terça-feira, 19 de novembro de 2019

O argumento cristão para os pais que ficam em casa

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Por Nathan Schneider

Os católicos herdaram um longo legado cristão transgressor da perspectiva de gênero


Durante os seis meses em que estive em casa com minha filha, acho que, no final, me saí melhor do que ser apenas uma versão piorada de mãe (Derek Thomson/ Unsplash)

Estava prestes a começar minha licença paternidade. Era uma noite gelada, próxima ao ano novo, quando minha esposa e eu fomos a um bar do bairro em um breve encontro.  Foi um passeio rápido, aquele possível com um bebê e uma criança esperando em casa. Um dos nossos vizinhos de rua estava lá, um homem que dirigia um caminhão e um carro antigo. Eu lhe disse que passaria os próximos meses cuidando de nossa filha bebê, para que pudesse me ver por mais tempo e para brincar com ela.
"Okey, senhor mãe", ele me respondeu.
Não só tomei como um insulto no momento – muito obrigado por isso de “senhor mãe” – mas levei isso para mim, especialmente nas primeiras semanas, antes que a bebê e eu déssemos os primeiros cochilos e começássemos a aprender as primeiras coisas. Inclusive, naqueles momentos em que estávamos chorando um com o outro e completamente indefesos e quando faltava leite materno que eu não conseguia oferecer. Eu era o "não tão bom como uma mãe", o único pai dono de casa que eu conhecia na região, enquanto as mães dominavam as áreas onde se costumam levar crianças.
Esqueço quando foi, ao longo dos vários meses em casa, com minha pequena filha, que comecei a pensar nas Mães do Deserto. Elas foram as ascetas que fugiram para os desertos do Egito e da Síria nos anos após o cristianismo se tornar a religião de Roma. Elas habitavam uma comunidade de homens, principalmente; e para as mulheres que participavam, a excelência e o destaque estiveram associados à masculinidade. "De acordo com minha natureza, sou mulher, mas não de acordo com meu pensamento", disse Amma Sarah certa vez a um par de sábios, homens. Para um grupo de monges, ela disse: "Sou eu que sou homem, vocês são mulheres".
A despeito das repetidas preocupações do papa Francisco sobre “teoria de gênero” e indefinição na distinção de sexos, herdamos um longo legado cristão transgressor de gênero. Anselmo de Cantuária e Bernardo de Claraval, entre outros santos medievais, se referiam a Jesus e Paulo como mães. Anselmo orou a Cristo: "você não é aquela mãe que, como uma galinha, guarda os pintinhos debaixo das asas?". Bernardo, que uma vez teve uma visão de beber leite do peito de Maria, aconselhou os homens de autoridade em seu tempo a dar leite também. “Aprenda, você que governa a terra”, escreveu ele, “deixe seu peito encher com o leite, não o encha com paixão mundana”.
Por que, então, deveria ter tanta vergonha de ser chamado de mãe? O que seria necessário para que a piadinha "senhor mãe” fosse realmente um elogio? Por que não respondi para o homem: "Sou eu quem sou mulher, você que é o homem"?
A flexão de gênero, cristã ou não, não é um caso simétrico. As alegações de Amma Sarah assumem que o deserto não é lugar para uma mulher comum. Anselmo, em outros lugares, afirma a superioridade da identidade masculina e viril de Deus; ele entende a feminilidade de Jesus como um sinal de humildade. Nossa cultura nos diz que ser fracos é compreensível, mas o filho de uma mãe deve ser forte. Entre as pessoas trans atualmente, que enfrentam riscos elevados de violência e assédio, as mulheres trans relatam taxas mais altas do que os homens trans, por exemplo.
A pressão cultural dessa assimetria impede muitos de nós de fazermos o que devemos – impede que os homens, por exemplo, assumam papéis de cuidadores, imitando a galinha amorosa que Anselmo vê em Jesus. Essas pressões resultam em desafios concretos: receio que isso tenha a ver com o dinheiro.
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Dia após dia, tentava modelar para minha filha a forma de engatinhar no tapete. E nesse contexto, tenho que dizer que sou professor de uma universidade estadual de pesquisa, que precisa competir com os benefícios das empresas de tecnologia por talento.
Falando das condições de trabalho, não é prático contratar um suplente para ministrar apenas a metade de um curso, portanto a universidade oferece uma licença de paternidade para o semestre inteiro. Nosso primeiro filho nasceu entre meus dois primeiros semestres no trabalho, que era apenas uma posição temporária, por isso trabalhei durante seus primeiros meses sem interrupção. Quando o segundo bebê estava chegando – por insistência da minha esposa, e com relutância, porque eu não tinha certeza de que poderia continuar existindo sem o meu emprego – disse ao meu presidente do departamento que aceitaria a política de licença de paternidade da universidade. Minha esposa ficou em casa nos primeiros meses e depois foi a minha vez.
Embora as pessoas em outros países comparativamente ricos possam não ficar de olho nessas políticas, vários meses de licença de paternidade remunerada são muito raros nos Estados Unidos. O nosso é o único país de alta renda do mundo que não garante férias remuneradas para as mães – isso também é um número estranho entre os países mais pobres. A maioria dos países do mundo permite que essa licença seja tirada por qualquer dos pais.
Se não é apenas crueldade, talvez a recusa em pagar pelos cuidados com a família seja a consequência de uma ideia bem-intencionada – que supõe que os cuidados com os entes queridos devem ser protegidos do mercado sujo para que possam permanecer puros e dignos de respeito especial. O trabalho remunerado em casa é comum, mas geralmente é delegado a uma subclasse, definida pelo status de raça ou cidadania, o que ajuda a impedir que seus salários sejam suficientes para levar à dignidade que esse trabalho merece. Quando os contratos sociais de trabalho foram codificados no New Deal, as trabalhadoras domésticas tiveram direito à organização sindical e o pagamento de horas extras. Qualquer economia de assistência existente deve permanecer invisível para proteger a ilusão de pureza.
A compreensão católica da maternidade sacrificial reforça isso. A mãe deve estar sempre ao pé da cruz dos filhos, sem esperar nada em troca. Mesmo um pensador católico tão radical quanto o padre e filósofo Ivan Illich temia que fazer da economia uma assistência para um dos gêneros que realmente funcionasse, apenas pioraria a subjugação das mulheres na busca fútil da “igualdade econômica entre os sexos”. Escrevendo no início dos anos 80, Illich se opôs ao pedido das feministas do trabalho doméstico remunerado – as chamadas campanhas de “salários pelo trabalho doméstico”.
Uma das principais defensoras dos salários para o trabalho doméstico foi Silvia Federici, ativista e filósofa italiana que agora é professora emérita na Universidade Hofstra. Em seu ensaio de 1975, Salários e o trabalho doméstico, escreveu: “Ao negar um salário ao trabalho doméstico e transformá-lo em um ato de amor, o capital matou muitos pássaros com uma pedra”. A economia depende do trabalho de cuidado para produzir e sustentar seus trabalhadores, mas as empresas e o estado evitam pagar esse custo transferindo-o para os próprios trabalhadores e suas famílias. Não pagar pelos cuidados exige que as mulheres dependam dos salários dos homens em suas vidas, enquanto colocam toda a família sobre os homens para manter seus salários. Isso equivale a medidas de dependência em camadas com os empregadores no topo.
Apesar de suas divergências sobre a solução, Illich e Federici compartilham uma análise comum da história de origem desse arranjo - em particular, o ponto de transição do feudalismo medieval para o capitalismo primitivo. O crucial desse período sangrento foi um processo pelo qual o fechamento de terras em propriedades privadas levou as famílias trabalhadoras com uma vida de subsistência comunitária à produção contratada. A unidade econômica básica não era mais a família, mas o assalariado. Os papéis de autoridade que as mulheres detinham no regime mais antigo, como obstetrícia e fitoterapia, foram renomeados e perseguidos como bruxaria quando profissionais do sexo masculino começaram a exigir salários pelas novas versões desse trabalho. As vagas disponíveis para as mulheres diminuíram. O capitalismo as removeu do envolvimento direto na produção remunerada e as relegou ao seu substrato necessário, mas não recompensado - o que Illich chamou de "trabalho das sombras".
A retórica de Federici na década de 1970 apontou para a rebelião, para uma fuga do trabalho doméstico. Mais recentemente, porém, esse trabalho mudou de tom - da “recusa” para a “valorização”, como ela diz, reconhecendo a força e a solidariedade que podem advir do trabalho de cuidar outros. Durante todo o tempo, ela e seus companheiros falaram sobre o trabalho doméstico, e não sobre as donas de casa, sabendo que, se fossem pagas, os cuidados atrairiam mais trabalhadoras do que apenas mulheres casadas. Illich temia que o pagamento por cuidados tornasse o gênero feminino uma mercadoria, mas as feministas disseram que isso já aconteceu. Elas queriam viver seu gênero a partir de uma postura de autodeterminação, e não de restrição.

Os salários importam

Os bispos gostam de dizer que os orçamentos federais são documentos morais; o orçamento familiar também é um. Sinalizamos respeito pela forma como distribuímos - e a quem confiamos - coisas escassas, como o dinheiro. Nos dias em que eu estava entediado, frustrado e cronicamente mal-humorado na terra dos bebês, quando meu senso de eu parecia mais remoto, encontrei algum consolo ao pensar que, pelo menos, estava sendo pago.
Durante os seis meses em que estive em casa com minha filha, acho que, no final, me saí melhor do que esperava. Atingi um nível maior do que apenas uma versão ruim de mãe. Sim, joguei o jogo da imitação com o leite materno bombeado e, para ser claro, a mãe de verdade ainda a alimentava durante a noite e na hora do almoço. Às vezes desejava ter meu próprio leite para oferecer e, suspeito, que o fiz. Mas também descobri que, como não estava trabalhando, tive tempo de levar minha filha para atividades mais masculinas do que normalmente outros fazem - reparos domésticos, carpintaria menor, hackers de computadores antigos, e até uma horta experimental. Ironicamente, como o Senhor Mãe, virei um personagem mais convencionalmente parecido com a figura do pai do que o normal. Também lavamos muita roupa, louça e fizemos limpeza.
As tarefas de cuidar que, a princípio, pareciam influenciadas pelo gênero, como as que eu havia sido treinado durante toda a minha vida, transformaram-se em oportunidades de habilidade e de orgulho. Minha garotinha e eu dominamos um ritmo de cochilos e caminhadas que nos mantinham sãos e sorridentes. Fizemos tudo funcionar. Éramos muito bons. Mas também não foi para sempre. Quando o tempo acabou, eu estava mais do que pronto para voltar ao escritório, e minha filha logo foi uma estrela em sua nova creche.
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Enquanto estava em casa, um dos colegas de trabalho de minha esposa partiu para outro emprego. Ao passo que, ia ficando cada vez menos do Senhor Mãe, minha esposa entrou em ação, trabalhando tarde na noite e nos fins de semana, e lançou o desafio que eu (bastante objetivamente) teve que considerar, uma reorganização visionária que resistia as estruturas ultrapassadas em esse contexto. Ela ganhou um aumento e uma promoção que não esperava e isso não teria acontecido se ela estivesse em casa o tempo todo. No final, essa foi outra fonte de orgulho para mim: tenho que fazer um trabalho extra nas sombras enquanto ela faz sua descoberta.
As mães sofrem uma penalidade - tanto em seu comprometimento quanto com o trabalho e com o salário - independentemente de terem desfrutado ou não da licença de maternidade. Os pais sentem isso, e é por isso que a maioria de nós não se afasta do trabalho, mesmo quando temos a opção de fazê-lo. Em muitos locais de trabalho, os empregados sabem intuitivamente que se afastar para cuidar de crianças sinalizará que não são comprometidos ou dedicados o suficiente. No geral, as mães veem aumentos salariais dos parceiros afastados a cada mês em que continuam trabalhando.
A licença maternidade e paternidade remuneradas são uma política pró-vida e pró-família óbvia, prática o suficiente para serem exigidas por quase todos os outros países do mundo. Garantir que ambos os pais consigam usá-la é ainda melhor. Mas como poderíamos chegar lá?
Uma das ideias mais imaginativas vem do senador Marco Rubio. Ele propôs no ano passado que os novos pais deveriam ganhar os benefícios da Previdência Social por alguns meses para seus futuros filhos - um vislumbre da aposentadoria na meia idade adulta, paga com alguns meses a menos de aposentadoria mais tarde. Minhas tendências envelhecidas, das quais não tenho orgulho, deliciam-se com a perspectiva de roubar os próprios anos dourados. Ivanka Trump também aprova.
Certamente, não é necessário, no entanto, reduzir um benefício essencial, como a Previdência  Social, para realizar um trabalho de assistência não opcional. Como a educação pública e a água potável, o acesso aos cuidados deve ser algo que temos todo o direito e incentivo para usar. Outro conjunto de propostas, vindas de democratas como os senadores Cory Booker e Sherrod Brown, reestruturariam o crédito de imposto de renda ganho para fornecer restituições quando os membros da família prestarem cuidados. Diferentemente do plano do senador Rubio, sua definição de atendimento inclui não apenas os novos pais, mas também aqueles que cuidam de parentes doentes ou idosos.
Há boas razões para ampliar ainda mais o quadro de férias remuneradas. Anos atrás, lembro-me de ler uma anedota no estudo da socióloga Arlie Russell Hochschild, The time bind, a história de um escritório em que o único pai que tirou licença de paternidade era aquele tão socialmente isolado pelo racismo que não estava a par das pistas que desencorajavam os outros homens de fazê-lo. 
A história também é uma estatística. Somente 14% dos pais que podem tirar mais de duas semanas de folga o fazem. Uma maneira de aliviar essa pressão é simplesmente universalizar a política: todos têm a mesma oportunidade de férias remuneradas de longo prazo ocasionais, por qualquer motivo. Alguns poderiam usar essas férias para cuidar de crianças, outros para cuidar de si mesmos. Parece generoso, mas não é louco. Não menos que a Society for Human Resources Management - ou seja, os especialistas nesse tipo de coisas – que têm uma política de "licença aberta" para seus funcionários.
Podemos discutir sobre qual deve ser a legislação correta; e devemos fazer isso muito mais, porque a pergunta é interessante e importante. Mas primeiro devemos levar a sério o que estamos falando aqui: cuidar é um bem comum, não um luxo. Embora o fim do feudalismo tenha suas virtudes, seu horror foi a transição para um mundo onde a terra comum não era mais um presente, onde se podia passar fome sem recorrer a um jardim ou a uma colheita. Os cuidados devem ser como o aquilo que o mundo antigo ofereceu - um tipo de trabalho e recompensa disponível para quem estiver disposto a fazê-lo, para quem precisar. Os pais não devem ter medo de vingança no trabalho por serem cuidadores, e as mães merecem o respeito econômico que há muito conquistaram, mas raramente recebem.
Agora, enquanto observo e ajudo minha filha crescer, vejo nela (e em mim mesmo) o trabalho de nossos meses juntos. Compartilhamos o tipo de cuidado que todo ser humano em algum momento, de alguma forma, possui - o cuidado com alguém que não pode se ajudar ou começa a retribuir. Sim, estou inclinado na direção dela. Espero que um dia todos os pais tenham a chance de imitar a maternidade de Jesus.

Publicado por America

*Nathan Schneider (@ntnsndr), escritor colaborador da América, é repórter e professor de estudos de mídia na Universidade do Colorado, em Boulder. Seu último livro se intitula Tudo para todos: a tradição radical que está moldando a próxima economia. 

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