quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Repensemos o casamento em quatro tempos

Por Juan Masiá, SJ

Aproxima-se o Sínodo e reiteram-se as propostas a favor e contra a revisão da doutrina e das práticas eclesiais sobre a acolhida sacramental de pessoas em novas núpcias após o divórcio. Mas antes de argumentar a favor ou contra, repensemos o tema central da fidelidade à promessa, ponto de partida anterior às doutrinas teológicas e prescrições canônicas sobre a indissolubilidade do vínculo.
Para cuidar da fidelidade e proteger sua fragilidade, vamos refletir sobre a união esponsal como dom e tarefa. A sinfonia do “sim, quero” dos cônjuges, desenvolve-se em quatro tempos: promessa interpessoal, acordo social, símbolo sacramental e tarefa biográfico-familiar.
Para fazer essa proposta, não bastará um simples post, mas será preciso alongar-se desta vez em forma de artigo. Na linguagem dos canonistas designa-se como “defesa do vínculo” a incumbência jurídica de protegê-lo. Mas a tarefa humana e eclesial de proteger o enlace conjugal (ou, em seu caso, o desenlace) é mais ampla. Compete, pelo menos, a três instâncias: a consciência responsável dos cônjuges, as instituições protetoras da justiça e o cuidado pastoral-sacramental das pessoas na vida das comunidades fiéis. Situemos a questão indo além do debate sobre a validez de um vínculo jurídico ou de uma doutrina sobre a indissolubilidade (para algumas teologias, intocável; para outras, mutável e que deve evoluir). 
O problema não se resolve nem negando nem permitindo o acesso aos sacramentos. É preciso rever a evolução histórica da vida sacramental, a maneira distorcida de entender a confissão, a comunhão, a penitência, o matrimônio, a potestade reconciliadora, etc. Sem fazer essa revisão não serviria para nada nem permitir o que até agora não se permitia, nem tampouco proibi-lo. 
Vamos dar um exemplo concreto. Disse o teólogo X que não se deve admitir à comunhão esse casal porque sua convivência é pecaminosa. Argúi-lhe o teólogo Y dizendo que sim, que deve ser admitido, porque Deus não se cansa de perdoar. Mas, é preciso perguntar tanto a um como a outro: e quem disse a vocês que esse casal está convivendo em pecado? Como diziam os medievais em suas controvérsias: com o devido respeito, nego a premissa maior (salva reverentia, nego maiorem). Mas temo que tenhamos muito medo de pôr em dúvida premissas maiores...
Produz-se confusão nos debates sobre matrimônio e divórcio, convivência e separações, nulidades e anulações, reconhecimento do divórcio e novas núpcias civis, assim como sobre a aceitação, discernimento e acompanhamento de tais situações por parte da comunidade eclesial. Para evitá-las será preciso articular a relação entre os aspectos éticos, legais, religiosos e biográficos do cuidado da fidelidade e da responsabilidade com relação à premissa. 
A sinfonia do consentimento conjugal desenvolve-se em quatro tempos, correspondentes: 1) o aspecto interpessoal do consentimento como promessa; 2) a expressão legal, como contrato; 3) o aspecto ritual-comunitário, simbólico, sacramental; e, 4) o aspecto temporal e biográfico-familiar.
Que instâncias protegem a promessa em seus quatro tempos?  Em primeiro lugar, a garantia e a proteção dessa promessa é responsabilidade da consciência dos cônjuges no terreno da ética interpessoal, “promessa anterior à promessa” (Ricoeur).
Em segundo lugar, é competência do direito amparar o contrato civil e o aspecto institucional da promessa diante da sociedade.
Em terceiro lugar, a comunidade eclesial que, junto com o apoio da família e de amigos, acompanha os noivos ao altar, dá testemunho do sentido comunitário e transcendente do laço simbólico feito pelos cônjuges para prometer-se mutuamente a realização da união de uma pessoa em duas pessoas.
Em quarto lugar, a consciência responsável dos cônjuges apóia, durante o desenvolvimento biográfico da vida familiar, a realização da tarefa prometida (ou, em seu caso, a reconciliação após uma ruptura ou a nulidade após uma ruptura irreversível).
Incumbe à ética a responsabilidade interpessoal de salvaguardar a promessa; interpelará a partir da consciência e impulsionará com o amor para garantir sua realização. O direito intervirá para assegurar o cumprimento do contrato e proteger a segurança jurídica de cônjuges e família. A Igreja, ao abençoar liturgicamente a união e acompanhar pastoralmente os cônjuges antes, em e durante o caminho de sua união, atesta a graça divina para o estabelecimento e a frutificação do símbolo sacramental na vida dos esposos ou para sua eventual necessidade de reconciliação, cura ou reabilitação e retomada do caminho.
A promessa dos cônjuges é pessoal e responsável. O que prometem não é só proporcionar-se mutuamente alguma coisa ou fazer algo um pelo outro, mas seguir sendo o mesmo (ipse) diante e com a outra pessoa no futuro, mesmo quando as circunstâncias que condicionem a cada um não sejam as mesmas (idem) que antes (Ricouer).
Esta capacidade de comprometer-se é ao mesmo tempo forte e frágil. Forte, porque supõe a capacidade de sujeitos para comprometer-se definitivamente. Frágil, porque são imprevisíveis as circunstâncias que eventualmente colocarão em perigo seu cumprimento. O casal escala a montanha da vida e só pode demonstrar a conquista da indissolubilidade da sua união quando chegou ao cume. O estribilho do canto nupcial: “até que a morte nos separe”, deveria ser antes: “até que a compleição da vida consome a nossa união”, “até que a vida consumada converta a nossa união em laço indestrutível”.
A promessa é vulnerável. As pessoas que se afirmam a si mesmas e se afirmam mutuamente empenham sua palavra e liberdade vulneráveis e, portanto, frágeis e expostas à ruptura. Só podem dizer-se mutuamente: “hoje te escolhi para sempre”, casso reiterarem assim: “e escolho seguir te escolhendo”. Caso se reelegerem assim diariamente, converterão a união em indissolúvel ao longo de toda uma vida.
Esta é a indissolubilidade antropológica no horizonte do futuro, irredutível à noção de indissolubilidade jurídica como confirmação de um vínculo contraído no passado. Se se entendesse a indissolubilidade matrimonial antropológica e evangelicamente como dom e vocação (cf. Relatio Synodi, 2014, nn. 14-16, 21), seria fácil aceitar que a acolhida sacramental de pessoas divorciadas recasadas civilmente é possível e compatível com a situação canônica (atualmente sem solução) da indissolubilidade jurídica de um matrimônio ratum et consummatum entre pessoas batizadas, como o considera o direito canônico vigente (CIC, c. 1056, 1141).
Embora a Igreja, do ponto de vista do direito canônico, não reconhecesse a dissolução do primeiro matrimônio e não celebrasse canonicamente as segundas núpcias, nada impediria acolher sacramentalmente essas pessoas, e inclusive celebrar pastoral e liturgicamente uma bênção de quem já está socialmente constituído como família, com todos os seus direitos civilmente reconhecidos.
O “sim” dos contraentes na cerimônia nupcial não é o ponto zero da união, mas a renovação formal daquele primeiro sim dos noivos (primeiro tempo, na intimidade do dia da declaração e aceitação mútua) que iniciou o processo de convivência; e é também sua confirmação pública diante da sociedade (segundo tempo) e diante da comunidade que compartilha o simbolismo transcendente (terceiro tempo) da comunhão íntima de duas pessoas em uma, cuja realização se leva a cabo temporal, biográfica e familiarmente ao longo da vida, reelegendo cada dia a eleição originária (quarto tempo).
A promessa, por sua fragilidade, pode ser rompida. O ser humano capaz de prometer, é capaz de trair a promessa, e é também capaz de reconhecê-lo, pedindo e recebendo perdão. Em uma situação de impossibilidade do cumprimento da promessa ou de interrupção do processo de cumprimento, podem produzir-se diversos cenários de desenlaces: ruptura irresponsável, anulação de mútuo acordo ou petição e concessão mútuas de perdão, cura humana e sacramental das feridas deixadas pela situação de ruptura (independentemente de se foi culpado ou não). Em caso de ruptura irreversivelmente inevitável persistirá a exigência de cura das feridas e reabilitação das pessoas.
Nos debates sobre o vínculo matrimonial, impropriamente chamado de indissolúvel (sem distinguir o uso jurídico e teológico desta noção), menospreza-se esta reflexão antropológica aqui esboçada (que pode e deve acompanhar a reflexão evangélica, sacramental e pastoral).
A partir de ambas as perspectivas, antropológica e evangélica, se assumiria com lucidez e serenidade, acompanhadas de misericórdia, o caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão de vida e amor”. A indissolubilidade matrimonial (não jurídica, mas antropológica) será vista mais como vocação e meta da felicidade prometida do que como propriedade derivada exclusivamente de um compromisso canonicamente confirmado.
Mesmo a partir da perspectiva do vínculo confirmado social e religiosamente, seria possível repensá-lo como “não dissolúvel injusta e irresponsavelmente”, em vez de insistir em entendê-lo como “indissolúvel absolutamente”. O que desejamos converter em indestrutível, “retomando-o” dia a dia, não é um vínculo físico, ôntico ou legal, mas um laço de união interpessoal. O laço de união até a morte pode ser desfeito, não pela morte física de um dos cônjuges, mas pela morte da relação.
Por estar intimamente vinculada à relação, a indissolubilidade pode morrer com ela. O vínculo não é um objeto a ser defendido, ou uma doutrina a ser reconhecida, ou uma norma a ser obedecida, mas uma relação a ser cuidada. Sua morte produzirá sofrimento e requerirá um duelo e uma cura. Não deverá ser atribuída necessariamente a um pecado ou a uma doença; poderá ser simplesmente um acidente.
A união e a consumação pessoal desta relação é um processo que leva tempo e, às vezes, é interrompido na metade do caminho e morre com ela. Algumas vezes, por causa de uma das partes; outras vezes, por causa das duas partes; outras vezes ainda, sem ser por causa de nenhuma das partes, mas devido a circunstâncias e vicissitudes externas.
Se a ruptura é reparável, buscar-se-á recompor o vulnerado. Se é irreversível, será preciso buscar cura para ambas as partes e apoio para refazer o caminho da vida. A acolhida eclesial das pessoas nessa etapa será de acompanhamento do processo de cura (não necessariamente penitencial, como propõe timidamente a colocação de Kasper, que fica curta...); poderá ser de reconciliação penitencial, em algumas ocasiões; mas, outras vezes, sem culpa a ser reconhecida, será questão de uma reabilitação curativa ou de um apoio humano e espiritual para recomeçar.
Religión Digital, 20-08-2015.

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