[unisinos]
"A aceitação desta tese, que goza de uma consistente plausibilidade, e
sua concreta aplicação só podem favorecer o incremento de declarações
de nulidade, levantando sérios problemas no âmbito de
países como o nosso [Itália], no qual ainda vige a forma do matrimônio
concordatário que tem imediatos efeitos civis com a cessação, no caso de
anulação, de toda obrigação, também de caráter financeiro, ante o
ex-cônjuge, por isso com pesadas consequências no terreno da justiça".
A análise é do teólogo italiano Giannino Piana,
ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da
Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, 01-10-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A Carta apostólica (Motu proprio) do Papa Francisco sobre a declaração de nulidade dos matrimônios religiosos,
instituto que tem na igreja uma tradição plurissecular, não deixou de
suscitar um consenso bastante amplo, tanto no interior do mundo católico
como também no interior do laico. À distância de aproximadamente três
séculos da reforma de Bento XVI, o processo canônico a
respeito de tal matéria resulta de fato radicalmente revisto, com um
intento claramente pastoral – o Papa fala com clareza nas premissas de
“preocupação pela salvação das almas” – inspirado na caridade e na
misericórdia, como emerge também do próprio título da carta apostólica Mitis Iudex Dominus Iesus [Suave Juiz Senhor Jesus] de Bento XIV.
A solicitação à intervenção – recorda-o ainda o Papa Francisco
– veio de um impulso da base, a de um número sempre mais consistente de
fiéis que, encontrando-se em situações matrimoniais difíceis e
considerando, além disso, ser em consciência inválido o próprio
matrimônio, vivem com mal-estar o confronto com a disciplina tutora em
curso, pela distância física e moral das estruturas jurídicas,
excessivamente burocratizadas, de suas vivências pessoais.
As novidades do documento
Muitas e de grande significado são as novidades que o documento
introduz, e importantes são os critérios que inspiraram a reforma. A
intenção do Papa é a de favorecer maior rapidez do
processo, acelerando os procedimentos, e criando as condições para a
possibilidade de acesso da parte de todos, evitando o risco (não de todo
hipotético, se consideram as estatísticas referentes ao passado
recente) que se reduza a instrumento elitista.
Sobre o primeiro aspecto – aquele da aceleração dos procedimentos –
diversas (e ademais eficazes) são as cláusulas introduzidas: da
superação, nos casos normais, da dupla decisão para dar lugar a uma só
sentença à introdução de uma forma de processo mais breve nos casos em
que a questão seja proposta por ambos os cônjuges ou por um deles com o consenso do outro e a nulidade
seja defendida por argumentos particularmente evidentes, além de
recorrerem circunstâncias de fatos e de pessoas que a tornem manifesta.
Sobre o segundo aspecto – aquele da possibilidade de acesso da parte
de todos – importante é o apelo do documento em assegurar a gratuidade
das prestações, indo além, em caso de necessidade, ao patrocínio gratuito, aliás, já assegurado pelo regime vigente, e reduzindo, também nos casos normais, as tarifas hodiernas.
Mas, o aspecto (talvez) mais significativo é constituído pela
assignação à igreja local, na pessoa do bispo que, na maioria dos casos,
se torna por isso mesmo juízo, a responsabilidade direta (e exclusiva)
da sentença. Esta forma de descentração, além de representar uma
aplicação concreta da eclesiologia do Vaticano II,
que restituiu à igreja local a plena dignidade de igreja, é a cifra
mais evidente daquela concepção pastoral (e não puramente jurídica ou
canonista) – como já foi recordado – destinado a favorecer um melhor
conhecimento das situações e dos problemas das pessoas envolvidas e a
permitir, consequentemente, maior direcionalidade no modo de avaliar as
circunstâncias, com a possibilidade de um juízo mais cônscio e
equilibrado.
A variedade das causas e o papel da fé
Diversas e de diversa natureza são as causas de nulidade
que tornam possível o recurso ao processo breve ante o bispo e que vêm,
a modo de exemplo, elencadas no art. 14 § 1 do título quinto.
Entre estas, uma atenção particular merece a “falta de fé que pode
gerar a simulação do consenso ou o erro que determina a vontade”. Aqui
parece estar em jogo a fé, cuja ausência não pode determinar – como se
sabe – a validez do matrimônio sacramental, mas
simplesmente impedir sua frutuosidade, isto é, a capacidade de produzir,
aderindo aos dons da graça, frutos positivos em ordem ao crescimento da
comunhão de amor do casal. A razão de tal impossibilidade está no fato
de que o matrimônio é acima de tudo, no desígnio divino, um instituto
natural e que, portanto, onde dois batizados acedem a ele reconhecendo
suas intrínsecas propriedades naturais, tem automaticamente lugar a
ativação do sacramento. É, portanto, necessário não confundir a intenção
matrimonial com a fé pessoal; mas, não é de todo peregrina a suspeita –
como também recordava Bento XVI no discurso feito por ocasião da inauguração do ano judiciário do tribunal da Rota romana
aos 26 de janeiro de 2013 – que a falta de fé possa também comportar,
em alguns casos, falta da capacidade de colher suas propriedades
essenciais – em particular a indissolubilidade do vínculo – que são, ao
invés, necessárias para garantir a validez. E isto, sobretudo pelo fato
de que o contexto sociocultural atual, caracterizado por um processo de
secularização acentuada e pela presença de tendências relativistas e
subjetivistas, torna sempre menos fácil a percepção de tais
propriedades.
As recaídas sobre o caso italiano
A aceitação desta tese, que goza de uma consistente
plausibilidade, e sua concreta aplicação só podem favorecer o incremento
de declarações de nulidade, levantando sérios
problemas no âmbito de países como o nosso, no qual ainda vige a forma
do matrimônio concordatário que tem imediatos efeitos civis – a Concordata
italiana atribui, de fato, eficácia civil às sentenças canônicas – com a
cessação, no caso de anulação, de toda obrigação, também de caráter
financeiro, ante o ex-cônjuge, por isso com pesadas consequências no
terreno da justiça. Se pense somente na perda, da parte da ex-mulher, da
exigência de manutenção que o juiz civil, por ocasião da separação, lhe
havia concedido.
Na verdade, o documento papal não deixa, no art. 7, can. 1691 § 1 das
normas gerais, de sublinhar a relevância deste aspecto. “Na sentença –
se lê no artigo citado – se admoestem as partes sobre as obrigações
morais e também civis, às quais sejam eventualmente obrigadas tanto uma
para a outra e com a prole, no que diz respeito ao sustento e à
educação”. A admoestação, embora moralmente relevante, não constitui,
todavia, uma obrigação jurídica e a situação hodierna (também após a
reforma do processo de declaração de nulidade, do Papa Francisco) representa, portanto, um ‘vulnus’ [lesão] para a lei do Estado.
Não se poderia, também em consideração desta anomalia, repor em
discussão o sistema do matrimônio concordatário, retornando à separação
dos dois matrimônios, o religioso e o civil – como, aliás, solicitavam,
na discussão sobre a reforma do Concordado, atuada depois pelo Governo Craxi em 1984, alguns bispos italianos e, em particular o cardeal Pellegrino
– evitando assim a atual mescla das relações entre Estado e Igreja, com
reflexos negativos também sobre o matrimônio cristão, enquanto termina
por tornar menos livre e límpida em muitos casos a escolha? Ou não
chegou (talvez) o momento de perguntar-se, mais radicalmente, que
sentido tem a manutenção do regime concordatário num país livre e
democrático (e não, portanto, sujeito a uma ditadura) como o nosso, no
qual parecem ser suficientes – como havia a seu tempo sustentado no
Parlamento o honorável Scalfaro, o qual em seguida se
tornou presidente da República (cfr. Una Costituzione viva. Vivissima,
Cittadella Ed., Assis 2012, p. 54) – simples acordos bilaterais sobre
algumas matérias de comum interesse?
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