07/04/2012
IHU - "Jesus luta com o Pai: melhor, luta consigo mesmo; e luta por
nós. Sente angústia frente ao poder da morte. Este sentimento é, antes
de mais nada, a turvação que prova o homem, e mesmo toda a criatura
viva, em presença da morte. Mas, em Jesus, trata-se de algo mais. Ele
estende o olhar pelas noites do mal; e vê a maré torpe de toda a
mentira e infâmia que vem ao seu encontro naquele cálice que deve
beber", afirma Bento XVI, na homilia proferida ontem, em Roma, e publicada pelo sítio do Vaticano, 05-04-2012.
Segundo ele, "na luta da oração no Monte das Oliveiras, Jesus desfez a
falsa contradição entre obediência e liberdade, e abriu o caminho para
a liberdade".
Eis o texto.
A Quinta-feira Santa não é
apenas o dia da instituição da Santíssima Eucaristia, cujo esplendor se
estende sem dúvida sobre tudo o mais, tudo atraindo, por assim dizer,
para dentro dela. Faz parte da Quinta-feira Santa também a noite escura
do Monte das Oliveiras, nela Se embrenhando Jesus com
os seus discípulos; faz parte dela a solidão e o abandono vivido por
Jesus, que, rezando, vai ao encontro da escuridão da morte; faz parte
dela a traição de Judas e a prisão de Jesus, bem como a negação de
Pedro; e ainda a acusação diante do Sinédrio e a entrega aos pagãos, a
Pilatos. Nesta hora, procuremos compreender mais profundamente alguma
coisa destes acontecimentos, porque neles se realiza o mistério da nossa
Redenção.
Jesus embrenha-se na noite. A noite significa falta de
comunicação, uma situação em que não nos vemos um ao outro. É um
símbolo da não compreensão, do obscurecimento da verdade. É o espaço
onde o mal, que em presença da luz tem de se esconder, pode
desenvolver-se. O próprio Jesus – que é a luz e a verdade, a
comunicação, a pureza e a bondade – entra na noite. Esta, em última
análise, é símbolo da morte, da perda definitiva de comunhão e de vida.
Jesus entra na noite para a superar, inaugurando o novo dia de Deus na
história da humanidade.
Pelo caminho, Jesus cantou com os seus
discípulos os Salmos da libertação e redenção de Israel, que evocavam a
primeira Páscoa no Egito, a noite da libertação. Chegado ao destino Ele,
como faz habitualmente, vai rezar sozinho e, como Filho, falar com o
Pai. Mas, diversamente do que é costume, quer ter perto de Si três
discípulos: Pedro, Tiago e João; são os mesmos três que viveram a
experiência da sua Transfiguração – viram transparecer, luminosa, a
glória de Deus através da sua figura humana – , tendo-O visto no centro
da Lei e dos Profetas, entre Moisés e Elias.
Ouviram-No falar, com ambos, acerca do seu «êxodo» em Jerusalém. O
êxodo de Jesus em Jerusalém: que palavra misteriosa! No êxodo de Israel
do Egipto, dera-se o acontecimento da fuga e da libertação do povo de
Deus. Que aspecto deveria ter o êxodo de Jesus, para que nele se
cumprisse, de modo definitivo, o sentido daquele drama histórico? Agora
os discípulos tornavam-se testemunhas do primeiro trecho de tal êxodo – a
humilhação extrema –, mas que era o passo essencial da saída para a
liberdade e a vida nova, que o êxodo tem em vista. Os discípulos, cuja
proximidade Jesus pretendeu naquela hora de ânsia extrema como elemento
de apoio humano, depressa se adormentaram. Todavia ainda ouviram alguns
fragmentos das palavras ditas em oração por Jesus e observaram o seu
comportamento. Estas duas coisas gravam-se profundamente no espírito
deles, que depois as transmitiram aos cristãos para sempre. Jesus chama a
Deus «Abbá»; isto significa – como eles adiantam – «Pai». Não é, porém,
a forma usual para dizer «pai», mas uma palavra própria da linguagem
das crianças, ou seja, uma palavra meiga que ninguém ousaria aplicar a
Deus. É a linguagem d’Aquele que é verdadeiramente «criança», Filho do
Pai, d’Aquele que vive em comunhão com Deus, na unidade mais profunda
com Ele.
Se nos perguntássemos qual era o elemento mais
característico da figura de Jesus nos Evangelhos, temos de dizer: a sua
relação com Deus. Ele está sempre em comunhão com Deus; estar com o Pai é
o núcleo da sua personalidade. Através de Cristo, conhecemos
verdadeiramente Deus. «A Deus jamais alguém O viu»: diz São João. Aquele
que «está no seio do Pai (…) O deu a conhecer» (1, 18). Agora
conhecemos Deus, como Ele é verdadeiramente: Ele é Pai; e Pai com uma
bondade absoluta, à qual nos podemos confiar. O evangelista Marcos, que
conservou as recordações de São Pedro, narra que Jesus, depois da
invocação «Abbá», acrescentou: Tudo Te é possível; Tu podes tudo (cf.
14, 36). Aquele que é a Bondade, ao mesmo tempo é poder, é omnipotente. O
poder é bondade e a bondade é poder. Esta confiança podemos aprendê-la a
partir da oração de Jesus no Monte das Oliveiras.
Antes de
refletir sobre o conteúdo da súplica de Jesus, devemos ainda fixar a
nossa atenção sobre o que os evangelistas nos referem a propósito do
comportamento d’Ele durante a sua oração. Mateus e Marcos dizem-nos
que «caiu com a face por terra» (Mt 26, 39; cf. Mc 14, 35), assumindo
por conseguinte a posição de submissão total, como se manteve na
liturgia romana de Sexta-feira Santa. Lucas, por sua vez, diz-nos que
Jesus rezava de joelhos. Nos Atos dos Apóstolos, fala
da oração de joelhos feita pelos santos: Estêvão durante a sua
lapidação, Pedro no contexto da ressurreição de um morto, Paulo a
caminho do martírio. Assim Lucas redigiu uma pequena
história da oração feita de joelhos na Igreja nascente. Ajoelhando-se,
os cristãos entram na oração de Jesus no Monte das Oliveiras. Ameaçados
pelo poder do mal, eles ajoelham: permanecem de pé frente ao mundo, mas,
enquanto filhos, estão de joelhos diante do Pai. Diante da glória de
Deus, nós, cristãos, ajoelhamo-nos reconhecendo a sua divindade; mas,
com tal gesto, exprimimos também a nossa confiança de que Ele vence.
Jesus
luta com o Pai: melhor, luta consigo mesmo; e luta por nós. Sente
angústia frente ao poder da morte. Este sentimento é, antes de mais
nada, a turvação que prova o homem, e mesmo toda a criatura viva, em
presença da morte. Mas, em Jesus, trata-se de algo mais. Ele estende o
olhar pelas noites do mal; e vê a maré torpe de toda a mentira e infâmia
que vem ao seu encontro naquele cálice que deve beber. É a turvação
sentida pelo totalmente Puro e Santo frente à torrente do mal que inunda
este mundo e que se lança sobre Ele. Vê-me também a mim, e reza por
mim. Assim este momento da angústia mortal de Jesus é um elemento
essencial no processo da Redenção; de fato, a Carta aos Hebreus
qualificou a luta de Jesus no Monte das Oliveiras como um acontecimento
sacerdotal. Nesta oração de Jesus, permeada de angústia mortal, o
Senhor cumpre a função do sacerdotes: toma sobre Si o pecado da
humanidade, toma a todos nós e leva-nos para junto do Pai.
Por
último, devemos debruçar-nos sobre o conteúdo da oração de Jesus no
Monte das Oliveiras. Jesus diz: «Pai, tudo Te é possível; afasta de Mim
este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres» (Mc
14, 36). A vontade natural do Homem Jesus recua, assustada, perante uma
realidade tão monstruosa; pede que isso Lhe seja poupado. Todavia,
enquanto Filho, depõe esta vontade humana na vontade do Pai: não Eu, mas
Tu. E assim Ele transformou a atitude de Adão, o pecado primordial do
homem, curando deste modo o homem. A atitude de Adão fora: Não o que
quiseste Tu, ó Deus; eu mesmo quero ser deus. Esta soberba é a
verdadeira essência do pecado. Pensamos que só poderemos ser livres e
verdadeiramente nós mesmos, se seguirmos exclusivamente a nossa vontade.
Vemos Deus como contrário à nossa liberdade. Devemos libertar-nos d’Ele
– isto é todo o nosso pensar –; só então seremos livres. Tal é a
rebelião fundamental, que permeia a história, e a mentira de fundo que
desnatura a nossa vida. Quando o homem se põe contra Deus, põe-se contra
a sua própria verdade e, por conseguinte, não fica livre mas alienado
de si mesmo. Só somos livres, se permanecermos na nossa verdade, se
estivermos unidos a Deus. Então tornamo-nos verdadeiramente «como Deus»;
mas não opondo-nos a Deus, desfazendo-nos d’Ele ou negando-O. Na luta
da oração no Monte das Oliveiras, Jesus desfez a falsa contradição entre
obediência e liberdade, e abriu o caminho para a liberdade. Peçamos ao
Senhor que nos introduza neste «sim» à vontade de Deus, tornando-nos
deste modo verdadeiramente livres. Amen.
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