16/01/2014
Escutas flagram ginecologista aconselhando gestante a conseguir dinheiro com o tráfico
Rio – Um ginecologista que trabalha no Centro Municipal de Saúde
Manoel José Ferreira, no Catete, é acusado de usar o espaço público para
negociar pelo menos dois abortos. Um dos casos foi flagrado em escuta
telefônica autorizada pela Justiça, às 13h59 do dia 10 de dezembro. Na
ocasião, o médico sugeriu à gestante que conseguisse dinheiro com ‘o
pessoal do movimento’, numa possível referência a traficantes na área
onde ela mora.
O registro ocorreu três dias antes da operação policial que
desarticulou a maior quadrilha de abortos do Rio, responsável por uma
movimentação financeira de R$ 500 mil por mês. O caso está sendo
investigado pela 19ª DP (Tijuca).
Enquanto estava na clínica, o médico ligou para José Luiz Gonçalves,
acusado de chefiar o esquema, para contar que a mulher no seu
consultório tomou remédio por conta própria para interromper a gravidez
de 11 semanas. Mas o remédio não surtiu efeito. Durante a conversa, o
médico disse a Gonçalves que iria cobrar R$ 2,5 mil pelo aborto.
O valor é ‘promocional’, bem abaixo dos R$ 4,5 mil de uma tabela
estabelecida pela quadrilha, baseada no tempo de gestação. Mas a mulher
diz estar sem dinheiro, ao pegar o telefone do médico para falar com
Gonçalves.
“Olha só, eu tomei 12 Cytotecs (medicamento abortivo). É que eu tô
desesperada porque eu já tenho quatro filhos. Eu tirei R$ 1 mil que
tinha lá em casa guardado para a ceia de Natal. Eu gastei tudo. Eu nem
vou ter ceia. Estou desesperada”, disse, aos prantos.
Mas o relato da gestante não sensibilizou Gonçalves, que bateu o pé
no valor estipulado, alertando o médico a manter o preço. Em outra
conversa no mesmo dia, quase duas horas depois, o ginecologista diz que
‘fechou três’, em referência ao aborto de três gestantes, segundo a
polícia. Entre elas, a mulher que teria entrado chorando no consultório.
DELEGADO: ‘É UM ABSURDO’
“É um absurdo um médico que trabalha num hospital público colocar a
vida de pessoas em risco em troca de dinheiro”, criticou o delegado
Roberto Gomes, da 19ª DP, que investiga o caso.
Na época da operação policial que desarticulou a quadrilha, em 13 de
dezembro, o ginecologista não chegou a ser preso porque as escutas
telefônicas ainda estavam em andamento. Depois da ação, duas gestantes o
reconheceram, em depoimento na delegacia.
Suspeitos haviam sido detidos em fevereiro
Não foi a primeira vez que José Luiz Gonçalves, apontado como o chefe
da quadrilha, e o ginecologista Bruno Gomes, também investigado pela
19ª DP, responderam pelo crime de aborto. Em fevereiro do ano passado,
eles foram presos em flagrante pela Divisão de Homicídios (DH) numa
clínica em Benfica, suspeitos de estarem fazendo um aborto. Eles
respondem ao processo, na 2ª Vara Criminal da Capital, em liberdade.
A 19ª DP investiga a quadrilha desde maio de 2012. De acordo com a
polícia, a quadrilha atua há pelo menos três décadas usando telefones
antigos como herança de outra geração de ginecologistas que faziam
abortos no Rio.
“É uma
quadrilha estruturada para cometer abortos. Ainda estamos aprofundando
as investigações para entender melhor o funcionamento do grupo”,
explicou o promotor Marcos Kac, da 9ª Promotoria de Investigação Penal,
que está acompanhando o caso.
A QUADRILHA
No dia 13 de dezembro, policiais da 19ª DP (Tijuca) desarticularam a
quadrilha com a prisão de seis suspeitos: o que seria o chefão (José
Luiz Gonçalves), os médicos Guilherme Estrela e Ivo Tannuri Filho, e as
agenciadoras Nilda Pontes, Myriam Hahamovici e Maria José Barcellos.
INDICIADOS E SOLTOS
Todos foram indiciados pelos crimes de aborto e formação de
quadrilha. Depois de cumprirem prisão temporária de cinco dias úteis,
eles foram soltos, para que a polícia continuasse com as investigações.
MICROCESÁREA
Outros dois suspeitos de integrar a quadrilha foram identificados e
indiciados pela polícia: os ginecologistas Eurico Surerus e Bruno Gomes.
Segundo a polícia, Gomes era o responsável por abortos em gestantes com
mais de 12 semanas de gravidez. Em alguns casos, ele faria a chamada
microcesárea, retirando o feto através de intervenção cirúrgica.
NEGÓCIO MILIONÁRIO
De acordo com a polícia, a quadrilha fazia até 50 abortos por semana,
que chegavam a custar R$ 8 mil. E atendia gestantes que saíam de São
Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Maranhão. No apartamento onde mora
Nilda Pontes, a polícia apreendeu 14.768 dólares (cerca de R$ 35 mil),
12.290 euros (cerca de R$ 40 mil), 715 libras (cerca de R$ 715) e R$ 6,5
mil.
GRAVAÇÃO TELEFÔNICA DA COMBINAÇÃO DOS ABORTOS
Numa primeira conversa, Gonçalves, que seria o chefe, conversa com
uma gestante. No diálogo, ela diz que já tinha acertado o aborto
anteriormente com um ginecologista. No segundo diálogo, quatro dias
depois, o médico está com uma paciente no centro municipal de saúde
quando liga para Gonçalves. Pressionado pelo chefe, ele aconselharia a
gestante a conseguir dinheiro com traficantes. Horas depois, os
comparsas voltam a falar. E o médico diz que fechou outros três abortos.
Confira abaixo a íntegra das escutas:
6 DE DEZEMBRO – 16h59
Gonçalves combina aborto com paciente, que cita Eurico.
R. (mulher) — Ai, Gonçalves, graças a Deus. Eu tava conversando com o
doutor (fala o nome do ginecologista) agora… Eu já resolvi tudo com
ele. Ele mandou marcar um encontro com você.
Gonçalves — Mas ó só… Qual foi o valor combinado? Só por via das dúvidas?
R. — Eu tenho aqui pra te dar mil e quinhentos (R$ 1,5 mil).
Gonçalves — Isso! Fala um ponto cinco. Fica tranquila. Ó só. Eu vou marcar você pra amanhã.
R. — Não, doutor. Por favor. Vamos resolver isso hoje. Eu não aguento
mais dormir com isso. Não tem como? Não aguento mais dormir com isso.
Gonçalves — Filha, hoje ninguém vai trabalhar. Foi tudo suspenso hoje. O serviço era hoje. Foi tudo transferido pra amanhã.
Mulher – Amanhã aonde, doutor?
Gonçalves – Você mora aonde?
Mulher – Oi?
Gonçalves – Você mora aonde?
Mulher – Moro em Ricardo.
Gonçalves – Ricardo é um pouquinho distante. Mas nós vamos fazer tudo ali na região do Maracanã. Sabe onde é que é?
Mulher – Maracanã, eu sei chegar.
Gonçalves – Não sabe?
Mulher – Sei, eu sei chegar.
Gonçalves – Ah, tá tranquilo. Mas olha só, olha o que eu vou te
falar. Deixa só eu levantar, só um minutinho. Que eu tava deitado aqui
com a minha mulher. Minha mulher é um problema sério, não me deixa em
paz. Peraí que eu vou agendar com você, filha. Só um minutinho. Vamos
começar aqui. Me dá o seu nome.
Mulher fala o nome.
Mulher fala o nome.
Gonçalves – um ponto cinco, o valor combinado. Você tá com quantas semanas?
Mulher – Então, foi o que eu falei com ele. Eu só fiz o beta HCG,
minha menstruação só tá atrasada menos de duas semanas. Minha
menstruação sempre foi certinha.
Gonçalves – Então eu vou botar aqui seis semanas pra você, tá ok?
Mulher – Tá.
Gonçalves – Porque não deve ser mais que isso também, não. Me dá seu telefone.
Mulher fala o número do seu celular.
Gonçalves – Ele pegou alguma importância com você?
Mulher – Cinco. Zero ponto cinco.
Gonçalves – Zero ponto cinco, ok. É a cota dele mesmo. Então tá feito
aqui então. Tô marcando você pra amanhã. Presta atenção. Mas amanhã,
meio-dia, você vai ligar pra mim. Tá ok?
10 DE DEZEMBR0 – 13h59
O ginecologista recebe uma paciente no centro municipal de
saúde, para combinar o aborto. O médico, então, liga para Gonçalves. A
gestante, que tinha tomado medicamentos abortivos, diz estar sem
dinheiro. Gonçalves fala para o ginelogista manter o valor combinado.
Ele, então, aconselha a grávida a conseguir o dinheiro emprestado com “o
pessoal do movimento”.
Gonçalves – Ela é dez semanas, terça-feira passada. Tomou 12 cytotecs. Sabe o que é cytotec? Doze.
Médico – Uma louca, né. Mulher maluca.
Gonçalves – Eu falei… (É meu colega de trabalho aqui). Até dez semanas, R$ 2 mil. Agora, e com dez semanas e mais uma semana?
Médico – São 11 semanas, né?
Gonçalves – Onze semanas. É.
Médico – É, 11 semanas aí. Você pode colocar R$ 2,5 mil, no mínimo. R$ 500 pra você e R$ 2 mil pra gente.
Gonçalves – Ah, é, dá. Dá R$ 2,5 mil. Ele concordou (É que nós temos que dividir o dinheiro pra quatro médicos). Alô, alô?
Médico – Tô ouvindo.
Gonçalves – Eu falei que tem que dividir o dinheiro pra quatro. Eu, você e mais dois.
Médico – Eu, você e mais dois. Sem falar no enfermeiro. São cinco.
Gonçalves – E outra coisa. O preço, não é o preço do trabalho. É o preço da responsabilidade, que não tem preço.
Médico – É, a qualidade do trabalho que não tem preço.
Gonçalves – A qualidade do trabalho que não tem preço.
Médico – Fala com ela, ó. Amanhã é o nosso último dia. Só vou voltar em janeiro (…)
Gonçalves – Peraí, dá uma palavrinha com ela rápida aqui. Dá uma palavrinha.
Mulher – Oi, doutor Gonçalves.
Gonçalves – Pois não, minha querida. Pode falar.
Mulher – Oi, olha só, eu tomei 12 cytotecs. É que eu tô desesperada,
porque eu já tenho quatro filhos. Eu tirei R$ 1 mil que tinha lá em casa
guardado pra ceia de Natal. Eu gastei tudo. Eu nem vou ter ceia. Eu tô
desesperada. Eu não tenho mais o que fazer.
Gonçalves – Ah, só. É dois e meio. E não tem nem como fazer menos,
não, porque é muita responsabilidade. E você vai dar um trabalho. Esse
remédio que você andou tomando, vai aumentar nossos cuidados. Vai
aumentar nossos trabalhos. Você não faz ideia.
Mulher – Não tem como passar o cartão assim, sei lá?
Gonçalves – Você pode passar o cartão e pegar o dinheiro emprestado na própria conta. Que o cartão dá o empréstimo.
Mulher – Passar em débito, mas em débito eu não vou ter. Eu poderia arrumar em crédito.
Gonçalves – Você pega no crédito emprestado. Divide em prestações. Tu pega um empréstimo consignado, no próprio cartão de crédito seu.
Gonçalves – Você pega no crédito emprestado. Divide em prestações. Tu pega um empréstimo consignado, no próprio cartão de crédito seu.
Mulher – Ah, mas você tem a máquina de cartão aí, eu posso passar R$ 2,5 mil no cartão?
Gonçalves – Não, filha. Você vai no banco e faz isso. No próprio banco seu.
Mulher – Mas aí eu ia pedir pra minha mãe. Ela não sabe que eu tô fazendo isso.
Gonçalves – Minha filha, eu não posso fazer nada. Qual é a sua idade?
Mulher – Eu tenho 25 anos.
Gonçalves – Tá numa idade boa já. Já sabe muito bem como se cuidar, né?
Mulher – Eu tenho quatro filhos. Eu tô desesperada, porque eu já
tomei e eu fiz a ultrassom e a cabeça da criança tá cheia de hematoma.
Gonçalves – Não, você não faz ideia. Você arrumou um problema sério
pra essa criança. Um problema seríssimo, entendeu? Até de formação
cerebral e tudo. Sem falar que você podia ter morrido por hemorragia.
Mulher – É que eu cheguei a sangrar, mas não desceu. A menina.
Gonçalves – Não, não. Isso não funciona. Mete essa porcaria na cabeça. Quem quer vender essa porcaria, fala qualquer besteira.
Mulher – Até agora, no doutor (nome do ginecologista). Eu vim de
manhã, ele não veio. Aí, a gente voltou agora de tarde pra vir falar com
ele.
Gonçalves – Minha filha, olha só. Quinta-feira é nosso último dia. Eu só vou voltar em janeiro.
Mulher – Tem como baixar um pouquinho, não? Eu não tenho nem com quem arrumar esse dinheiro em tão pouco tempo.
Mulher – Tem como baixar um pouquinho, não? Eu não tenho nem com quem arrumar esse dinheiro em tão pouco tempo.
Gonçalves – Filha, eu não posso fazer nada. Você jogou esse dinheiro
fora com o remédio. O remédio é caro, você jogou fora. Vê o que você
pode fazer. Fala com seus amigos, tá? O (nome do ginecologista) vai te
dar meu telefone.
Mulher – Não tem um líquido que joga, porque a menina passou o endereço de uma moça lá na Mangueira. E eu tô com medo.
Gonçalves – Presta bem atenção no que eu vou te falar. Você tá
querendo arrumar problemas sérios pra você mesma. Ou você trabalha com
profissionais, com médicos. Ou então…
Mulher – É, eu tô com medo. Essa moça até falou que cobra R$ 500. Eu
falei, não, mas deve ser furada, que a menina passou mal. Foi pro
hospital, ficou quase um mês internada e ainda teve que tirar o útero.
Gonçalves – Pra você ver a m. que é, tá?
Mulher – Mas aí vocês já ligam logo junto, se eu quisesse, não?
Gonçalves – Oi?
Mulher – Já ligam já as minhas trompas junto, não?
Gonçalves – Não, não, não. Trabalho num setor é uma coisa. No outro, é outra.
Mulher – Ah, entendi.
Gonçalves – Uma coisa é uma coisa. Outra coisa, é outra coisa. Não
tem nada haver. Olha só, minha filha. Não perde tempo, não, que o
negócio tá complicado pro teu lado. Ainda mais com essa porcaria que
você fez aí. Não usa mais essas coisas mais, não.
Mulher – Mas eu não tenho opção. Não tenho nem mais dinheiro.
Gonçalves – Você faz o possível e o impossível também, tá?
Mulher – Tá bom. O doutor (nome do ginecologista) quer falar com o senhor ainda, tá?
Gonçalves – Tá ok.
Médico — Fala, amigo.
Gonçalves — Não, não dá mole, não. É isso mesmo, dois e meio (R$ 2,5 mil). Tem que ter responsabilidade, rapaz!
Médico — Olha a responsabilidade.
Gonçalves — Facilita, não… Não afrouxa, não.
Médico (falando com a mulher) — Vai lá na comunidade. Na comunidade, o
pessoal empresta. O movimento empresta, empresta. O movimento… Depois,
se não pagar, eles vem atrás de você. (volta a falar com Gonçalves).
Então tá, amigo. Grande abraço.
10 DE DEZEMBR0 – 15h41
Médico fala com Gonçalves, que o aconselha a não dar atenção a choro de gestantes.
Médico — Cara, quinta-feira à tarde, três certas… Fechei as três agora.
Gonçalves — Fechou três… São três certas, né?
Médico — Aquela que chorou. Aquela que chorou pelo telefone com você é
que eu não sei o nome. Eu mandei ela embora. Ela falou que já tá com a
grana na mão… Eu meti.
Gonçalves — É lógico, tu lembra de eu te falando?
Médico — Tá, eu sei, eu sei.
Gonçalves — Se chorar, deixa chorar. Entendeu?
Médico — Que ela arranja, arranja.
Gonçalves – Arranja, arranja.
Médico – Consegue, sim.
Gonçalves – Consegue. Ela tem que chorar é pra outro, pra gente, não…
Que nós estamos aqui pra resolver o problema dela. O problema dela.
Médico – Claro. Aquela, tem a C. e tem a M. Aquela que eu esqueci o
nome, ela é tão gostosa que, porra… Tem aquela que eu esqueci o nome.
Bota aí, doutor (fala o próprio nome), aquela, que depois eu digo o nome
pra você. C. e M.
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