[domtotal]
Por Juan Masiá, SJ
Aproxima-se o Sínodo e reiteram-se as propostas a
favor e contra a revisão da doutrina e das práticas eclesiais sobre a
acolhida sacramental de pessoas em novas núpcias após o divórcio. Mas
antes de argumentar a favor ou contra, repensemos o tema central da
fidelidade à promessa, ponto de partida anterior às doutrinas teológicas
e prescrições canônicas sobre a indissolubilidade do vínculo.
Para cuidar da fidelidade e proteger sua fragilidade, vamos refletir
sobre a união esponsal como dom e tarefa. A sinfonia do “sim, quero” dos
cônjuges, desenvolve-se em quatro tempos: promessa interpessoal, acordo
social, símbolo sacramental e tarefa biográfico-familiar.
Para fazer essa proposta, não bastará um simples post, mas será
preciso alongar-se desta vez em forma de artigo. Na linguagem dos
canonistas designa-se como “defesa do vínculo” a incumbência jurídica de
protegê-lo. Mas a tarefa humana e eclesial de proteger o enlace
conjugal (ou, em seu caso, o desenlace) é mais ampla. Compete, pelo
menos, a três instâncias: a consciência responsável dos cônjuges, as
instituições protetoras da justiça e o cuidado pastoral-sacramental das
pessoas na vida das comunidades fiéis. Situemos a questão indo além do
debate sobre a validez de um vínculo jurídico ou de uma doutrina sobre a
indissolubilidade (para algumas teologias, intocável; para outras,
mutável e que deve evoluir).
O problema não se resolve nem negando nem permitindo o acesso aos
sacramentos. É preciso rever a evolução histórica da vida sacramental, a
maneira distorcida de entender a confissão, a comunhão, a penitência, o
matrimônio, a potestade reconciliadora, etc. Sem fazer essa revisão não
serviria para nada nem permitir o que até agora não se permitia, nem
tampouco proibi-lo.
Vamos dar um exemplo concreto. Disse o teólogo X que não se deve
admitir à comunhão esse casal porque sua convivência é pecaminosa.
Argúi-lhe o teólogo Y dizendo que sim, que deve ser admitido, porque
Deus não se cansa de perdoar. Mas, é preciso perguntar tanto a um como a
outro: e quem disse a vocês que esse casal está convivendo em pecado?
Como diziam os medievais em suas controvérsias: com o devido respeito,
nego a premissa maior (salva reverentia, nego maiorem). Mas temo que
tenhamos muito medo de pôr em dúvida premissas maiores...
Produz-se confusão nos debates sobre matrimônio e divórcio,
convivência e separações, nulidades e anulações, reconhecimento do
divórcio e novas núpcias civis, assim como sobre a aceitação,
discernimento e acompanhamento de tais situações por parte da comunidade
eclesial. Para evitá-las será preciso articular a relação entre os
aspectos éticos, legais, religiosos e biográficos do cuidado da
fidelidade e da responsabilidade com relação à premissa.
A sinfonia do consentimento conjugal desenvolve-se em quatro tempos,
correspondentes: 1) o aspecto interpessoal do consentimento como
promessa; 2) a expressão legal, como contrato; 3) o aspecto
ritual-comunitário, simbólico, sacramental; e, 4) o aspecto temporal e
biográfico-familiar.
Que instâncias protegem a promessa em seus quatro tempos? Em
primeiro lugar, a garantia e a proteção dessa promessa é
responsabilidade da consciência dos cônjuges no terreno da ética
interpessoal, “promessa anterior à promessa” (Ricoeur).
Em segundo lugar, é competência do direito amparar o contrato civil e o aspecto institucional da promessa diante da sociedade.
Em terceiro lugar, a comunidade eclesial que, junto com o apoio da
família e de amigos, acompanha os noivos ao altar, dá testemunho do
sentido comunitário e transcendente do laço simbólico feito pelos
cônjuges para prometer-se mutuamente a realização da união de uma pessoa
em duas pessoas.
Em quarto lugar, a consciência responsável dos cônjuges apóia,
durante o desenvolvimento biográfico da vida familiar, a realização da
tarefa prometida (ou, em seu caso, a reconciliação após uma ruptura ou a
nulidade após uma ruptura irreversível).
Incumbe à ética a responsabilidade interpessoal de salvaguardar a
promessa; interpelará a partir da consciência e impulsionará com o amor
para garantir sua realização. O direito intervirá para assegurar o
cumprimento do contrato e proteger a segurança jurídica de cônjuges e
família. A Igreja, ao abençoar liturgicamente a união e acompanhar
pastoralmente os cônjuges antes, em e durante o caminho de sua união,
atesta a graça divina para o estabelecimento e a frutificação do símbolo
sacramental na vida dos esposos ou para sua eventual necessidade de
reconciliação, cura ou reabilitação e retomada do caminho.
A promessa dos cônjuges é pessoal e responsável. O que prometem não é
só proporcionar-se mutuamente alguma coisa ou fazer algo um pelo outro,
mas seguir sendo o mesmo (ipse) diante e com a outra pessoa no futuro,
mesmo quando as circunstâncias que condicionem a cada um não sejam as
mesmas (idem) que antes (Ricouer).
Esta capacidade de comprometer-se é ao mesmo tempo forte e frágil.
Forte, porque supõe a capacidade de sujeitos para comprometer-se
definitivamente. Frágil, porque são imprevisíveis as circunstâncias que
eventualmente colocarão em perigo seu cumprimento. O casal escala a
montanha da vida e só pode demonstrar a conquista da indissolubilidade
da sua união quando chegou ao cume. O estribilho do canto nupcial: “até
que a morte nos separe”, deveria ser antes: “até que a compleição da
vida consome a nossa união”, “até que a vida consumada converta a nossa
união em laço indestrutível”.
A promessa é vulnerável. As pessoas que se afirmam a si mesmas e se
afirmam mutuamente empenham sua palavra e liberdade vulneráveis e,
portanto, frágeis e expostas à ruptura. Só podem dizer-se mutuamente:
“hoje te escolhi para sempre”, casso reiterarem assim: “e escolho seguir
te escolhendo”. Caso se reelegerem assim diariamente, converterão a
união em indissolúvel ao longo de toda uma vida.
Esta é a indissolubilidade antropológica no horizonte do futuro,
irredutível à noção de indissolubilidade jurídica como confirmação de um
vínculo contraído no passado. Se se entendesse a indissolubilidade
matrimonial antropológica e evangelicamente como dom e vocação (cf.
Relatio Synodi, 2014, nn. 14-16, 21), seria fácil aceitar que a acolhida
sacramental de pessoas divorciadas recasadas civilmente é possível e
compatível com a situação canônica (atualmente sem solução) da
indissolubilidade jurídica de um matrimônio ratum et consummatum entre
pessoas batizadas, como o considera o direito canônico vigente (CIC, c.
1056, 1141).
Embora a Igreja, do ponto de vista do direito canônico, não
reconhecesse a dissolução do primeiro matrimônio e não celebrasse
canonicamente as segundas núpcias, nada impediria acolher
sacramentalmente essas pessoas, e inclusive celebrar pastoral e
liturgicamente uma bênção de quem já está socialmente constituído como
família, com todos os seus direitos civilmente reconhecidos.
O “sim” dos contraentes na cerimônia nupcial não é o ponto zero da
união, mas a renovação formal daquele primeiro sim dos noivos (primeiro
tempo, na intimidade do dia da declaração e aceitação mútua) que iniciou
o processo de convivência; e é também sua confirmação pública diante da
sociedade (segundo tempo) e diante da comunidade que compartilha o
simbolismo transcendente (terceiro tempo) da comunhão íntima de duas
pessoas em uma, cuja realização se leva a cabo temporal, biográfica e
familiarmente ao longo da vida, reelegendo cada dia a eleição originária
(quarto tempo).
A promessa, por sua fragilidade, pode ser rompida. O ser humano capaz
de prometer, é capaz de trair a promessa, e é também capaz de
reconhecê-lo, pedindo e recebendo perdão. Em uma situação de
impossibilidade do cumprimento da promessa ou de interrupção do processo
de cumprimento, podem produzir-se diversos cenários de desenlaces:
ruptura irresponsável, anulação de mútuo acordo ou petição e concessão
mútuas de perdão, cura humana e sacramental das feridas deixadas pela
situação de ruptura (independentemente de se foi culpado ou não). Em
caso de ruptura irreversivelmente inevitável persistirá a exigência de
cura das feridas e reabilitação das pessoas.
Nos debates sobre o vínculo matrimonial, impropriamente chamado de
indissolúvel (sem distinguir o uso jurídico e teológico desta noção),
menospreza-se esta reflexão antropológica aqui esboçada (que pode e deve
acompanhar a reflexão evangélica, sacramental e pastoral).
A partir de ambas as perspectivas, antropológica e evangélica, se
assumiria com lucidez e serenidade, acompanhadas de misericórdia, o
caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão
de vida e amor”. A indissolubilidade matrimonial (não jurídica, mas
antropológica) será vista mais como vocação e meta da felicidade
prometida do que como propriedade derivada exclusivamente de um
compromisso canonicamente confirmado.
Mesmo a partir da perspectiva do vínculo confirmado social e
religiosamente, seria possível repensá-lo como “não dissolúvel injusta e
irresponsavelmente”, em vez de insistir em entendê-lo como
“indissolúvel absolutamente”. O que desejamos converter em
indestrutível, “retomando-o” dia a dia, não é um vínculo físico, ôntico
ou legal, mas um laço de união interpessoal. O laço de união até a morte
pode ser desfeito, não pela morte física de um dos cônjuges, mas pela
morte da relação.
Por estar intimamente vinculada à relação, a indissolubilidade pode
morrer com ela. O vínculo não é um objeto a ser defendido, ou uma
doutrina a ser reconhecida, ou uma norma a ser obedecida, mas uma
relação a ser cuidada. Sua morte produzirá sofrimento e requerirá um
duelo e uma cura. Não deverá ser atribuída necessariamente a um pecado
ou a uma doença; poderá ser simplesmente um acidente.
A união e a consumação pessoal desta relação é um processo que leva
tempo e, às vezes, é interrompido na metade do caminho e morre com ela.
Algumas vezes, por causa de uma das partes; outras vezes, por causa das
duas partes; outras vezes ainda, sem ser por causa de nenhuma das
partes, mas devido a circunstâncias e vicissitudes externas.
Se a ruptura é reparável, buscar-se-á recompor o vulnerado. Se é
irreversível, será preciso buscar cura para ambas as partes e apoio para
refazer o caminho da vida. A acolhida eclesial das pessoas nessa etapa
será de acompanhamento do processo de cura (não necessariamente
penitencial, como propõe timidamente a colocação de Kasper, que fica
curta...); poderá ser de reconciliação penitencial, em algumas ocasiões;
mas, outras vezes, sem culpa a ser reconhecida, será questão de uma
reabilitação curativa ou de um apoio humano e espiritual para recomeçar.
Religión Digital, 20-08-2015.
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