[unisinos]
O jovem Santiago começou a frequentar as reuniões do grupo católico conservador Sodalício de Vida Cristã
aos 13 anos. Em pouco tempo se encantou pelas conversas sobre amizade,
amor e a doutrina religiosa. E se encantou mais ainda por Luis Fernando Figari, peruano laico que fundou o Sodalício em 1971. Para Santiago, Figari era um mestre, um guru disposto a ajudá-lo em seu amadurecimento.
Mas, quando tinha 16 anos, o herói se tornou vilão. Numa sessão de ioga, Figari teria explicado a Santiago que uma forma de se iluminar espiritualmente era aceitar um fluido que percorreria seu corpo. Figari teria dito: ‘‘O que vou fazer é depositar esperma em sua região sagrada’’.
A reportagem é de André Miranda, publicada no jornal O Globo, 06-11-2015.
O relato de Santiago é um dos 30 que compõem o livro ‘‘Mitad monjes mitad soldados’’, lançado há cerca de um mês pela editora Planeta, no Peru. Nele, seu autor, o jornalista Pedro Salinas, reúne depoimentos sobre abusos sexuais, físicos e psicológicos praticados por Figari e outros membros do Sodalício contra jovens, inclusive um brasileiro. A repercussão tem sido gigante, sendo comparada às denúncias contra o grupo mexicano Legionários de Cristo, um dos maiores escândalos de pedofilia na Igreja Católica.
— Fui do Sodalício nos anos 1980 e presenciei maus-tratos físicos e
psicológicos, para recrutamento e lavagem cerebral. Mas, sobre abusos
sexuais, não sabia de nada — conta Salinas. — Até que,
em 2002, lancei um romance cujo objetivo era justamente exorcizar os
demônios daquela época. Então, duas pessoas me procuraram para falar de
abusos sexuais cometidos por Figari.
O Sodalício é o que a Igreja compreende como
sociedade de vida apostólica, em que convivem membros laicos e
sacerdotes. Em todos os casos, os sodálites são homens e não podem se
casar. A organização mantém, ainda, o Movimento de Vida Cristã,
quase todo composto por jovens. Não há informações sobre o número de
integrantes, mas a instituição está presente em América Latina, Europa e
EUA. Em 1997, foi reconhecida por João Paulo II, que, poucos anos depois, nomeou Figari como conselheiro do Pontifício Conselho para os Leigos do Vaticano.
No Brasil, o Sodalício foi implantado em 1986, a convite do então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales
(1920-2012). Sua primeira comunidade, ativa até hoje, fica na Paróquia
de Nossa Senhora da Guia, no bairro do Lins de Vasconcelos. Depois,
foram fundadas comunidades em São Paulo, Petrópolis e Aparecida. Desde os anos 1990, sodálites foram responsáveis por atividades em instituições tradicionais de ensino, como os colégios São Bento e Santa Marcelina, no Rio, e a Universidade Católica de Petrópolis.
— As primeiras denúncias públicas contra o Sodalício foram feitas por
mim e Paola Ugaz (coautora de “Mitad monjes mitad soldados”), em 2012.
Nós revelamos o caso de Germán Doig, que era o número 2 da instituição,
havia morrido dez anos antes, e eles queriam fazer dele um santo, mas
sobre quem havia suspeitas de abusos — conta Salinas.
Quem, mesmo em vida, era considerado uma espécie de santo era Figari.
Pelos relatos do livro, fica claro que havia um culto à personalidade
do fundador. Os relatos incluem situações em que jovens eram obrigados a
se exercitar exaustivamente por ordem dos superiores e sofriam punições
caso os contrariassem.
O depoimento do brasileiro não trata de crimes sexuais, mas expõe as
pressões psicológicas dentro da instituição, sobretudo contra aqueles
que decidem deixar o Sodalício. Porém, após a publicação, Salinas passou a receber novos relatos de abusos sexuais, e dois deles teriam ocorrido no Brasil.
— Na época em que estive no Brasil não me foi informado nada do gênero — diz Fernando Vidal, assistente geral de comunicação do Sodalício, que foi o superior da entidade no Brasil entre 1997 e 2009.
Ainda na sequência da publicação, surgiram relatos na internet. Doutorando em filosofia, o brasileiro Josenir Dettoni,
ex-aluno do São Bento e que durante quatro anos viveu em comunidades
sodálites, por exemplo, publicou um vídeo no Youtube sobre sua
experiência. Ele conta que, dentro da instituição, era necessário
autorização até para ver os pais. Diz, ainda, que foi obrigado a servir e
tirar a mesa por cem vezes, como castigo por um equívoco ao colocar um
refresco para um superior.
— Eu acreditava que estar no Sodalício era o único caminho real para
chegar a Deus. Depois, para sair daquele tormento, eu precisei matar
Deus dentro de mim — afirma Dettoni.
Após o lançamento do livro, os responsáveis pelo Sodalício
afirmaram, em comunicado, que sentem ‘‘profunda dor e vergonha que
fatos assim possam ter sido cometidos’’ e dizem que estão formando uma
comissão independente para apurar todas as denúncias, segundo eles
‘‘verossímeis’’.
Já Figari, hoje com 68 anos, estaria num retiro em Roma desde 2010.
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