terça-feira, 15 de abril de 2014

A atormentada santidade do Papa João XXIII. Artigo de Sergio Luzzatto

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A canonização do Papa Roncalli foi controversa desde aquele dia seguinte à sua morte, 3 de junho de 1963. A onda de emoção pelo falecimento de João XXIII produziu entre os fiéis uma demanda tão forte quanto difusa de reconhecimento imediato da santidade do "Papa bom": com 42 anos de antecipação ao slogan que circulou na morte do Papa Wojtyla, no dia 2 de abril de 2005, se queria fazê-lo "santo já".
A análise é do historiador italiano Sergio Luzzatto, professor da Universidade de Turim. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 06-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Em duas semanas – domingo, 27 de abril – o Papa Francisco tem um compromisso importante na Praça de São Pedro. Naquele dia, está comprometido em elevar aos altares da Igreja dois bem-aventurados que têm contado particularmente para ele. Dois papas do século XX, João XXIII e João Paulo II.
O papa de Bérgamo em que Jorge Mario Bergoglio sempre reconheceu um modelo pastoral, o bom padre do interior capaz de continuar sendo pastor de almas mesmo como bispo, como núncio, como patriarca. O papa polonês, sob o pontificado do qual o jesuíta Bergoglio percorreu as principais etapas da sua carreira eclesiástica, de bispo auxiliar de Buenos Aires à púrpura cardinalícia de 2001.
Em duas semanas, o compromisso será importante também para milhões de fiéis esperados na praça de São Pedro, que viverão como um evento de graça a canonização de dois papas extraordinariamente presentes na memória da Igreja universal. No dia 27 de abril, a elevação aos altares do Papa Roncalli e do Papa Wojtyla renovará aquela peculiar mistura de cerimônia e de festa, de culto e de espetáculo, de piedade e de cenografia, que há quatro séculos – desde a canonização de Santo Inácio de Loyola, na Roma barroca em 1622 – definiu e distinguiu o teatro romano da santidade.
Enquanto isso, a espera do evento produz algumas reflexões editoriais. Alguns livros de ocasião, a serem vendidos como viático aos peregrinos que partem para a Cidade Eterna, ou como um livro de cabeceira para os leitores insones. Ao contrário, que fique claro, de uma chuva de títulos. Até hoje, nem mesmo dois santos iminentes ditados com o carisma de João XXIII e de João Paulo II conseguem realmente escavar um espaço nos balcões dos livreiros, de tão onipresente, irrefreável, hegemônico que é o carisma do Papa Francisco.
Mas, na perspectiva do dia 27 de abril, um livro ao menos deve ser destacado, como representativo de um gênero. É o livro escrito por Stefania Falasca e publicado pela editora Rizzoli com o título Giovanni XXIII, in una carezza la rivoluzione.
Houve quem destacasse a "meticulosa reconstrução dos fatos" realizada por Falasca, saudando "notícias e documentos inéditos" que "contribuem para esclarecer aspectos relevantes da história do Concílio e da Igreja". Com efeito, o laborioso episódio da causa de beatificação do Papa Roncalli – um episódio que se prolongou desde meados dos anos 1960 ao final dos anos 1990 – é uma brecha particularmente significativa de história na vida eclesiástica (e da vivência religiosa) na Itália do fim do século XX.
É uma pena que pouco ou nada dos méritos do livro deva ser atribuído a Stefania Falasca, cujo zelo de estudiosa consiste principalmente em utilizar com mãos cheias um livro do historiador Enrico Galavotti: o autor de Processo a Papa Giovanni. La causa di canonizzazione di A.G. Roncalli (1965-2000), publicado pela editora Mulino em 2005.
Se o instant-book da Rizzoli viola algum direito é matéria para advogados, que aqui não interessa. Aqui interessa a representatividade de um livro dentro de um gênero, o da literatura devocional. E justamente o fato de que a base documental do livro de Falasca é o mesmo do livro de Galavotti permite que se ponha a questão em toda a sua evidência.
Os documentos que valem para reconstruir a causa de canonização do Papa Roncalli são, de um livro ao outro, exatamente os mesmos. Mas o que muda – e muda tudo – é o método com o qual os documentos são lidos. No caso de Galavotti, o método é o do historiador. No caso de Falasca, o método é o do hagiógrafo. Em um caso, a intenção é crítica. No outro caso, a intenção é apologética.
Assim, os mesmos documentos produzem resultados totalmente diferentes: contam duas histórias que parecem não ter nada em comum. O que o autor de Processo a Papa Giovanni demonstrou ser complexo, delicado, problemático na causa canônica de Roncalli, a autora de Giovanni XXIII, in una carezza la rivoluzione faz passar por simples, natural, edificante.
Um longo rio tranquilo, a elevação aos altares daquele que "por inspiração divina" (explica hoje o cardeal vigário de Roma, Agostino Vallini) convocou o Concílio Vaticano II? Muito pelo contrário. Salvo que a apologética católica muitas vezes sente a necessidade de limpar o percurso da história de qualquer pedra de tropeço, para melhor fazer correr o mel de uma visão providencialista.
Na realidade, a canonização do Papa Roncalli foi controversa desde aquele dia seguinte à sua morte, 3 de junho de 1963. Estava-se então no meio do Concílio, e a onda de emoção pelo falecimento de João XXIII produziu entre os fiéis uma demanda tão forte quanto difusa de reconhecimento imediato da santidade do "Papa bom": com 42 anos de antecipação ao slogan que circulou na morte do Papa Wojtyla, no dia 2 de abril de 2005, se queria fazê-lo "santo já".
Só que a vontade popular entrava em choque com os articulados procedimentos que a Sé Apostólica tinha preparado, desde o século XVII, para governar a partir do centro as causas de canonização. Para subtrair a fábrica dos santos dos impulsos localistas e incontroláveis da vox populi, confiando-a ao meditado escrutínio da Congregação dos Ritos e – em última instância – à vontade soberana do Sumo Pontífice.
De 1964 a a 1965, um grupo de pressão que era liderado pelo arcebispo de Bolonha, Giacomo Lercaro, e era juridicamente orientado pelo seu perito pessoal no Concílio, padre Giuseppe Dossetti, tentou convencer os Padres conciliares a proclamar a santidade do Papa Roncalli através de um procedimento de exceção. Mais exatamente, através de um procedimento que caiu em desuso na era moderna, mas que era comum nos concílios medievais: o reconhecimento da santidade por aclamação da assembleia. Na prática, o grupo liderado por Lercaro e inspirado por Dossetti trabalhou para que João XXIII fosse canonizado por aquele mesmo Concílio Vaticano II que tanto ele tinha feito para convocar e orientar.
Mais do que uma "santidade exemplar" (como a da maioria dos santos), para Lercaro e Dossetti se tratava de reconhecer no Papa João XXIII uma "santidade programática". Isto é, tratava-se de entregar a figura de Roncalli menos à devoção privada dos cristãos individuais e mais ao compromisso público da Igreja de se uniformizar à lição joanina. E se tratava de selar o espírito do Concílio através da retomada de uma instituição – a proclamação dos santos por parte da assembleia – que restituísse voz também nisso à comunidade dos fiéis, redimensionando o poder excessivo da hierarquia vaticana.
No entanto, a iniciativa de Lercaro e Dossetti se chocou tanto com a compreensível prudência do novo papa, Paulo VI, quanto com a surda oposição dos ambientes eclesiásticos mais hostis ao espírito assim como à letra do Concílio Vaticano II. Em vez de aportar imediatamente, a causa de canonização de João XXIII estava destinada a seguir um percurso longo e acidentado, que deve ser reencontrado no livro de Enrico Galavotti muito mais do que no de Stefania Falasca.
No fundo de tal percurso, está a decisão tomada pelo Papa Francisco por ocasião do seu primeiro consistório, em setembro de 2013, de prosseguir à canonização de João XXIII pro gratia: sem que intervenha – depois da beatificação do ano 2000 – qualquer reconhecimento formal de um segundo milagre realizado pelo Papa Roncalli.
Em outras palavras, João XXIII acaba por se tornar santo efetivamente através de um percurso privilegiado, se não justamente através de uma exceção à regra. Mas se torna santo hoje por graça de um papa, e não por voto de um Concílio.

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