sábado, 21 de maio de 2011

Tomás responde: A morte pertence à razão de martírio?

sumateologica

 
Giorgio Vasari (1511-1574), O Martírio de Estêvão (1565)
Parece que a morte não pertence à razão de martírio:

1. Com efeito, Jerônimo escreve: “Direi com muita propriedade que a mãe de Deus é virgem e mártir, embora tenha terminado seus dias na paz”. E Gregório: “Embora não ofereça muitas oportunidades de perseguições, a paz tem também seu martírio, porque embora não submetamos nossos pescoços ao grilhão, contudo, trucidamos na mente os desejos carnais com a espada espiritual. Logo, pode haver martírio sem sofrer a morte.
2. Ademais, lemos que algumas mulheres, para conservar a integridade do corpo, louvavelmente, desprezaram a própria vida; assim, parece que a integridade corporal é preferida à vida corporal. Ora, às vezes, a integridade do corpo é subtraída, ou se ameaça subtrair, pela confissão da fé cristã. Como se vê no caso de Inez e de Luzia. Logo, parece que se deveria falar de martírio quando uma mulher perde a integridade de seu corpo pela fé em Cristo, mais do que quando perde também a própria vida. Daí esta palavra de Luzia: “se tu me fazes violência contra a minha vontade, minha castidade vai me valer uma coroa dupla”.
3. Além disso, o martírio é um ato da fortaleza. Como diz Agostinho, cabe a fortaleza não apenas não ter medo da morte, como também não ter medo de nenhuma outra adversidade. Ora, existem muitas outras adversidades, afora a morte, que podem suportar pela fé no Cristo: a prisão, o exílio, espoliação dos bens, como mostra a Carta aos Hebreus (10, 34). É assim que a Igreja celebra o martírio do Papa Marcelo, que no entanto morreu na cadeia. Logo, não é necessário sofrer a pena de morte para ser mártir.
4. Ademais, o martírio é um ato meritório. Ora, não existe ato meritório após a morte. Logo, este ato precede a morte. E como tal não pertence à razão do martírio.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, Máximo diz, em um panegírico de mártir: “Ele é vencedor, morrendo pela fé e seria vencido se sem fé continuasse vivendo”.
Chama-se de mártir aquele que é como que uma testemunha da fé cristã que nos propõe desprezar o mundo visível pelas realidades invisíveis, segundo a Carta aos Hebreu (11). Pertence, pois, ao martírio que o homem dê testemunho de sua fé, mostrando por fatos que despreza as coisas presentes para alcançar os bens futuros invisíveis. Ora, enquanto o homem conserva a vida do corpo, não mostra ainda, pelos fatos, que despreza todas as realidades corporais, pois os homens costumam, para conservarem a vida, menosprezar os parentes e as riquezas, e até mesmo a suportar os sofrimentos físicos. De onde aquela insinuação de Satanás contra Jó: “Pele por pele! E tudo aquilo que o homem possui, ele o dará por sua alma”, quer dizer, por sua vida corporal. Portanto, para a perfeição da razão de martírio é necessário morrer por Cristo.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Os textos citados, e outros semelhantes, empregam a palavra martírio no sentido metafórico.
2. No caso das mulheres que perdem a sua integridade física, ou que são condenadas à violação por causa de sua fé cristã, não fica automaticamente evidente aos olhos humanos, se ela é vítima de seu amor à fé cristã, ou se pode haver desprezo da castidade. E por isso, aos olhos dos homens, não há nisso um testemunho suficiente e este ato não tem razão suficiente de martírio. Ora, para Deus, que penetra nos corações, isto pode credenciá-las para uma recompensa, segundo a palavra de Luzia.
3. A fortaleza se manifesta principalmente frente aos perigos de morte, e, por conseqüência, frente a outros perigos. É por isso que não se pode falar de martírio propriamente dito no caso daqueles que sofreram apenas a prisão, o exílio ou a espoliação dos bens, a menos que estas penas tenham resultado em morte.
4. O mérito do martírio não se situa depois da morte, mas na própria aceitação voluntária da morte. Ocorre às vezes que, após ter recebido por causa de Cristo, feridas mortais e outras violências prolongadas até quase à morte, o mártir tenha conseguido sobreviver ainda por muito tempo. Nesse estado, o ato do martírio é meritório e também no momento mesmo em que se suportam os suplícios.
Fonte: Suma Teológica II-II, q.124, a.4


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