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Muitas
pessoas, no Oriente e no Ocidente, consideram as Cruzadas uma mancha
negra na História da Civilização Ocidental em geral, e da Igreja
Católica em particular. Citadas por ambas as partes no conflito entre os
Estados Unidos e os terroristas árabes, as Cruzadas voltaram aos
noticiários, aos filmes e às séries de televisão. Propalam-se velhos
mitos e reacendem-se discussões. Um bom exame da História das Cruzadas
é, portanto, indispensável
O Presidente George W. Bush foi infeliz
quando chamou a guerra contra o terrorismo de “Cruzada”, tendo recebido
inúmeras críticas por empregar uma palavra que seria tão ferina e
ofensiva para com os muçulmanos de todo o mundo. No entanto, os próprios
árabes também fazem uso desse termo. Osama bin Laden e o Mullah Omar
com freqüência chamaram os norte-americanos de “cruzados”, e
qualificaram os atuais conflitos como uma “Cruzada contra o Islã”. De
fato, as Cruzadas estão bem presentes na memória do mundo muçulmano.
O
Ocidente, por sua vez, também não esqueceu as Cruzadas. Qualquer um que
queira intimidar os católicos não demorará a jogar-lhes no rosto as
Cruzadas e a Inquisição. As Cruzadas são com freqüência apresentadas
como um exemplo clássico do mal que pode ser feito por uma religião
organizada. O homem médio, tanto no Cairo como em Nova York, tende a
concordar com a idéia de que as Cruzadas foram um ataque não-provocado,
cínico e insidioso, promovido por fanáticos contra o pacífico, próspero e
sofisticado mundo muçulmano da época.
Isso não foi sempre assim.
Na Idade Média, não havia cristão na Europa que não tivesse certeza de
que as Cruzadas eram sumamente boas e justas. Os próprios muçulmanos
respeitavam os ideais das Cruzadas e a nobreza dos homens que nelas
lutavam.
As coisas começaram a mudar com a Reforma Protestante.
Para Martinho Lutero – que já havia rejeitado a autoridade do Papa e a
doutrina sobre as indulgências – as Cruzadas não passavam de manobras de
um papado sedento de poder. Chegava a afirmar que lutar contra os
muçulmanos equivalia a lutar contra o próprio Cristo, pois Ele tinha
enviado os turcos para punir a Cristandade pelos seus pecados. Quando o
sultão Suleiman o Magnífico (1495?-1566) começou a invadir a Áustria com
os exércitos otomanos, Lutero mudou de opinião sobre a necessidade de
lutar, mas manteve-se firme em suas críticas às Cruzadas.
Ao longo
dos duzentos anos seguintes, as pessoas tendiam a ver as Cruzadas com
olhos confessionais: os protestantes lançavam-lhes vitupérios e os
católicos, elogios. Quanto a Suleiman e seus sucessores, ambos
concordavam: queriam livrar-se dele.
A atual visão a respeito das
Cruzadas nasceu do Iluminismo do século XVIII. Muitos dos então chamados
“filósofos”, como Voltaire, pensavam que a Cristandade medieval fora
apenas uma vil superstição. Para eles as Cruzadas foram uma migração de
bárbaros devida ao fanatismo, à ganância e à luxúria. A partir desse
momento, a versão iluminista sobre as Cruzadas entrou e saiu de moda
algumas vezes. As Cruzadas receberam boa imprensa e foram consideradas
como guerras de nobreza (mas não de religião) durante o Romantismo e até
o início do século XX. Depois da Segunda Guerra, contudo, a opinião
geral voltou-se decisivamente contra as Cruzadas. Na esteira de Hitler,
Mussolini e Stalin, os historiadores concluíram que a guerra por motivos
ideológicos – seja qual for a ideologia em questão – é abominável.
Esse sentimento de aversão foi resumido por Steven Runciman nos três volumes do seu livro A History of the Crusades (Uma História das Cruzadas,
1951-1954). Para Runciman, as Cruzadas foram atos de intolerância
moralmente repugnantes praticados em nome de Deus. Os homens medievais
que brandiam a cruz e marchavam rumo ao Oriente Médio eram ou perversos
cínicos, ou avarentos vorazes, ou crédulos ingênuos. Esse livro, aliás
literariamente bem escrito, tornou-se logo o padrão: com esse único
golpe, Runciman conseguiu definir a moderna visão popular sobre as
Cruzadas.
A partir de 1970, as Cruzadas receberam a atenção de
centenas de pesquisadores, que as esquadrinharam meticulosamente. Como
resultado, sabemos hoje muito mais a respeito das guerras santas da
Cristandade do que jamais soubemos. Contudo, os frutos de décadas de
pesquisa histórica só lentamente vão penetrando nas mentes do grande
público. Isso se deve em parte aos próprios historiadores profissionais,
sempre propensos a publicar estudos que pela sua própria natureza
exigem uma linguagem muito técnica, de difícil compreensão para quem não
é especialista. Contribui também para essa situação a clara relutância
das elites contemporâneas em abandonar a visão “runcimaniana” das
Cruzadas. Sendo assim, os livros populares sobre o tema – livros que as
pessoas continuam querendo ler, apesar de tudo – tendem a repetir a
conversa de Runciman.
O mesmo vale para as outras mídias, como o cinema e a televisão. Um exemplo é o documentário As Cruzadas,
uma produção da BBC/AE de 1995, estrelada por Terry Jones. Para dar um
certo ar de autoridade ao que mostravam, os produtores intercalaram as
cenas com entrevistas a importantes historiadores das Cruzadas, que
expressavam suas opiniões sobre cada evento retratado. O problema é que
os historiadores de hoje discordam das idéias de Runciman. Mas os
produtores não se importaram com isso: simplesmente editaram as
gravações das entrevistas, selecionando fragmentos e seqüências que, uma
vez montados, davam a impressão de que os historiadores concordavam com
Runciman. Um deles, o Dr. Jonathan Riley-Smith, veio dizer-me depois,
num tom irado: “Eles me mostraram dizendo coisas nas quais eu não
acredito!”
Mas afinal, qual é a verdadeira história das Cruzadas?
Como o leitor pode imaginar, trata se de uma longa história. Mas existem
muitos bons historiadores que ao longo dos últimos vinte anos vêm
colocando as coisas no seu devido lugar. Por agora, tendo em vista o
bombardeio que as Cruzadas vêm recebendo atualmente, o melhor será
esclarecer justamente o que as Cruzadas não foram. Enumeramos a seguir
alguns dos mitos mais comuns, dizendo por que eles são falsos.
Mito nº 1: As Cruzadas foram guerras contra um pacífico mundo muçulmano que nada fizera contra o Ocidente.
Não
há nada de mais falso. Desde os tempos de Maomé, os muçulmanos
lançaram-se à conquista do mundo cristão. E fizeram um ótimo trabalho:
após poucos séculos de incessantes conquistas, os exércitos muçulmanos
tomaram todo o norte da África, o Oriente Médio, a Ásia Menor e a maior
parte da Península Ibérica. Em outras palavras: ao findar o século XI,
as forças islâmicas já haviam capturado dois terços do mundo cristão. A
Palestina, terra de Jesus Cristo; o Egito, berço do monaquismo cristão; a
Ásia Menor, onde São Paulo estabeleceu as primeiras comunidades
cristãs. Não conquistaram a periferia da Cristandade, mas o seu núcleo. E
os impérios muçulmanos não pararam por aí: continuaram pressionando
pelo leste em direção a Constantinopla, até que finalmente a tomaram e
invadiram a própria Europa.
Se uma agressão não-provocada existiu,
foi a muçulmana. Chegou-se a um ponto em que só restava à Cristandade
defender-se ou simplesmente sucumbir à conquista muçulmana. A Primeira
Cruzada foi convocada pelo Papa Urbano II em 1095 para atender aos
apelos urgentes do Imperador bizantino de Constantinopla, Aleixo I
Comneno (1081-1118). Urbano convocou os cavaleiros cristãos para irem em
socorro dos seus irmãos do Leste. Foi uma obra de misericórdia: livrar
os cristãos do Oriente de seus conquistadores muçulmanos. Em outras
palavras, as Cruzadas foram desde o início uma guerra defensiva. Toda a
história das Cruzadas do Ocidente foi a história de uma resposta à
agressão muçulmana.
Mito nº 2:
Os Cruzados traziam o símbolo da Cruz, mas o que realmente queriam eram
as pilhagens e as terras. As intenções piedosas não passavam de máscara
para encobrir a ganância e cobiça.
Uma opinião comum
entre os historiadores é a de que o aumento da população na Europa
originou uma crise, devida ao excesso de “segundos filhos” de nobres,
treinados nas artes bélicas de cavalaria, mas sem terras ou feudos onde
se estabelecer. Por esse motivo, as Cruzadas seriam uma válvula de
escape, mandando esses homens belicosos para longe da Europa, onde
pudessem obter terras para si à custa dos outros. Os pesquisadores
atuais, graças à ajuda de bancos de dados computadorizados, desmontaram
esse mito. Hoje sabemos que os “primeiros filhos” da Europa foram os que
responderam ao apelo do Papa em 1095, e também nas Cruzadas seguintes.
Empreender
uma Cruzada era uma operação extremamente cara. Os Senhores tiveram que
hipotecar suas terras para angariar os fundos necessários. Além do
mais, não estavam interessados em reinos no além-mar. Como os soldados
de hoje, o Cruzado medieval orgulhava se de estar cumprindo o seu dever,
mas queria voltar para casa. Após o espetacular sucesso da Primeira
Cruzada, com Jerusalém e grande parte da Palestina em seu poder, quase
todos os Cruzados voltaram. Somente um pequeno grupo ficou para
consolidar e governar os territórios recém-conquistados. Foram raras as
pilhagens. Embora de fato sonhassem com as grandes riquezas das cidades
do Oriente, praticamente nenhum Cruzado conseguiu recuperar os seus
gastos. Mas não foram nem o dinheiro nem as terras o principal motivo
que os levaram às Cruzadas: o que queriam era fazer penitência pelos
seus pecados e merecer a própria salvação fazendo boas obras em terras
distantes.
Mito nº 3: Quando os Cruzados tomaram Jerusalém
em 1099, massacraram todos os homens, mulheres e crianças, enchendo as
ruas de sangue até os tornozelos.
Esse é o modo preferido
de pôr em evidência o caráter malévolo das Cruzadas. Num recente
discurso em Georgetown, o ex-presidente Bill Clinton disse que esse foi
um dos motivos pelos quais agora os Estados Unidos são alvo de
terroristas (embora no citado discurso o Sr. Clinton tenha subido o
nível do sangue até a altura dos joelhos, para dar mais ênfase). É
certamente verdade que muita gente morreu em Jerusalém após a tomada da
cidade pelos Cruzados. Mas o fato deve ser analisado no seu contexto
histórico.
O costume vigente em todas as civilizações
pré-modernas, tanto na Europa quanto na Ásia, era que se uma cidade
resistisse à captura e fosse tomada pela força, sua posse caberia às
forças vitoriosas. Isso incluía não somente os edifícios e os bens, mas
também as pessoas. Por isso, cada cidade ou fortaleza devia pensar muito
bem se podia ou não resistir a um cerco: se não pudesse, o mais
prudente era negociar os termos da rendição. No caso de Jerusalém, seus
defensores resistiram até o último instante. Calcularam que as
imponentes muralhas da cidade conteriam os Cruzados até chegarem os
reforços do Egito. Eles erraram: a cidade caiu e conseqüentemente foi
saqueada. Muitos morreram, mas outros muitos foram aprisionados ou
deixados livres para partir. Pelos padrões modernos, isso talvez pareça
brutal, mas até mesmo um cavaleiro medieval poderia replicar dizendo que
nos bombardeios modernos morrem mais inocentes – homens, mulheres e
crianças – do que seria possível passar ao fio da espada em um ou dois
dias.
Convém lembrar também que nas cidades muçulmanas que se
renderam aos Cruzados, as pessoas foram deixadas em paz, na posse das
suas propriedades, e com permissão para praticar livremente a sua
religião. Quanto às ruas cheias de sangue, nenhum historiador aceita
isso: não passa de um mero recurso literário. Jerusalém é uma cidade
grande, e a quantidade de pessoas que seria necessário abater para
inundar as ruas com dez centímetros de sangue é muito superior à
população de toda a região.
Mito nº 4: As Cruzadas não passaram de colonialismo medieval enfeitado com ornamentos religiosos.
É
importante lembrar que, na Idade Média, o Ocidente não era uma cultura
poderosa e dominante, que se lançava sobre uma região primitiva ou
atrasada. Era o Oriente muçulmano que era poderoso, próspero e opulento.
A Europa era o terceiro mundo. O Reino Latino de Jerusalém, fundado
após a Primeira Cruzada, não era um latifúndio católico incrustado em
terras muçulmanas, como depois viriam a ser as terras de plantio em
algumas colônias ibéricas ou inglesas na América. A presença católica
nesse Reino sempre foi mínima: menos de um décimo da população.
Católicos eram os governantes, os juízes, alguns mercadores italianos e
os membros das ordens militares: o resto, a imensa maioria da população,
era de muçulmanos. O Reino de Jerusalém não era uma colônia agrícola
nem industrial, como depois viriam ser as da América ou da Índia: era
apenas uma cabeça-de-ponte fortificada.
A intenção primordial dos
Cruzados era defender os Lugares Santos na Palestina – principalmente
Jerusalém – e garantir um ambiente seguro para que os peregrinos
cristãos pudessem visitá-los. Nenhum país europeu funcionava como
metrópole, no sentido de manter relações de exploração econômica, nem
havia na Europa quem se beneficiasse economicamente com a ocupação.
Muito pelo contrário: as despesas das Cruzadas e da manutenção do Reino
Latino de Jerusalém ceifaram pesadamente os recursos europeus. Como
posto avançado, o Reino de Jerusalém manteve-se sempre atento ao seu
papel militar. Enquanto os muçulmanos guerrearam entre si o Reino esteve
a salvo, mas quando se uniram, conseguiram conquistar as fortalezas,
capturar as cidades e em 1291 expulsar os cristãos definitivamente.
Mito nº 5: As Cruzadas combateram também os judeus.
Nenhum
Papa jamais conclamou uma Cruzada contra os judeus. Durante a Primeira
Cruzada, um grande bando de arruaceiros – que não fazia parte do
exército principal – decidiu atacar as cidades da Renânia para matar e
roubar os judeus dali. As razões para esse ato foram por um lado a pura
cobiça, e por outro a falsa crença de que os judeus, por terem matado
Jesus Cristo, eram também alvos legítimos das Cruzadas. O Papa Urbano II
e os seus sucessores condenaram energicamente esses ataques, e os
bispos locais – juntamente com o clero e os leigos – fizeram o que
podiam para defender os judeus, embora com pouco sucesso. Algo parecido
ocorreu na fase inicial da Segunda Cruzada, quando um grupo de renegados
matou muitos judeus na Alemanha, até que São Bernardo os apanhou e pôs
um fim a isso.
Essas falhas foram um infeliz subproduto do
entusiasmo pelas Cruzadas, mas nunca o seu objetivo. Para usar uma
analogia moderna: durante a Segunda Guerra Mundial alguns soldados
cometeram crimes quando estavam em outros países (pelos quais, aliás,
foram presos e punidos), mas isso não justifica dizer que o objetivo da
Segunda Guerra foi o de cometer crimes.
Mito nº 6: As Cruzadas foram algo tão vil e degenerado que houve até uma Cruzada das Crianças.
A
chamada “Cruzada das Crianças” de 1212 nem foi uma Cruzada nem
consistiu num exército de crianças. Foi uma onda de entusiasmo religioso
especialmente prolongada na Alemanha que levou alguns jovens – na maior
parte adolescentes – a se autoproclamarem Cruzados e começarem a
marchar rumo ao Mediterrâneo. Ao longo do caminho foram recebendo grande
apoio popular, e a companhia de não poucos bandoleiros, ladrões e
mendigos. O movimento se desmembrou quando chegou à Itália e terminou
quando o mar se recusou a abrir-se para dar-lhes passagem… O Papa
Inocêncio III não convocou essa tal “Cruzada”, pelo contrário: pediu
insistentemente para que os não combatentes ficassem em casa e apoiassem
o esforço de guerra apenas com jejuns, orações e esmolas. Nesse
episódio, depois de louvar o zelo e a disposição desses jovens que
tinham marchado até tão longe, mandou-os de volta para casa.
Mito nº 7: O Papa João Paulo II pediu perdão pelas Cruzadas.
É
um mito curioso, porque João Paulo II – que já havia pedido perdão por
todas as injustiças que os cristãos cometeram ao longo dos séculos – foi
muito criticado justamente por não ter pedido perdão expressamente
pelas Cruzadas. É verdade que João Paulo II pediu perdão aos gregos pelo
saque de Constantinopla em 1204, durante a Quarta Cruzada, mas o Papa
da época, Inocêncio III, também já tinha manifestado o seu pesar a
respeito desse trágico incidente. Da sua parte, Inocêncio III fizera
tudo para evitar que isso acontecesse.
Mito nº 8: Os muçulmanos, que conservam uma viva lembrança das Cruzadas, têm toda a razão em odiar o Ocidente.
De
fato, o mundo muçulmano tem uma lembrança das Cruzadas tão boa quanto a
do Ocidente, ou seja, uma lembrança incorreta. Isso não deve
surpreender-nos, pois os muçulmanos obtêm a sua imagem das Cruzadas
através mesmas histórias mal contadas que o Ocidente. O mundo muçulmano
costuma celebrar as Cruzadas como uma grande vitória sua (aliás, eles
venceram mesmo). Mas os autores ocidentais, envergonhados do seu passado
imperialista, inverteram os papéis e passaram a pintar as Cruzadas como
uma agressão e os muçulmanos como pacíficos sofredores agredidos.
Fazendo isso, simplesmente omitiram os séculos de triunfos muçulmanos, e
em seu lugar colocaram apenas o consolo do vitimismo.
Fonte: Ignatius Insight
Tradução: Quadrante
Tradução: Quadrante
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