terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Pertença, interação e cuidado. Por uma reinvenção da fraternidade!

[domtotal]
Por Sinivaldo S. Tavares*



Existe um parentesco com toda a vida, expresso na interdependência entre todos os seres, que se encontra na base da formulação do termo 'comunidade de vida'.



CF 2017: Fraternidade, biomas brasileiros e defesa da Vida (Divulgação)

“Fraternidade, biomas brasileiros e defesa da Vida” foi o tema elegido pela Igreja no Brasil para animar a celebração da Campanha da Fraternidade de 2017. Trata-se de uma feliz escolha. Na verdade, poucos temas gozam, nos dias de hoje, de tamanha relevância. A consciência de que tudo está interligado traz consigo o urgente desafio de reinventar a fraternidade, recriando relações de pertença, interação e cuidado não apenas entre nós, humanos, mas também entre nós e o conjunto das criaturas.
E estas novas relações que buscamos reinventar entre todos os seres é condição da tão almejada defesa da vida. Neste sentido, nós cristãos reconhecemos a incumbência, dada pelo Criador, de nos sentirmos parte da inteira criação e de interagirmos com as criaturas, numa singela, porém, imprescindível atitude de cuidado. Para tanto, queremos aproveitar esse tempo favorável da quaresma para nos exercitar na conversão evangélica que, como nos lembra Francisco, na Laudato Si, necessita incorporar em seu processo a conversão ecológica.
Somos ainda reféns de atitudes e mentalidades que operam um corte bem nítido entre, por um lado, a compreensão de fraternidade e, por outro, a de biomas brasileiros. E poderíamos até falar de defesa da vida em relação a um e outro, mas em campos semânticos bem diversos. Afinal, no primeiro caso, o da fraternidade, falar-se-ia de vida humana; enquanto que, no segundo, o dos biomas, a vida seria vegetativa e animal. E isso porque ainda somos fortemente marcados pelo paradigma hegemônico da Modernidade: antropocêntrico, mecanicista e racionalista.
Do ponto de vista do direito privado, o antropocentrismo moderno se revela na oficialização jurídica da existência de “pessoas” e “coisas” apenas: expressão da cosmovisão moderna que separa a realidade em “sujeitos” e “objetos”. Segundo esta configuração epistemológica, sujeito mesmo é, a rigor, apenas o próprio indivíduo considerado em si mesmo. Todo o resto é sistematicamente reduzido à condição de meros “objetos”. Esta é a fatalidade do nosso paradigma civilizacional moderno. Segundo este pressuposto, tão somente o ser humano existe “por amor a si mesmo” (Kant). Todo o restante existe apenas por causa dele e em função dele. O sentido das demais “coisas” reside propriamente no seu estar à disposição do ser humano. Este antropocentrismo moderno acaba, assim, produzindo uma situação na qual a natureza resulta sem alma e os seres humanos, meros sujeitos incorpóreos.
O saber simplificador e mutilador, típico da Modernidade ocidental, opera fundamentalmente ordenando os objetos de seu conhecimento e, ao mesmo tempo, eliminando toda sorte de desordem. Ele se revela, portanto, intrinsecamente excludente no seu modo de conhecer. A conjunção preferida pelo saber simplificador é ou: ou isso ou aquilo. A rigor, não se trata de uma conjunção, mas, para todos os efeitos, de uma disjunção. O pensar simplificador ou disciplinar opera ou a disjunção ou a redução. Ou ele separa o que está intrinsecamente ligado (disjunção) ou ele unifica o que é diverso, reduzindo o diferente à monotonia imperativa do mesmo (redução).
Esse saber disciplinar operou uma disjunção entre “ciências humanas e sociais” e “ciências naturais”.  Sancionou-se, assim, a separação entre a existência humana e a história, de um lado, e, de outro, o mundo orgânico e natural. A teologia cristã passou a se ocupar quase exclusivamente da existência humana e da história da humanidade. E, por sua vez, a ciência moderna se sentiu livre e desimpedida para realizar suas pesquisas e elaborar suas teorias acerca do mundo gozando de uma autonomia quase absoluta. E no cume de todo esse processo, encontra-se o ser humano em uma condição singularmente paradoxal: por um lado, ele é considerado o ápice da criação, todavia, por outro, proposto como um anel fora da rica e complexa teia das criaturas.
Cresce cada vez mais, no entanto, em nosso meio a consciência de pertencermos, as criaturas todas, à “comunidade de vida”. É ilusão nossa acreditar que as distintas singularidades próprias das criaturas na sua complexidade são tuteladas mediante cortes dicotômicos e assépticas vivisseções cirúrgicas. Qual teia de relações, o real é extremamente complexo. Particularmente densa é a complexidade em todos os organismos vivos. E o planeta Terra se revela sempre mais como um grande organismo vivo. As distintas singularidades emergem mais nitidamente no bojo das intrínsecas reciprocidades que compõem esta teia da vida. No caso específico do ser humano, sua peculiar singularidade emergirá, portanto, na medida em que o inserirmos na sua comunidade de vida. Nesse sentido, a autêntica tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana pressupõe um cuidado especial para que também sejam salvaguardados os direitos da Humanidade e também os direitos da Terra e de sua comunidade de vida. Convém hoje mais do que nunca salientar a reciprocidade entre a tutela da dignidade humana e a defesa da dignidade da Terra e, portanto, a mútua implicação entre ambas. Toda vez que se ferem os direitos das demais criaturas e do planeta como um todo, acaba-se desrespeitando os direitos da pessoa humana. A natureza, entendida como o conjunto de todas as criaturas, deve ser protegida pelo que ela é e não enquanto eventual potencial à disposição do ser humano. O planeta deve ser, portanto, salvaguardado em nome de uma dignidade que, para todos os efeitos, lhe é própria.
O conceito de “comunidade de vida” foi proposto pela “Carta da Terra” que o emprega com grande ênfase ao se referir às relações existentes entre as várias formas de vida no Planeta. Com isso não se quer anular as diferenças existentes entre eles; mas sim frisar que as distintas singularidades emergem justamente no bojo das interrelações existentes entre todos os seres. Existe um parentesco com toda a vida, expresso na interdependência entre todos os seres, que se encontra na base da formulação do termo “comunidade de vida”. Pois como lemos na carta da Terra: “A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, é viva como uma comunidade de vida incomparável” (Preâmbulo). Neste sentido, salientamos a peculiar relevância da “Carta da Terra” na medida em que revela uma compreensão alternativa do direito como interrelação entre direitos humanos, direitos sociais, direitos ecológicos e direitos da Terra, Planeta vivo.
Os sentimentos de pertença, interação e cuidado são, para todos os efeitos, os novos nomes da fraternidade. E, enquanto tais, já se faziam presentes nos textos fontais de nossa tradição de fé quando, por exemplo, segundo a legislação vétero-testamentária, os dias e anos sabáticos deviam valer também para os animais e para a própria terra. Os textos de Lv 25 e 26 prescrevem o “sábado da terra”; e os textos de Ex 23 e de Lv 25 recomendam que, durante o ano sabático, se deixe a terra inculta para propiciar o direito da respiga aos pobres e para que a própria terra descanse de sua fadiga. Todavia, o texto mais expressivo desta consciência é a ameaça divina de que o povo escolhido será entregue ao cativeiro da Babilônia até que a terra – a terra de Deus – tenha desfrutado todos os seus sábados (cf. 2Cr 36,21).
Ao longo da quaresma de 2017, inspirados pelo tema da campanha da fraternidade, somos particularmente interpelados a recriar relações que antecipem de alguma forma a imagem bíblica do paraíso terrenal. Na narrativa de Gn 2,4b-25, por exemplo, afloram relações de pertença, de interação e de cuidado como constitutivas do ato criador de Deus. E tudo é dito metaforicamente. O relato inicia falando de uma dupla carência, responsável pelo caráter inóspito e desértico da terra: a falta de alguém que cuide/cultive da terra e a carência de chuvas que a tornem fértil. O ser humano “cultivador/cuidador” (Adam) é modelado pelo Criador a partir da própria “terra cultivável” (adamah). É, de fato, essa experiência de íntima pertença que faz do ser humano o cuidador/cultivador da terra, por meio de distintas interações. Nesta narrativa, o Criador aparece como aquele artesão cuidadoso que plasma o ser humano do próprio barro da terra para que ele seja seu cultivador/cuidador. Porque feito do barro da terra, o ser humano é chamado a ser o cultivador da terra. Pertença, interação e cuidado, portanto, constituem simultaneamente a reinvenção da fraternidade. 

*Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG

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