A habitação da Trindade nos faz filhos adotivos de Deus e partícipes de sua divindade.

Somos partícipes de sua divindade, tal como diz na Santa Missa o Prefácio da Ascensão, “ut nos divinitatis suae tribueret esse participes”, segundo o que S. Paulo escreve aos Colossenses: "Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Tendes tudo plenamente nele, que é a cabeça de todo principado e potestade." (Colossenses 2, 9s).  

O Pai nos chama de filhos, não porque somos que nem o seu Filho gerado eternamente, que é Deus, tal como o Pai, mas porque nós passamos a dividir algo que é próprio do Pai. Quando nós fazemos uma escultura, não a chamamos de "filha", porque não transmitimos nada que nos é próprio de ser enquanto seres humanos, tal como fazemos com nossos filhos. Quando nós recebemos a presença do Espírito Santo pelo batismo, nós passamos a ser filhos, já que recebemos acidentalmente a sua divindade. Não nos tornamos Deus, mas como Deus. S. Agostinho já interpretava "Deus dos deuses", em sua Cidade de Deus, como Deus dos santos, já que por sua graça somos divinizados.

Mistério profundo é esse. A teologia católica firmou o nome de graça santificante o fundamento de tal divindade. Chamamo-la de habitual, pois reside em nós como um hábito. É estática, porque de tão superior a tudo, abre-nos à vida espiritual, que antes, pelo pecado original, era-nos negada. Com o batismo recebemos a graça santificante, as virtudes infusas (morais e teologais), e os dons do Espírito Santo.

c) Os méritos sobrenaturais são possíveis mediante a graça santificante.

Como somos divinizados pelo batismo, na presença do Espírito Santo, nós passamos a ser passíveis de méritos. Tais méritos não são iguais aos méritos naturais, porque a existência de tal fé depende da misericórdia divina, e não de ações humanas naturais, conforme diz S. Paulo: "Porque é gratuitamente que fostes salvos mediante a fé. Isto não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus." (Éfesos 2, 8). Mas passamos a ter méritos sobrenaturais, fundamentados na graça, conforme diz S. Pedro: "Que mérito teria alguém se suportasse pacientemente os açoites por ter praticado o mal? Ao contrário, se é por ter feito o bem que sois maltratados, e se o suportardes pacientemente, isto é coisa agradável aos olhos de Deus." (1 Pedro 2,20).

Nosso mérito enquanto cristão é um mérito de amor, tal como o da Trindade. O Pai dá tudo ao Filho, e aquele ama este. Mas o Filho também ama o Pai, em eterna gratidão. Ama o Pai até quando o sofrimento enquanto homem é vindouro e certo, tal como ocorre quando pede para afastar-lhe, se possível, o cálice. Quando nós agimos meritoriamente, direcionados pela virtude teologal da caridade, com auxílio das graças atuais que Deus nos dá, nós estamos amando-o livremente de volta, pelo qual passa a nos amar ainda com mais intensidade, mandando-nos mais graças atuais. Não é que nós merecemos algo daquele que é superior a nós enquanto humanos, mas enquanto amigos, enquanto amados. 

Tal é o fundamento porque nós consideramos o calvinismo uma heresia. Ela nega a possibilidade de sermos amigos e filhos de Deus, que amam livremente. Eis a Confissão de Westminster, na sessão sobre a Justificação: "Os que Deus chama eficazmente, também livremente justifica. Esta justificação não consiste em Deus infundir neles a justiça, mas em perdoar os seus pecados e em considerar e aceitar as suas pessoas como justas.". São perdoados os pecados e são aceitas como justas. Mas não amigos de Deus, não livres amantes de Deus.

Em sua noção de santificação, é ainda pior: "Os que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um novo coração e um novo espírito, são além disso santificados real e pessoalmente, pela virtude da morte e ressurreição de Cristo, pela sua palavra e pelo seu Espírito, que neles habita; o domínio do corpo do pecado é neles todo destruído, as suas várias concupiscências são mais é mais enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e mais vivificados e fortalecidos em todas as graças salvadores, para a prática da verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá a Deus." 

Perceba que no crescimento na santificação não há fundamento nenhum no amor de Cristo, no qual é meritório exatamente por Deus nos ter dado a sua divindade. É absolutamente necessário para qualquer mérito sobrenatural termos a sustentação na graça santificante. Ora, então não recebemos a graça pelas obras, mas a graça santificante diretamente de Deus, sendo ele o fundamento, o sustentáculo de toda nossa vida espiritual. 

Somos mantidos na graça santificante por graças atuais que recebemos decorrentes desses méritos. Por isso elas são importantes. O justo não vive só da fé, mas necessita de fé e obras, senão tal fé será morta, ou seja, será travada, estagnada no seu crescimento espiritual, a qual irá invariavelmente levar à perda da graça justificante por algum pecado mortal. Se não agimos em amizade com Deus, ele nos retira a graça eficaz que nos mantém em estado de graça. Podemos pecar mortalmente porque Deus quer ser amado em realidade, e tal só é possível em liberdade. E só em liberdade podemos ter méritos. Se a manutenção da graça fosse uma determinação absoluta, não sustentada na liberdade, jamais poderíamos ser tomados como divinos. 

d) Justificados por receber a graça santificante, santificados ao desenvolver tal graça.

Nós somos justificados ao receber a graça santificante, mas no início de nosso vida espiritual ela é ainda pouca enraizada. Como é um acidente, já que não altera a nossa substância, possui caráter de qualidade, que não pode ser aumentada em nível, mas em enraizamento. A santificação seria tornar aquilo que recebemos como parte de nossa pele em nossos ossos.

A santificação envolveria também a remoção de nossas imperfeições, seja por via de atos naturais pelas virtudes infusas (via ascética), seja pelos dons do Espírito Santo, por atos sobrenaturais (via mística). Ora, nós sabemos que a via mística se dá quando as moções do Espírito Santo são mais frequentes que os da vida ascética. Tal é completamente impossível com os reformados, já que a noite escura do espírito, situação essencial de uma purgação negativa das imperfeições mais profunda, é impossível.

Segundo a Confissão de Westminster, "os que verdadeiramente creem no Senhor Jesus e o amam com sinceridade, procurando andar diante dele em toda a boa consciência, podem, nesta vida, certificar-se de se acharem em estado de graça e podem regozijar-se na esperança da glória de Deus, nessa esperança que nunca os envergonhará.". 

Ora, tal situação evidentemente impede que haja a noite escura da alma, que é necessária para uma purgação sutil dos defeitos menores. Se não se ama a Deus até mesmo com a condenação do mundo e de si próprio, em sinceridade, não se pode chegar à santificação mais perfeita, de modo que a graça santificante possa agir sem entraves. Fica evidente tal fato por não haver santos de grande renome entre os reformados, sendo sinal de sua falta de catolicidade. Como poderia o Espírito Santo mover seus dons, se uma soberba espiritual trava-lhe o crescimento, por razão de um entendimento teológico herético e perigoso para a salvação?

Nós declaramos que a doutrina de justificação pela fé somente é considerada heresia por misericórdia a nossos irmãos separados, para que sejam mais perfeitos e possam atingir mais plenamente a santificação. Nós desejamos que sejam plenamente protestantes, como diz Peter Kreeft, e isso só é possível sendo inteiramente católicos.

Por isso só se pode manter-se justo por fé e obras, pois só se é justo buscando-se ser  cada vez mais santo, para melhor nos doarmos em amor a Deus, em cujos bens vivemos a plenitude.

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