sumateologica
2 junho, 2010
Gustave Doré, Satanás
Parece que o diabo não desejou ser como Deus:
1. Na verdade, o que não é objeto do conhecimento não é do apetite, porque o bem conhecido move os apetites sensitivo, racional e intelectivo, porém só neste último há pecado. Ora, que uma criatura seja igual a Deus, isso não é objeto de conhecimento, pois implica contradição, porque o finito necessariamente seria infinito, se fosse igual ao infinito. Logo, o anjo não pôde desejar ser como Deus.
2. Além disso, o que é o fim da natureza pode-se desejar sem pecado. Ora, assemelhar-se a Deus é o fim ao qual tendem naturalmente todas as criaturas. Logo, se o anjo desejou ser como Deus, não por igualdade, mas por semelhança, parece que nisso não pecou.
3. Ademais, o anjo foi criado mais sábio que o homem. Ora, nenhum homem, a não ser totalmente sem entendimento, escolhe ser igual ao anjo ou a Deus, porque uma escolha tem por objeto coisas possíveis, que são o objeto da deliberação. Logo, o anjo, por maior razão, não pecou desejando ser como Deus.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz-se em Isaías, a respeito do diabo: “Subirei para o alto e serei semelhante ao Altíssimo” (14, 13-14). Diz também Agostinho: “cheio de soberba, quis ser considerado Deus”.
RESPONDO. Indubitavelmente pecou o anjo desejando ser igual a Deus. Isso pode ser entendido de duas maneiras: primeiro, por igualdade; segundo, por semelhança. Por igualdade, não foi possível o demônio desejar ser Deus, porque sabia por conhecimento natural ser isso impossível; nem a seu primeiro pecado precedeu o hábito ou a paixão impedindo seu intelecto de, errando num caso particular, escolher o impossível, como, às vezes, nos acontece. Todavia, dado que fosse possível, isso seria contra o desejo natural. Há em todas as coisas o desejo natural da conservação do próprio ser, o qual não seria conservado se a natureza de uma coisa fosse mudada em outra. Por isso, nenhuma coisa que se encontra no grau natural inferior pode desejar ter a natureza de um grau superior. Por exemplo, o asno não deseja ser cavalo [com exceção, talvez, do asno do Shrek...], até porque, se lhe fosse mudada a natureza para um grau superior, não seria mais ele mesmo. Ademais, a imaginação se engana neste particular, porque por desejar o homem elevar-se a um grau superior quanto a algo acidental, que pode crescer sem corrupção do sujeito, julga, então, que poderia desejar um grau mais alto da natureza, ao qual não poderia chegar senão deixando de ser o que é. É evidente que Deus está acima do anjo, não por algo acidental, mas por sua própria natureza, assim como um anjo é superior ao outro. Por isso, é impossível a um anjo inferior desejar ser igual a um superior, quanto mais ser igual a Deus.
Desejar ser como Deus por semelhança acontece de duas maneiras. Primeiro, quanto àquilo em que naturalmente alguém pode se assemelhar a Deus. Nesse caso, não se peca pelo desejo de assemelhar-se a Deus, porque se pretende alcançar essa semelhança segundo a devida ordem, isto é, tê-la de Deus. No entanto, haveria pecado se também se quisesse ser semelhante a Deus por direito, como por virtude própria, e não pela virtude de Deus. De outro modo, pode-se desejar ser semelhante a Deus quanto àquilo em que naturalmente alguém não pode se assemelhar a Deus, como se alguém desejasse criar o céu e a terra, pois só Deus pode criar; nesse caso, tal desejo é pecado. Assim é que o diabo desejou ser como Deus. E não porque desejou se assemelhar a Deus, enquanto Deus não está submetido absolutamente a nada, porque então desejaria também não ser, porque nenhuma criatura poderá existir senão participando do ser submetido a Deus. Mas, desejou ser semelhante a Deus, porque desejou como fim último de sua bem-aventurança aquilo a que poderia chegar pelas próprias forças, desviando seu desejo da bem-aventurança sobrenatural, que é dada pela graça de Deus. Ou, se desejou como fim último, aquela semelhança com Deus que é dom da graça, quis possuí-la pela virtude de sua natureza, não por disposição do auxílio divino. Essa doutrina é concorde com a de Anselmo, quando afirma que o demônio desejou aquilo que teria alcançado se tivesse perseverado. Esses dois desejos redundam num só; porque por ambos se desejou a bem-aventurança final pela própria virtude, o que é próprio de Deus.
Como o que é por si é princípio e causa do que existe por outro, daí resultou que desejou possuir certo domínio sobre os outros. E nisso também perversamente quis assemelhar-se a Deus.
Pelo exposto fica clara a resposta a todas as objeções.
Fonte: ST I, 63, 3
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