quarta-feira, 27 de maio de 2020

A nova Igreja de Karl Rahner

Resenha da obra de Stefano Fontana sobre o pai de todo progressismo dito católico e o teólogo que ensinou a se render ao mundo, Karl Rahner.



O Cardeal Giuseppe Siri resumiu o núcleo do erro teológico de Karl Rahner na “concepção do sobrenatural não gratuito”. Escreve-no em Getsêmani, em 1988, para os membros da Fraternidade da Virgem Maria. Em outras palavras, para Rahner o sobrenatural é ligado “necessariamente” a natureza humana: mas, neste caso, a graça não seria mais gratuita; não seria mais um dom; não poderia mais ser aceita ou recusada livremente pelo homem. Em suma, uma espécie de sobrenatural imposto por Deus ao homem. Uma gratuidade obrigatória. Se fosse verdadeiro o quanto sustenta Rahner – afirma Siri –, chegar-se-ia “à inutilidade do ato de fé”, porque “na minha essência Deus se faz presente”. Não devo aceitá-lo ou recusá-lo: Deus já faz parte de mim, queira eu ou não. O teólogo alemão não teve consciência, evidentemente, que com tal assunto “todos os princípios, todos os critérios e todos os fundamentos da fé” foram “colocados em questão e se fragmentaram”.
Mas o problema não é a opinião de um teólogo heterodoxo. É demonstrável que as sugestões rahnerianas têm comprometido e subvertido grande parte da teologia dos últimos sessenta anos. Rahner “parece ter vencido”, escreve Stefano Fontana no seu último ensaio dedicado ao “teólogo que ensinou” a Igreja “a render-se ao mundo”. Não é um exagero: “de uma investigação – escreve Fontana – conduzida no imediato pós-concílio na Pontifícia Universidade Lateranense emerge que, para os seminaristas que ali estudavam teologia, o maior teólogo católico de todos os tempos não fora Santo Tomás de Aquino ou Santo Agostinho, mas Karl Rahner”.

Um Deus atemático

Fontana descreve a parábola do pensamento rahneriano inserida fatalmente no método moderno de fazer filosofia e, então, teologia. É um método que Fontana já tinha exposto no seu ensaio precedente “Filosofia per tutti” (Fede & Cultura, 2016) e que consiste no assumir, de vez em quando, uma certa forma do “transcendente moderno”: o filósofo ou o teólogo da modernidade, a saber, não concebe mais uma relação direta com a realidade a conhecer, mas pensa que “o homem vê o mundo através de óculos dos quais não pode se libertar”. Estes óculos são as formas a priori do conhecimento de qualquer objeto, que, porém, modificam-no e limitam-no, tornando impossível qualquer certeza ou conclusão sobre ele. O objeto do conhecimento torna-se, assim, o próprio Deus, nunca completamente compreensível, jamais conhecido com segurança.
Rahner não foge a esta prática e desta lógica. O par de óculos com os quais ele lê todos os aspectos da realidade (incluindo Deus) é chamado – escreve Fontana – “buraco da fechadura”. Todo pensador da modernidade tem, no fundo, o seu apriorismo gnoseológico. O de Rahner é tal que “Deus se revela no escuro que precede e circunda o buraco da fechadura”. Revela-se de modo atemático, a saber, privado de conteúdos. Aquilo além do buraco, ao invés, é o mundo da experiência, das palavras humanas. Mas que relação podem ter esta experiência e estas palavras com a verdade? Uma relação equívoca, feita de dúvida e de incerteza, porque todo critério de juízo é colhido além da fechadura, onde me encontro eu e se encontra Deus, mas onde existe só o silêncio e a escuridão. É como medir o comprimento com um metro deformado. Não se poderá jamais alcançar a extensão das coisas por meio de um defeito inicial devido ao instrumento de medição. As coisas correspondem à realidade objetiva e o instrumento deformado está no homem, que é a realidade subjetiva.
Rahner tira estas convicções do apriorismo de Kant, mas é sobretudo em Heidegger que funda a própria gnoseologia: precisamente no princípio – escreve Fontana – segundo o qual “o homem, que se pergunta o que é o ser, está dentro do problema e então não existe conhecimento de um objeto que não seja também subjetiva”. Trata-se de uma rendição incondicionada a opinião, ao “ponto de vista” pessoal. Se, além do mais, o sujeito é defeituoso, o torna também objeto, o mundo, Deus, a minha experiência no mundo, a verdade do mundo e de Deus.

Desaparece a natureza humana

Outros ensinamentos provém da filosofia clássica, da teologia católica e do magistério da Igreja. De Platão a Santo Tomás de Aquino não se insinuou jamais a tentação de dizer que o homem não pudesse chegar à verdade, embora de modo imperfeito. O transcendental clássico é bem diferente daquele moderno: é rico de conteúdos e de esperança na capacidade cognoscitiva humana; coloca o critério do juízo sobre o mundo além do cosmo; aceita a ajuda de um Deus que se revela e fala; não tem problemas em individualizar a real vocação da pessoa além da física, além do fenômeno, situando na metafísica o próprio horizonte humano.
Em uma análise mais minuciosa, o erro de Rahner identificado por Siri – sobre o sobrenatural ligado à natureza humana – talvez seja o último a ser levado em consideração, pois, uma vez que a metafísica desapareceu, os conteúdos relacionados aos conceitos de natureza, essência e substância também desaparecem. É ainda possível conceber, no pensamento rahneriano (ou moderno em gênero), uma natureza humana? Fontana diz que não: a perspectiva do teólogo alemão “torna difícil servir-se ainda do termo ‘natureza’. Na visão existencialista de Heidegger e de Rahner, “o homem não tem natureza” enquanto “é um ser histórico”. O ser, no tempo e na história, fluidifica-se e ‘devene’ sem interrupção, lá onde a natureza clássica se apoia, pelo contrário, sobre uma verdade estável. Com a queda da natureza, então, cai a rota da lei natural e qualquer discurso sobre o sobrenatural. Não existem dois níveis em Rahner (natural e sobrenatural) – escreve Fontana – mas “um único nível, o da história, que é conjuntamente história sacra e história profana”. Aqui também se insere o pensamento de Hegel.

Os cristãos anônimos

Perseguindo além do mais as sugestões da teologia protestante do século passado, o rahnerismo chega assim a prospectar uma “deselenização” do cristianismo, lá onde a helenização era o uso, por parte da teologia, das categorias filosóficas gregas. Não existe mais uma doutrina com a qual discernir o tempo presente e sobre a qual organizar uma prática. Vice-versa, a prática tem o primado absoluto e qualquer conclusão (se é que houve uma) deve sempre seguir o “vir a ser” histórico. Tudo então é absorvido pelo historicismo: a doutrina, o dogma e o ensinamento. Tudo se torna relativo aos tempos e aos costumes. Tudo é questionável, interpretável – continua Fontana. Tudo evolui: até mesmo a Revelação, que se dá na imanência da história e não deve jamais ser entendida como concluída.
Em continuidade com o protestantismo, a fé surge privada das categorias racionais e se põe, assim, em antítese com a razão. Não só: pelo fato de ter um acesso à religião mediante o transcendental a priori, todos os homens são unidos na Revelação, todos são equidistantes da verdade. Não serve mais uma Igreja que ensine e nem mesmo uma obra de evangelização. Segundo Rahner, todos os homens – escreve Fontana – “são cristãos, ou cristãos anônimos”, ou “cristãos que não sabem que o são”. A tarefa do cristão batizado ou do clérigo não é mais, então, aquela de “governar, ensinar e santificar” qualquer um, mas aquela de “escutar” e “acolher” o não crente.

O dogma não é mais uma palavra definitiva

Ainda é preciso verificar até que ponto o rahnerismo afetou o tecido da Igreja, existe a evidência do quanto as sugestões das novas correntes teológicas coincidem com o pensamento de Rahner. E uma tal evidência leva a “afirmar que todas as teologias do progressismo teológico do pós-concílio encontram em Karl Rahner o seu pai”. Existe um único comum denominador atrás da prioridade que muitos bispos dão à ação pastoral, à depreciação do tomismo, ao diálogo a todo custo, ao primado da experiência atemática, à predileção pela linguagem do mundo, ao conceito de concílio (ou de sínodo) onde prevalece a ação do momento sobre conteúdos efetivos do encontro.
Fontana traz o exemplo do Cardeal Walter Kasper, muito ativo no último Sínodo da Família, cuja formação é totalmente rahneriana. Para Kasper, o moderno método teológico não deve partir dos dogmas, mas deve antes “ver o dogma como intermediário entre a Palavra de Deus e a situação da vida da comunidade cristã”. Não mais um dogma “visto como algo definitivo”, mas uma pura expressão linguística, que se deve curvar à situação real da pessoa e às diferentes percepções históricas.
O que mais impressiona sobre Rahner, todavia, é que “nenhuma condenação foi emitida, apesar dos numerosos e fundamentais pontos contrários à doutrina católica”. João XXIII o chamou ao Concílio Vaticano II como perito. Há algo errado aí.


Fonte - Fratres in Unum
Com informação: centrodombosco


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...