avidasacerdotal
Caríssimos,
venho aqui expor uma doutrina relativamente complicada, mas essencial
para a vivência cristã. Tentarei ser o mais breve possível, de modo a
mostrar por que nós católicos consideramos a doutrina da justificação
pela fé somente como uma heresia que, no fundo, nega-nos a filiação e
amizade divina.
Será
apresentado em pontos: a) pelo batismo, a Trindade habita em nós, sendo
tal habitação atribuída à Pessoa do Espírito Santo; b) a habitação nos
faz filhos adotivos de Deus e partícipes de sua divindade; c) tal graça
inicial, imerecida, nos faz possível de méritos sobrenaturais; e d)
justificação enquanto recebimento da graça santificante e santificação
enquanto processo contínuo de desenvolvimento.
a) A habitação da Trindade atribuída ao Espírito Santo pelo Batismo.
Nós
sabemos que pelas Sagradas Escrituras, o Pai gera o Filho no Espírito
Santo, conforme diz o Salmo 2,7: "Vou publicar o decreto do Senhor.
Disse-me o Senhor: Tu és meu filho, eu hoje te gerei.". Nós não
conseguimos entender o "hoje" expresso, já que pelo caráter de geração
eterna, não nos entra na mente, senão em analogia de proporção da
geração das coisas corpóreas. Sabemos também que essa geração é feita
pelo amor, no qual o Pai põe toda sua afeição no Filho, como demonstra
S. Lucas 3,22: "e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea,
como uma pomba; e veio do céu uma voz: Tu és o meu Filho bem-amado; em
ti ponho minha afeição." , e que o caráter desse amor é dar tudo que é
do Pai ao Filho, conforme S. João 16, 15: "Tudo o que o Pai possui é
meu. Por isso, disse: Há de receber do que é meu, e vo-lo anunciará. "
Daqui podemos entender então que o Pai gera o Filho no Espírito Santo,
sendo a este atribuído o amor.
Leiamos primeiramente tais versos:
"Para
que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para
que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste.
Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um: eu
neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo
reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim." (S. João 17,
21 ss)
Como
a glória do Pai para o Filho é nos dada, então nós passamos a fazer
parte, não por natureza, mas acidentalmente da geração do Filho pelo Pai
no Espírito Santo. Tal glória é completamente superior a tudo que nós
temos de natural, e, por isso, é analogicamente tomada como substância
de nossa vida sobrenatural. Se nós a perdêssemos, voltaríamos ao nada
anterior, na miséria anterior. Quando a recebemos, nós passamos a ser
chamados filhos de Deus e amigos de Deus. Tal como Jesus, ao instaurar o
sacramento do batismo recebeu o Consolador, segundo a afeição do amor
eterno do Pai no Espírito Santo, nós também recebemos tal amor, de uma
maneira não igual ao Filho, mas semelhante.
b) A habitação da Trindade nos faz filhos adotivos de Deus e partícipes de sua divindade.
Somos partícipes de sua divindade, tal como diz na Santa Missa o Prefácio da Ascensão, “ut nos divinitatis suae tribueret esse participes”,
segundo o que S. Paulo escreve aos Colossenses: "Pois nele habita
corporalmente toda a plenitude da divindade. Tendes tudo plenamente
nele, que é a cabeça de todo principado e potestade." (Colossenses 2,
9s).
O
Pai nos chama de filhos, não porque somos que nem o seu Filho gerado
eternamente, que é Deus, tal como o Pai, mas porque nós passamos a
dividir algo que é próprio do Pai. Quando nós fazemos uma escultura, não
a chamamos de "filha", porque não transmitimos nada que nos é próprio
de ser enquanto seres humanos, tal como fazemos com nossos filhos.
Quando nós recebemos a presença do Espírito Santo pelo batismo, nós
passamos a ser filhos, já que recebemos acidentalmente a sua divindade.
Não nos tornamos Deus, mas como Deus. S. Agostinho já interpretava "Deus
dos deuses", em sua Cidade de Deus, como Deus dos santos, já que por
sua graça somos divinizados.
Mistério
profundo é esse. A teologia católica firmou o nome de graça
santificante o fundamento de tal divindade. Chamamo-la de habitual, pois
reside em nós como um hábito. É estática, porque de tão superior a
tudo, abre-nos à vida espiritual, que antes, pelo pecado original,
era-nos negada. Com o batismo recebemos a graça santificante, as
virtudes infusas (morais e teologais), e os dons do Espírito Santo.
c) Os méritos sobrenaturais são possíveis mediante a graça santificante.
Como
somos divinizados pelo batismo, na presença do Espírito Santo, nós
passamos a ser passíveis de méritos. Tais méritos não são iguais aos
méritos naturais, porque a existência de tal fé depende da misericórdia
divina, e não de ações humanas naturais, conforme diz S. Paulo: "Porque é
gratuitamente que fostes salvos mediante a fé. Isto não provém de
vossos méritos, mas é puro dom de Deus." (Éfesos 2, 8). Mas passamos a
ter méritos sobrenaturais, fundamentados na graça, conforme diz S.
Pedro: "Que mérito teria alguém se suportasse pacientemente os açoites
por ter praticado o mal? Ao contrário, se é por ter feito o bem que sois
maltratados, e se o suportardes pacientemente, isto é coisa agradável
aos olhos de Deus." (1 Pedro 2,20).
Nosso
mérito enquanto cristão é um mérito de amor, tal como o da Trindade. O
Pai dá tudo ao Filho, e aquele ama este. Mas o Filho também ama o Pai,
em eterna gratidão. Ama o Pai até quando o sofrimento enquanto homem é
vindouro e certo, tal como ocorre quando pede para afastar-lhe, se
possível, o cálice. Quando nós agimos meritoriamente, direcionados pela
virtude teologal da caridade, com auxílio das graças atuais que Deus nos
dá, nós estamos amando-o livremente de volta, pelo qual passa a nos
amar ainda com mais intensidade, mandando-nos mais graças atuais. Não é
que nós merecemos algo daquele que é superior a nós enquanto humanos,
mas enquanto amigos, enquanto amados.
Tal
é o fundamento porque nós consideramos o calvinismo uma heresia. Ela
nega a possibilidade de sermos amigos e filhos de Deus, que amam
livremente. Eis a Confissão de Westminster, na sessão sobre a
Justificação: "Os
que Deus chama eficazmente, também livremente justifica. Esta
justificação não consiste em Deus infundir neles a justiça, mas em
perdoar os seus pecados e em considerar e aceitar as suas pessoas como
justas.". São perdoados os pecados e são aceitas como justas. Mas não
amigos de Deus, não livres amantes de Deus.
Em sua noção de santificação, é ainda pior: "Os
que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um novo
coração e um novo espírito, são além disso santificados real e
pessoalmente, pela virtude da morte e ressurreição de Cristo, pela sua
palavra e pelo seu Espírito, que neles habita; o domínio do corpo do
pecado é neles todo destruído, as suas várias concupiscências são mais é
mais enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e mais vivificados e
fortalecidos em todas as graças salvadores, para a prática da
verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá a Deus."
Perceba
que no crescimento na santificação não há fundamento nenhum no amor de
Cristo, no qual é meritório exatamente por Deus nos ter dado a sua
divindade. É absolutamente necessário para qualquer mérito sobrenatural
termos a sustentação na graça santificante. Ora, então não recebemos a
graça pelas obras, mas a graça santificante diretamente de Deus, sendo
ele o fundamento, o sustentáculo de toda nossa vida espiritual.
Somos
mantidos na graça santificante por graças atuais que recebemos
decorrentes desses méritos. Por isso elas são importantes. O justo não
vive só da fé, mas necessita de fé e obras, senão tal fé será morta, ou
seja, será travada, estagnada no seu crescimento espiritual, a qual irá
invariavelmente levar à perda da graça justificante por algum pecado
mortal. Se não agimos em amizade com Deus, ele nos retira a graça eficaz
que nos mantém em estado de graça. Podemos pecar mortalmente porque
Deus quer ser amado em realidade, e tal só é possível em liberdade. E só
em liberdade podemos ter méritos. Se a manutenção da graça fosse uma
determinação absoluta, não sustentada na liberdade, jamais poderíamos
ser tomados como divinos.
d) Justificados por receber a graça santificante, santificados ao desenvolver tal graça.
Nós
somos justificados ao receber a graça santificante, mas no início de
nosso vida espiritual ela é ainda pouca enraizada. Como é um acidente,
já que não altera a nossa substância, possui caráter de qualidade, que
não pode ser aumentada em nível, mas em enraizamento. A santificação
seria tornar aquilo que recebemos como parte de nossa pele em nossos
ossos.
A
santificação envolveria também a remoção de nossas imperfeições, seja
por via de atos naturais pelas virtudes infusas (via ascética), seja
pelos dons do Espírito Santo, por atos sobrenaturais (via mística). Ora,
nós sabemos que a via mística se dá quando as moções do Espírito Santo
são mais frequentes que os da vida ascética. Tal é completamente
impossível com os reformados, já que a noite escura do espírito,
situação essencial de uma purgação negativa das imperfeições mais
profunda, é impossível.
Segundo
a Confissão de Westminster, "os que verdadeiramente creem no Senhor
Jesus e o amam com sinceridade, procurando andar diante dele em toda a
boa consciência, podem, nesta vida, certificar-se de se acharem em
estado de graça e podem regozijar-se na esperança da glória de Deus,
nessa esperança que nunca os envergonhará.".
Ora,
tal situação evidentemente impede que haja a noite escura da alma, que é
necessária para uma purgação sutil dos defeitos menores. Se não se ama a
Deus até mesmo com a condenação do mundo e de si próprio, em
sinceridade, não se pode chegar à santificação mais perfeita, de modo
que a graça santificante possa agir sem entraves. Fica evidente tal fato
por não haver santos de grande renome entre os reformados, sendo sinal
de sua falta de catolicidade. Como poderia o Espírito Santo mover seus
dons, se uma soberba espiritual trava-lhe o crescimento, por razão de um
entendimento teológico herético e perigoso para a salvação?
Nós
declaramos que a doutrina de justificação pela fé somente é considerada
heresia por misericórdia a nossos irmãos separados, para que sejam mais
perfeitos e possam atingir mais plenamente a santificação. Nós
desejamos que sejam plenamente protestantes, como diz Peter Kreeft, e
isso só é possível sendo inteiramente católicos.
Por
isso só se pode manter-se justo por fé e obras, pois só se é justo
buscando-se ser cada vez mais santo, para melhor nos doarmos em amor a
Deus, em cujos bens vivemos a plenitude.
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