4. "Por que me persegues?"
Saulo, Schaoul, natural de
Tarso da Cilícia, filho da tribo de Benjamim, a mesma do rei David.
Filho de comerciantes ricos, cidadão romano, ligado à seita dos
fariseus, aluno do glorioso rabino Gamaliel, zeloso defensor da Torá.
Depois de oito dias atravessando a estrada arenosa que ligava
Jerusalém a Damasco, o coração cheio de fúria, inflamado pelo fanatismo
religioso, Saulo estava cansado mas prosseguia com obstinação. Era mais
ou menos meio-dia.
Subitamente, uma luz muito forte o envolveu e o fez cair por terra.
Enquanto tentava compreender o que estava acontecendo, ouviu uma voz:
"Saulo, Saulo, por que me persegues?" Assustado, perguntou: "Quem és,
Senhor?" A voz lhe respondeu: "Eu sou Jesus a quem tu persegues".
"Senhor, que queres que eu faça?" A voz disse: "Levanta-te, entra na
cidade. Aí te será dito o que deves fazer".
Saulo, o perseguidor, converteu-se no grande arauto do cristianismo,
um caso único. Alguém que não chegou a conhecer Jesus pessoalmente, que
não fazia parte dos doze, mas que se lançou na difícil missão de
evangelizar os povos pagãos, percebendo que não era necessário passar
pelo judaísmo para se tornar discípulo de Jesus.
Embora Pedro já tivesse aberto a porta da Igreja para os gentios,
Saulo, ou Paulo, merece sem dúvida o título de Apóstolo das Gentes.
Em 44, achava-se na cidade de Antioquia (foi lá que pela primeira vez
os discípulos de Jesus receberam o nome de "cristãos") com Barnabé. Ao
longo de um ano trabalharam juntos. Na primavera de 45, tomaram um barco
para a ilha de Chipre e depois seguiram para a Panfília, percorrendo,
em seguida, a Licaônia. Paulo entrava nas sinagogas, pregava, procurava
demonstrar que Jesus era o Messias esperado usando as Escrituras.
Depois, voltava-se para os pagãos e anunciava-lhes a Boa-Nova. Sempre
encontrou muitos obstáculos no seu ministério, principalmente a oposição
de seus irmãos de raça.
Quando voltou para Antioquia entrou em confronto com os judaizantes,
que impunham o rito da circuncisão como pré-requisito para seguir Jesus.
A controvérsia é levada até Jerusalém, diante de Pedro, Tiago e João (o
famoso Concílio de Jerusalém, cerca de 49), os quais aprovam o
procedimento de Paulo. Para salvar-se o que importa não é a circuncisão,
mas a fé em Cristo que opera pela caridade. Isto selou o rompimento do
cristianismo com o judaísmo.
Em 49, Paulo sai de Antioquia para uma viagem de três anos. Deixa
Barnabé e toma Silas como companheiro. Na cidade de Listra, Paulo e
Silas encontram Timóteo e seguem atravessando a Frígia e a Galácia,
alcançando a Macedônia. Em Filipos são presos. Em Tessalônica são
acusados de adversários do imperador pelos judeus, porque diziam que
Jesus era rei. Em Beréia, a sinagoga escuta atentamente a pregação de
Paulo, comparando suas palavras com o que havia nas Escrituras.
Quando entra em Atenas, fica impressionado com a enorme quantidade de
ídolos e monumentos aos deuses. Discute com os atenienses na ágora,
tentando usar um pouco da linguagem da filosofia para lhes falar de
Jesus. Quando trata da cruz e da ressurreição, no entanto, é
ridicularizado. Crer que um escravo crucificado saiu de seu túmulo era
demais para a sofisticação intelectual grega.
Logo a seguir desce para Corinto, cidade portuária, na qual existem
dois escravos para cada homem livre. Lá, onde trabalha muita gente vinda
do Oriente, o acolhimento do Evangelho é maior do que em Atenas. Como
fabricante de tendas, Paulo fica na cidade por dezoito meses. Neste
período envia suas duas cartas aos Tessalonicenses. Após uma breve
escala em Éfeso, Paulo volta para a Síria pelo mar.
Em 53, Paulo realiza sua terceira viagem missionária, a mais demorada
de todas. Escolhe Éfeso como base de ação (54-57), de onde envia a
epístola aos Gálatas e a primeira epístola aos Coríntios. Em Corinto
estavam surgindo divisões que enfraqueciam seriamente a comunidade.
Um fabricante de estatuetas de Ártemis provoca um grande tumulto em
Éfeso, contra os cristãos, o que obriga Paulo a partir. O apóstolo segue
para a Macedônia, onde escreve a segunda epístola aos Coríntios. Fica
em Corinto novamente e de lá redige a carta aos Romanos, pedindo ajuda
para efetuar uma viagem evangelizadora até a Espanha.
Antes disso é preciso ir até Jerusalém levar a coleta feita no
Oriente em favor da Igreja-mãe. Saindo de Filipos, ele passa por Trôade e
depois chega a Mileto. Aos efésios, que foram encontrar-se com ele,
confidencia que não espera mais vê-los.
Em Cesaréia tentam detê-lo. No ano de 58, em Pentecostes, encontra-se
na cidade santa. Quase linchado, é preso. Quando vai ser flagelado,
apela para sua condição de cidadão romano, e faz com que o enviem a
Cesaréia, onde mora o procurador Félix. A questão se arrasta por dois
anos. O sucessor de Félix, Festo, cansado de ouvir os apelos de Paulo a
César, envia-o para Roma.
Quando finalmente chega à capital do Império, passa dois anos em
liberdade vigiada, correspondendo-se com as comunidades de Colossas,
Éfeso e Filipos. Neste ponto se encerra a narrativa dos Atos dos
Apóstolos.
As epístolas a Tito e a Timóteo são de um segundo cativeiro, na época da perseguição de Nero.
5. As primeiras comunidades cristãs
O que mais impressiona
nas primeiras comunidades é o fervor e a coragem dos cristãos. Diante
das autoridades e dos líderes religiosos do seu tempo, os fiéis não
temem confessar que Jesus é o Messias. A presença do Espírito Santo é
muito viva. Cada igreja local tinha seus ministros, apóstolos, profetas,
doutores... Todo o fiel recebia de Deus carismas especiais, que devia
colocar à disposição da comunidade (dom de línguas, sabedoria, cura,
ensino...).
A atuação feminina era expressiva, mas não havia confusão entre o
papel do homem e o papel da mulher (a sociedade romana era muito
machista e tratava a mulher como se fosse propriedade do marido; as
crianças também eram desprezadas, podendo ser rejeitadas ou abandonadas à
própria sorte pelo pai - tudo isto muda entre os cristãos). Em Cristo
não há diferença de dignidade entre grego e judeu, homem e mulher,
escravo (a sociedade romana era escravocrata) e livre. Todos se reuniam
para celebrar a eucaristia (ou fração do pão) especialmente no domingo
(que substituiu o sábado como o sétimo dia dos cristãos, por causa da
ressurreição do Senhor), oravam em comum, partilhavam seus bens,
ajudavam os pobres. O rito de iniciação cristã era o batismo, no qual os
efeitos da morte redentora de Cristo eram aplicados sobre o crente.
Havia ainda a imposição de mãos, ou Crisma, através da qual o fiel
confirmava o seu compromisso e assumia uma missão na comunidade, e a
unção dos enfermos, que servia para curar e confortar os doentes.
Uma fonte importante sobre a vida das comunidades cristãs do final do
séc. I e início do séc. II é a Didaqué, ou Instrução dos Doze
Apóstolos, uma espécie de catecismo primitivo. A primeira parte da
Didaqué apresenta os dois caminhos que o homem pode escolher: o da vida e
o da morte. Seguem-se orientações para a conduta dos fiéis e
exortações. Na segunda parte há uma descrição da vida sacramental e da
oração. O batismo é feito em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
e, quando a imersão não é possível, a água pode ser simplesmente
derramada três vezes sobre a cabeça de quem vai receber o sacramento. Os
crentes devem jejuar duas vezes na semana e rezar o Pai Nosso três
vezes por dia. A celebração dominical (Missa) é o sacrifício verdadeiro
que cumpre a profecia de Ml 1,10s. Antes de se realizar a fração do pão
os fiéis fazem uma espécie de ato penitencial (exomologese). A Didaqué
também fala de apóstolos, profetas inspirados pelo Espírito Santo (os
quais chama de sumo sacerdotes) e mestres que percorrem as igrejas.
Bispos e diáconos são escolhidos pelos fiéis, com a mesma dignidade dos
profetas e dos mestres. Por último, adverte contra os "falsos profetas e
corruptores", e contra o anticristo que virá quando o fim estiver
próximo. Aqueles que perseverarem na fé durante a grande tribulação
serão salvos. Depois que o céus se abrirem, após o soar da trombeta e a
ressurreição dos mortos, "o mundo verá o Senhor vindo sobre as nuvens do
céu".
Sobre a penitência, já lemos no evangelho de João (Jo 20,21-23) que
Cristo conferiu aos apóstolos o poder de perdoar pecados. Paulo, em sua
primeira carta aos Coríntios, condena um caso de incesto e excomunga os
responsáveis, esperando que com isto eles se arrependam e retornem para o
Senhor. Na epístola de Tiago há uma exortação para a confissão dos
pecados (Tg 5,16-18). Há casos, porém, de faltas graves para as quais se
hesita em reconhecer a possibilidade de remissão (Hb 10,26ss; ver
também a distinção que o apóstolo João faz entre pecados que levam à
morte e pecados que não levam à morte, 1Jo 5,16). Quem renega a fé não
encontrará misericórdia para seu crime, segundo o autor da carta aos
Hebreus.
Os primeiros cristãos eram geralmente gente simples, das camadas
sociais mais baixas. Exteriormente não se distinguiam das outras pessoas
do seu tempo, mas viviam de modo honesto e digno. Procuravam ser
obedientes às autoridades e oravam pelos governantes.
À frente de cada comunidade havia epíscopos, ou então um colégio de
presbíteros. Havia também diáconos, que cuidavam da administração e da
distribuição dos bens entre os necessitados. Tanto os epíscopos como os
presbíteros e os diáconos eram ordenados através da imposição de mãos.
Esta estrutura ministerial, ainda não muito precisa, deu origem à
hierarquia da Igreja tal como a conhecemos hoje.
Com Santo Inácio de Antioquia as coisas ficarão mais claras: "Que
todos, assim como reverenciam Cristo, reverenciem os diáconos, o bispo,
que é a imagem do Pai, e os presbíteros, que são o Senado de Deus, a
Assembléia dos Apóstolos". No início do século II, este regime se imporá
naturalmente entre as igrejas da Ásia.
O que não se pode negar é que, desde os seus primórdios, a Igreja
possui uma constituição hierárquica, formada pelos apóstolos e por
Pedro, e que esta constituição foi transmitida sempre e
ininterruptamente através do sacramento da Ordem. Os apóstolos fundaram
comunidades e ordenaram pessoas para presidi-las. Estas, por sua vez,
ordenaram outras como sucessoras, e o processo prosseguiu em uma cadeia
contínua que permite ligar cada bispo, cada padre, cada diácono da
Igreja de hoje aos apóstolos e, dos apóstolos, ao próprio Jesus Cristo.
De modo particular, o bispo de Roma é o sucessor do apóstolo Pedro e,
portanto, responsável por garantir a unidade e a integridade da fé da
Igreja.
Outra característica relevante dos primeiros cristãos era a ansiedade
pelo retorno do Senhor, a Parusia. Pelas cartas de Paulo vemos que a
volta iminente de Jesus era crença comum. Nas assembléias litúrgicas
ouvia-se freqüentemente a exclamação cheia de esperança: "Maranatha! Vem
Senhor Jesus!" Com o tempo percebeu-se que a vinda de Jesus não era tão
iminente.
O cristianismo se aproveitou da imensa rede de estradas que
interligava o Império. Desenvolveu-se principalmente no meio urbano. De
boca em boca, através de escravos, mercadores, viajantes, judeus
helenizados, artesãos, a Boa-Nova ia chegando aos lugares mais
distantes. O Império de Roma tornou-se, logo, a "pátria do
cristianismo".
6. Pedro e Paulo
Muitos opõem Pedro a Paulo e insinuam
inclusive que a autoridade deste último na Igreja primitiva era superior
à do primeiro. Nada mais falso. Os Evangelhos mostram claramente a
importância de Pedro como chefe do colégio apostólico e intermediário de
Jesus. "Tu és Kefa e sobre esta Kefa edificarei a minha Igreja". Estas
palavras já são suficientes para estabelecer a importância e a
autoridade superior de Pedro. Junte-se a isto o testemunho dos Atos dos
Apóstolos e o próprio testemunho de Paulo, que fez questão de se
encontrar com Pedro para ter confirmada a sua missão.
Durante a perseguição de Agripa I, Pedro fica preso, mas graças às
orações da Igreja é milagrosamente libertado. Daí em diante não temos
mais informações exatas sobre o seu paradeiro.
Segundo a tradição, Pedro e Paulo foram as colunas da Igreja de Roma.
Na Cidade Eterna, durante a perseguição de Nero, por volta do ano 64,
as vidas dos dois apóstolos foram ceifadas no martírio (Pedro morreu
talvez no ano 64 e Paulo em 63. Mas há estudiosos que propõem outras
datas).
Crê-se que Paulo foi decapitado e Pedro crucificado de cabeça para baixo.
Quando Paulo estava já perto da morte, escreveu estas palavras:
"Quanto a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo de minha
partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a
fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor,
justo juiz, naquele Dia; e não somente a mim, mas a todos os que
tiverem esperado com amor a sua Aparição" (2Tm 4,6-8).
7. Os outros Apóstolos
Existe também uma tradição, consignada
por Eusébio de Cesaréia, que diz que os apóstolos foram dispersos pelos
quatro cantos da terra. Tomé teria ido para o país dos partos, Mateus
para a Etiópia, André para a Cítia e João, para a Ásia, morrendo em
Éfeso. O evangelista Marcos teria fundado igrejas no Egito.
Tiago, irmão de João, foi decapitado por ordem de Agripa I, em 44. Em
62, o sumo sacerdote Anã manda apedrejar Tiago, irmão do Senhor e bispo
de Jerusalém. Ele é sucedido por Simeão, filho de Cleófas e de Maria,
irmã da mãe de Jesus.
8. João
Entre os anos 92 e 96, João, o discípulo que Jesus
amava, encontrava-se na ilha de Patmos, deportado por ordem do imperador
Domiciano. De seu exílio testemunhava a crueldade das perseguições
contra a Igreja.
Inspirado por Deus, sentindo a necessidade de reagir contra o
desespero e a angústia que ameaçavam os cristãos, escreveu um livro que é
o grito de esperança e confiança em Deus de todo seguidor de Jesus: o
Apocalipse.
Quando o primeiro século chega ao seu final, o apóstolo é um ancião
venerável, cheio de glória e santidade, reverenciado por toda a Igreja. O
seu corpo conservava as marcas do suplício do óleo fervente, do qual
tinha sobrevivido milagrosamente.
Entre 96 e 104 conclui o quarto Evangelho. Entre suas maiores
preocupações estavam as heresias e os erros que ameaçavam a integridade
da fé. Seu estilo teológico é bem particular, marcado por influências do
pensamento grego (o Verbo, ou Logos, por exemplo).
Com a morte do discípulo que Jesus amava, aquele que recebeu Maria em
sua casa como mãe, que viu o sangue e a água saindo do lado do Salvador
e que conheceu e tocou com as mãos o Verbo da Vida, encerram-se os
tempos apostólicos.
(Continua...)
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