[unisinos]
Professor de teologia pastoral dos sacramentos, Nicola Reali argumenta que, na atual normativa eclesiástica, a fé pessoal não é uma das propriedades essenciais das bodas. Quanto ao "motu proprio" do papa sobre o tema da nulidade do vínculo entre os esposos,
ele diz: "É um passo na direção de uma abordagem à família pastoral".
E, na Igreja, o debate se torna cada vez mais vivo às vésperas do Sínodo.
A reportagem é de Paolo Rodari, publicada no jornal La Repubblica, 16-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Professor de teologia pastoral dos sacramentos no Pontifício Instituto Redemptor Hominis da Pontifícia Universidade Lateranense, Nicola Reali recentemente publicou pela editora Edb o livro Quale fede per sposarsi in chiesa? Riflessioni teologico-pastorali sul sacramento del matrimonio [Qual
fé para se casar na Igreja? Reflexões teológico-pastorais sobre o
sacramento do matrimônio]. Um trabalho útil, especialmente em vista da
sessão de outubro do Sínodo sobre a família.
Eis a entrevista.
Professor, no centro do seu trabalho está uma tese não tão óbvia, ao menos para os não adeptos aos trabalhos: a fé não é necessária para que o sacramento do matrimônio seja válido. É isso mesmo?
Sim, com efeito, é assim. Hoje em dia, na atual normativa
eclesiástica, a fé pessoal de quem se casa não é uma das propriedades
essenciais que tornam válido (e, portanto, sacramento), um matrimônio
entre dois batizados. Mais precisamente: segundo o direito canônico,
para que um matrimônio seja válido, é preciso que sejam respeitadas
algumas características: acima de tudo, que seja heterossexual (entre um
homem e uma mulher), que seja "um" (isto é, que rejeite toda forma de
poligamia ou de poliandria), que seja "indissolúvel" (isto é, que exclua
toda forma de divórcio) e que seja fecundo (isto é, aberto à
transmissão da vida).
Ora, quando essas características são respeitadas, um matrimônio é
válido e – se for celebrado nas formas previstas pelo direito, entre
dois batizados católicos – também é ipso facto um sacramento. Portanto,
não há necessidade de se estudar sabe-se lá qual tipo de teologia para
entender que, desse modo, a fé pessoal de quem se casa (quer creia ou
não em Jesus Cristo, em JHWH ou em ninguém) não se encaixa nessas
características e, portanto, não se encaixa entre os elementos que,
estabelecendo a validade do matrimônio, determinam ao mesmo tempo também
a sua sacramentalidade.
Obviamente, é preciso especificar que o que foi afirmado até agora é a
posição do direito canônico, não da Igreja como tal. Dito de outra
forma: o direito canônico, como todo direito, é a lei que regula a vida
da Igreja nos seus aspectos fundamentais, mas a vida da Igreja não se
reduz às suas leis canônicas, é mais ampla. Portanto, não é totalmente
correto afirmar que a Igreja não considera a fé como um elemento
essencial para a celebração do matrimônio cristão, mas unicamente o
direito canônico.
Prova disso é que a pastoral ordinária das paróquias, vice-versa,
aponta muito para a fé daqueles que querem se casar na Igreja. Tanto é
que qualquer pessoa, por experiência própria ou alheia, sabe muito bem
que se casar na Igreja significa participar de cursos de preparação para
o matrimônio, que, de maneira explícita, enfatizam o valor da adesão
pessoal à fé da Igreja.
Portanto, o conteúdo central do meu livro vai na linha de querer
evidenciar como a ação cotidiana de todos aqueles – sacerdotes e leigos –
que se empenham para favorecer uma abordagem ao sacramento do
matrimônio que leve em conta a fé daqueles que se casam não seja um
caminho totalmente paralelo – no meu livro, eu falo de "dois mundos
separados" – no que diz respeito à disciplina canônica, que, ao
contrário, não considera a fé como um elemento essencial para a válida
celebração do matrimônio.
Talvez, chegou o momento de que os problemas da pastoral não sejam
considerados somente como "problemas pastorais" que devem ser resolvidos
pelos párocos, enquanto os cultores da disciplina canônica continuam
afirmando uma normativa (que, aliás, remonta há cinco séculos) para
salvaguardar a juridicidade do direito.
Demos um passo à frente e passemos agora às recentes cartas "motu proprio", com as quais o papa reviu o processo canônico no que diz respeito às causas de declaração de nulidade do matrimônio. O que motivou, na sua opinião, essa decisão de Francisco?
Eu acho que o ato com que, no dia 8 de setembro passado, o Papa Francisco
reviu alguns aspectos do processo canônico de declaração de nulidade do
matrimônio, salvo melhor juízo, vai justamente na linha agora indicada
e, portanto, desse ponto de vista, é seguramente o primeiro e decisivo
passo na direção de uma abordagem ao tema do matrimônio e da família
explicitamente pastoral. Pastoral significa, a meu ver, acima de tudo,
colocar no centro de toda reflexão a tarefa fundamental da Igreja de
anunciar o Evangelho do matrimônio e da família às mulheres e aos homens
do nosso tempo.
Levando em conta, de fato, que hoje em dia o ponto no qual a Igreja
experimenta a maior dificuldade em comunicar a sua mensagem é o da
indissolubilidade, o Papa Francisco tentou prover a
essa emergência pastoral simplificando e acelerando o processo jurídico
de declaração de nulidade, que tinha permanecido inalterado nos seus
aspectos fundamentais por muito tempo. Um modo simples, mas concreto, de
ir ao encontro de todas aquelas pessoas que – como diz o próprio motu proprio
–, "embora desejando prover à própria consciência, muitas vezes são
desviados das estruturas jurídicas da Igreja por causa da distância
física ou moral".
Da mesma forma, também, a ênfase da importância e da decisão do papel
e do juízo do bispo traz à tona a necessidade de considerar a questão
da nulidade matrimonial dentro das prerrogativas pastorais de um bispo,
em vez de ser delegado a especialistas que se comportam como
profissionais do direito.
Embora pouco mude em matéria doutrinal, tudo isso dá origem a uma mudança importante.
A mudança está diante dos olhos de todos. Especialmente se considerarmos que, desse modo, o Papa Francisco
exorta toda a comunidade eclesial a enfrentar a emergência pastoral
sobre o matrimônio e a família, sem ter que começar sempre a partir de
uma genérica (e estéril) lamentação sobre os tempos que a Igreja vive.
Em outras palavras, o Papa Francisco se distancia daquela tendência,
abundantemente documentada nas últimas décadas, que, diante da crise da
visão cristã do matrimônio e da família, não soube fazer nada mais do
que imputar ao mundo contemporâneo a culpa por essa crise, sem saber
fazer nada mais do que reiterar a própria posição.
Dito de modo mais simples: diante de um mundo que já não acredita
mais na indissolubilidade do matrimônio, muitas vezes não se fez nada
mais do que reafirmar que o matrimônio é indissolúvel, endossando a
responsabilidade pelo esquecimento dessa verdade às formas
socioculturais do mundo contemporâneo. Agora, é claro que a Igreja não
pode renunciar a proclamar a indissolubilidade do vínculo conjugal; mas
pode se limitar a isso? A condição das mulheres e dos homens do nosso
tempo – uma condição que certamente nem sempre pode agradar, porque é
densa de dramas, complicações e equívocos –, contudo, é de fato a
realidade em que a Igreja é posta e é chamada a viver até o fim a sua
missão e o seu testemunho.
Razão pela qual assumir sempre como ponto de partida um juízo
negativo sobre o mundo de hoje – pastoralmente falando – não faz nenhum
sentido e não tem nenhuma utilidade, porque desloca imediatamente o
problema: do de anunciar o Evangelho às mulheres e aos homens de hoje ao
de se interrogar sobre a distância das formas de vida contemporâneas
daquelas desejadas pela Igreja.
O Papa Francisco, que obviamente não renuncia a
anunciar incansavelmente o conteúdo da doutrina tradicional (e quem
pensa o contrário é de má-fé), com a promulgação do motu proprio
de 8 de setembro, simplesmente afirmou que, mesmo que o mundo de hoje
tenha mil e um problemas, não podemos nos limitar a culpá-lo e,
portanto, não podemos nos esquecer de todas aquelas mulheres e aqueles
homens que sofrem pela sua situação matrimonial, oferecendo-lhes um
sinal concreto de proximidade e de misericórdia por parte da Igreja.
Esse é o primeiro passo. Ainda há algo a se fazer? A partir da leitura do seu livro, parece que sim.
A outra coisa a se fazer, na minha opinião, seria tomar consciência
daquilo que não só está diante dos olhos de todos aqueles que têm um
mínimo de experiência pastoral, mas também aquilo que foi várias vezes
afirmado pelos dois últimos pontífices, ou seja, que a crise de tantos
matrimônios, como dito antes, se origina de uma carência ou ausência de
fé naquilo que se celebra na Igreja. São muitos os matrimônios oficiados
sem nenhuma fé naquilo que é celebrado! A comunidade cristã deve fazer
algo e não pode assistir impotente a essas multidões de não crentes que
se colocam diante do altar do Senhor para celebrar as bodas.
Voltemos ao ponto da fé daqueles que se casam. Não é óbvio que para se casar na Igreja é preciso ter fé?
Tão óbvio não é, porque, em todo o caso, não se pode deixar de levar
em conta a mudança sociocultural que ocorreu. Dito de outra forma: não
se pode falar e propor a visão cristã do matrimônio e da família sem
levar em conta que, mesmo nos nossos dias, aquela adesão, ainda que
mínima, aos valores "naturais", que durante séculos, de uma forma ou de
outra, pertenceu à grande maioria das pessoas, hoje não existe mais. Não
sei se perseverar assumindo como óbvio aquilo que, talvez, até 50 anos
atrás podia se considerar como óbvio é o melhor caminho a se percorrer.
No fim das contas, essa é a intenção com que eu escrevi o meu livro:
certamente não para imprimir um panfleto polêmico, mas unicamente para
entender os motivos que levaram a Igreja a assumir essa posição,
destacando ao mesmo tempo a possibilidade e a oportunidade ao menos de
uma discussão, franca e livre, sobre a oportunidade de manter viva uma
normativa jurídica de cinco séculos atrás hoje, em um mundo que,
evidentemente, não é mais o de ontem.
A meu ver, a revisão da normativa não comprometeria minimamente, do ponto de vista doutrinal, o depositum fidei
da Igreja, porque o valor do matrimônio natural (que é o que a
normativa atual quer garantir) seria, em todo o caso, salvaguardado:
apenas se deveria reconhecer que não é suficiente ser batizado para que o
próprio matrimônio natural seja um sacramento, pelo simples fato de
que, para além dos "ateus devotos", existem também os batizados pouco
devotos e até mesmo não crentes.
Espero que a próxima Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, partindo do que foi afirmado no Relatório Final do ano passado (n. 48) e no Instrumentum laboris
(n. 40), possa enfrentar e resolver esse problema, sem ter medo de
abandonar aquilo que está ligado a um mundo que não existe mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário