Nunca me preocupei com os sonhos. Sobretudo quando eles versam sobre coisas sem importância e que têm a sua explicação no cansaço da vida, nas preocupações diárias ou no esgotamento nervoso.
Entretanto, os três sonhos que vou contar merecem um destaque especial, pela sua significação e pelo seguimento com que me foram apresentados por um mensageiro de Deus.
Sonhei que me aparecia um anjo de asas tão brancas e longas como se fossem desconformes para o seu corpo, que parecia de neve. Seu rosto era assim como de vidro, do qual saía um esplendor divino que ofuscava a minha vista.
Aproximou-se de mim o estranho visitante e saudou-me, reverentemente, dizendo:
Salve, representante de Cristo!
Meio tímido, consegui, entretanto, abrir a boca e responder:
Salve! Quem és tu e que desejas?
Continuou o anjo:
Sou um dos querubins que assistem ao trono sagrado de Deus Onipotente (e aqui o anjo fez uma reverência) e vim buscar-te para te mostrar o Purgatório. Hoje é sábado, dia em que Nossa Senhora manda buscar as almas que em vida conduziam o escapulário e cujos donos morreram com ele. Quero que tenhas uma visão real daquele lugar de purificação, onde ficam as almas que ainda não tiveram as suas penas descontadas.
E, no sonho, eu me recordo como falava com o anjo, dizendo:
Sim, mensageiro de Deus. Irei até lá para ajudar os conhecidos que ainda não tiveram Missas celebradas pelas suas almas.
Verás os padecimentos de várias crianças, alunos de Colégios do lugar onde moras que, por muito simples motivo, ainda hoje não poderão ver a face de Deus. Meu interesse de levar-te comigo é justamente por saber que lá estão vários de seus amigos, jovens que foram teus alunos e que a morte arrebatou do mundo no começo da vida, em plena mocidade!
E o anjo me tomou em seus braços sobrenaturais como se fossem nuvens que me envolvessem e atravessou comigo o espaço infinito que nos separava da eternidade. A amplidão misteriosa que nos rodeava naquele instante e o medo que me fazia tremer causavam uma angústia profunda no meu coração, impressionado com o que me poderia acontecer.
Depois de algum tempo, que me pareceu longo demais, nesta subida vertiginosa para um lugar desconhecido, escutei a voz do anjo que me dizia:
Estamos perto! Peço que não te assustes!
Nuvens pesadas passavam por nós e, à proporção que subíamos, o vento uivava como um lobo faminto, em noite de luar. Senti arrepios passarem pelo meu corpo, enquanto avistava, lá embaixo, muito longe, a grande bola da Terra, movendo-se vertiginosamente em torno de si própria.
Fechei os olhos para abri-los depois, quando me sacudiu o anjo para mostrar-me um portão de fogo que tínhamos diante de nós. Grossas chamas saíam pelas frestas, enquanto rolos de fumaça escura invadiam o teto do majestoso prédio.
Disse o anjo:
É aqui!
E, a um sinal da cruz feito com a mão direita em direção à misteriosa entrada, abriam-se aqueles enormes portões, rangendo nos gonzos que os sustentavam.
Entramos.
Um espetáculo doloroso quase me fez cortar o coração. Via, no sonho, almas que sofriam as agruras do fogo e que, à minha passagem, estendiam os braços em atitudes de súplica, sem poderem falar, com uma fisionomia que me causava profunda angústia.
Elas aqui não falam? perguntei.
Não. As almas não podem falar. Quando chegarem ao Céu, poderão ter conhecimento de tudo, pela intuição divina. Esta é justamente uma das grandes formas da felicidade, na bem-aventurança.
E, enquanto falava, o anjo que me conduzia não parava um instante. Parecia apressado, assim como quem dispunha de tempo marcado para cumprir uma missão. Levou-me até ao abismo do Purgatório, estacando, de repente, diante de uma alma. Apontou-me uma jovem de 12 anos, mais ou menos, sentada na ponta de uma labareda. A pobrezinha oscilava aos movimentos incertos da chama vermelha e tinha um ar triste de quem já havia perdido a esperança... Olhei-a, conheci quem era. Lembrei-me dos seus últimos momentos que foram na Terra assistidos por mim. Quando me viu, levantou-se, abriu a boca, num esforço para falar, para gritar, sem poder. Depois, tentou um sorriso estérico, numa feia contorção da boca.
Chamei pelo seu nome:
Marisa!
Mas ela apenas continuou me fitando, enquanto voltava a sentar-se no seu assento de fogo, a um simples gesto do anjo que me seguia. Agora, apontava ele para cinco meninos, um dos quais eu conheci também. Havia morrido há muitos anos de anemia perniciosa e me custou acreditar que ainda estivesse no Purgatório, pois eu havia já celebrado várias Missas por ele.
Sim, é verdade! disse o anjo. Eles cinco irão agora para o Céu. Tuas Missas serviram para eles, embora tivessem sido celebradas por um só. Mas Deus contribuiu os méritos do sacrifício infinito por eles cinco, para que se salvassem no mesmo dia. Todos usavam o escapulário.
E aquela menina? perguntei.
Aquela menina disse o anjo que na Terra se chamava Marisa, não sairá hoje porque tem de purificar-se ainda de umas pequenas faltas que cometeu na vida. Passará mais uma semana no Purgatório.
Olhei para Marisa. E senti toda a angústia de seu espírito. Ao escutar sua sentença, estremeceu, de leve, e, fazendo que não ligava muita importância às dores de suas queimaduras, aprumou-se melhor na ponta da labareda que a envolvia de instante a instante, mergulhando-a naquele mar rubro de imenso fogo.
Voltei-me para o anjo e perguntei:
Que fez ela?
Respondeu o querubim:
Na Terra, batia o pé para a mãe, respondia-lhe com maus modos, fugia de casa e juntou-se com uma colega que foi a causa de sua perdição. Adoeceu de uma forte gripe que apanhou na praia, quando para lá se dirigia, escondida dos pais, com esta tal colega, vindo a falecer de pneumonia dupla.
Na Policlínica, não é verdade?
Exatamente! Foste tu que lhe perdoaste os pecados, mas agora tem de purificar-se das penas... Deus a chamou, apesar dos seus poucos anos, antes que caísse em faltas maiores e se condenasse eternamente.
Baixei a cabeça e caminhei em direção ao portão de saída. Atrás de mim vinha o anjo com as cinco crianças bem-aventuradas. E, enquanto atingíamos o portão flamejante, pensava em inúmeras outras crianças lá da Terra, que eu tanto conhecia, pensava em outras pessoas que estavam em grave perigo de condenação, por não ligarem aos conselhos dos pais, nem procurarem arrepender-se de seus pecados ou corrigir-se de suas faltas. E, ao me despedir do mensageiro celeste, perguntei-lhe:
Será que ainda me vens buscar para outra visita ao Purgatório?
E ele, batendo as longas asas para o Céu, abraçando os novos filhos de Nossa Senhora, exclamou:
Não! Agora, não te virei mais buscar para o Purgatório. Levar-te-ei ao Céu, da próxima vez!
Quando acordei, já eram cinco horas da manhã, hora de levantar-me, imediatamente. Os clarões da aurora tingiam de rubro o horizonte ao longe, através da minha janela aberta. E, enquanto rezava a oração da manhã, não saía do pensamento a lembrança de Marisa... No Purgatório ainda, por causa de sua desobediência!
E saí para celebrar a Santa Missa por aquela infortunada criança, ao mesmo tempo que pensava:
Quantas Marisas, por aí afora, não haverão de sofrer tanto e tanto no Purgatório!...
Comentário: Purgatório é Bíblico?
Fui crente, fui pastor protestante e, portanto, não acreditava na doutrina do Purgatório. Fico triste quando encontro católicos que, influenciados pelo protestantismo, não acreditam no Purgatório. Alguns me perguntam: é dogma de fé o Purgatório? É bíblica a doutrina sobre o Purgatório? A minha resposta sincera e clara é: sim, é dogma de fé o Purgatório e, portanto, bíblica a sua doutrina. Depois que estudei o assunto sobre o Purgatório descobri ser essa doutrina altamente consoladora.
A Igreja ensina que o Purgatório é um estado de purificação moral, em que as almas, não ainda completamente puras, são purificadas mediante penas, tornando-se dignas do Céu. Essa é a definição do dogma.
Quanto às provas escriturísticas (da Bíblia), encontramo-las em II Mac 12, 43-46: “Em seguida fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas, para que se oferecesse em sacrifício pelos pecados: belo e santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição, porque, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele acreditava que uma bela recompensa aguarda os que morrem piedosamente, era isto um bom e religioso pensamento; eis porque ele pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas”. Este texto do II livro de Macabeus nos mostra claramente existir um mistério de expiação (um Purgatório) na vida futura. Leia-se ainda Eclo 7, 37.
I Cor 3, 11-15: “Quanto ao fundamento ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo. Agora, se alguém edifica sobre este fundamento, com ouro, ou com prata, ou com pedras preciosas, com madeira, ou com feno, ou com palha, a obra de cada um aparecerá. O dia (do julgamento) demonstra-lo-á. Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o trabalho de cada um. Se a construção resistir, o construtor receberá a recompensa. Se pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém, passando de alguma maneira através do fogo”.
O Apóstolo afirma, pois, que alguns, ainda que construindo sua vida sobre Cristo, entretanto a constroem com obras imperfeitas (palha, feno), serão salvos, mas deverão passar pelo fogo. É o que ensina a Igreja Católica: muitos se salvam, mas devido às suas imperfeições deverão “passar pelo fogo” antes de entrarem no Céu.
Mateus 12, 32: “Todo o que tiver falado contra o Filho do Homem, será perdoado. Se, porém, falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste século, nem no século vindouro”.
Por esta expressão: “Não alcançará perdão nem neste século, nem no século vindouro”, vemos que há pecados perdoáveis também no século futuro, isto é, no outro mundo. Este lugar, no outro mundo, chama-se Purgatório.
Mateus 5, 26: “Em verdade te digo, dali não sairás antes de teres pago o último centavo”.
Aqui não se trata de Inferno, donde não se pode sair; nem do Céu, lugar de gozo, e não de expiação; mas do Purgatório, único lugar onde se deve expiar “até pagar o último centavo” das faltas leves cometidas nesta vida.
Apocalipse 21, 27: “Nela não entrará nada de profano nem ninguém que pratique abominações e mentiras, mas unicamente aqueles, cujos nomes estão inscritos no livro da vida do Cordeiro”. Ora, por mais puro que seja o homem neste mundo, sempre ele terá máculas contraídas em sua natureza viciada, já que “o justo cai sete vezes”. Condená-lo ao Inferno por ter pequenas fraquezas não o quer a bondade de Deus. Dar-lhe logo o Céu, obsta-o infinita pureza do Senhor. Logo, é necessária uma expiação ou purgação na outra vida, num estado denominado Purgatório.
A Tradição também ensina essa verdade, como o atestam os escritos antigos e a arqueologia.
Para entendermos a doutrina do Purgatório, é preciso saber que nele se conciliam a justiça e a misericórdia divinas. Não se pode enaltecer a primeira sacrificando a segunda. Deus, que é rico em misericórdia (Efésios 2, 4), é o mesmo Justo Juiz (II Tm 4, 8), a cujo tribunal haveremos todos de comparecer (II Cor 5, 10).
O sacrifício de Cristo no Calvário e que se renova no altar não anula a justiça divina, mas abre o caminho do perdão. Até esse perdão está dentro de um critério de justiça. Deus retribuirá a cada um segundo suas obras (Mat 16, 27; Rm 2, 5-8; I Pe 1, 17; Ap 2, 23; Ap 22, 12, etc).
Muitos homens morrem e comparecem imediatamente diante do Tribunal Justíssimo de Deus e estão em tais condições que não poderão ser condenados ao Inferno, pois não estão em pecado mortal, mas, por outro lado, não estão suficientemente puros para entrarem imediatamente na glória do Céu. Nem houve tempo para um arrependimento perfeito ou sofrimentos bastante que os levassem mais profundamente.
Assim como é certíssima a verdade que Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras, é certíssima a existência do Purgatório. Graças a Deus! Louvado seja Deus!
Deus nos perdoa, mas exige do pecador perdoado uma pena, uma expiação. Basta lermos Números 14, 11. 12. 19. 20-23; Números 20, 12; Dt 34, 1-5; II Sam 11, 2-7; II Sam 12, 13-14; Jl 2, 12, etc.
O Purgatório nos purifica das penas e das culpas. É doutrina consoladora extraordinária, pois lá brilha o sol da bondade de Deus.
Pena que o Purgatório seja apresentado só como local de sofrimentos e não de alegrias, como nos narra São Bernardino de Sena. A maior dor é de, na Terra, não ter amado mais a Deus e agora (no Purgatório) ter que aguardar um tempo para ver nosso amado Senhor, face a face. Uma coisa é ver de longe e outra é abraçá-Lo.
A figura radiosa do Senhor, vista no momento do Juízo particular, é nosso consolo e força no Purgatório. E ao ver Deus, a própria alma se julga e se reconhece indigna de entrar diretamente no Céu.
O Purgatório é o tempo, a oportunidade de se purificar. É uma Escola de Amor. De Amor a Deus. Senhor, dê-nos o Purgatório desde já, aqui na Terra, pois queremos amá-Lo intensamente. Como a dor nos purifica, nos liberta...
Só queremos Deus. Só Ele nos basta. Diácono Francisco Almeida Araújo
Livro: Os Três Sonhos de Monsenhor Eymard.
Nenhum comentário:
Postar um comentário