[cleofas]
10/01/2014
É
certo que, no Domingo da Ressurreição, Pedro e João encontraram no
túmulo a mortalha de Jesus. Os Sinóticos, que, por ocasião do
sepultamento, não falaram senão da mortalha, assinalam, no Domingo, os
“othonia” (= panos); a mortalha evidente faz parte desses “othonia”. São
João que, em seu evangelho, não falou na sexta-feira santa a não ser
dos “othonia”, assinala, no Domingo, os “othonia” e o “soudarion”.
Veremos com M. Lévesque que este “soudarion” é a mortalha, do aramaico
em que pensa São João. Quem o recusar será forçado a colocar a mortalha
entre os “othonia”.
Que destino lhe deram os apóstolos?
Apesar de natural repugnância própria a judeus, para os quais tudo o
que toca a morte é impuro, sobretudo um pano manchado de sangue, é
impossível admitir que não tivessem recolhido com todo cuidado esta
relíquia da Paixão do Homem-Deus. É necessário admitir também que a
esconderam cuidadosamente. Deveriam protegê-la da destruição por parte
dos perseguidores da jovem Igreja. Por outro lado, não se podia pensar
em propô-la à veneração dos novos cristãos, ainda imbuídos do horror dos
antigos pela infâmia da cruz. Haveremos de voltar com mais vagar a este
longo período em que a cruz se escondia sob símbolos: só nos séculos V e
VI é que veremos os primeiros crucifixos que, de resto, aparecem ainda
um tanto disfarçados. Só nos séculos VII e VIII é que eles se espalham
um pouco. Não será senão no século XIII que se difundirá a devoção à
Paixão de Cristo.
Acrescentemos a seguinte hipótese que está baseada em fenômeno
biológico misterioso, mas devidamente verificado: é muito possível que
nesta mortalha, portadora desde o início de manchas sanguíneas, as
impressões corporais não fossem visíveis durante muitos anos. É possível
que elas só se tenham “revelado” posteriormente, como sobre uma chapa
fotográfica que esconde sua imagem virtual até o banho revelador.
Pois existe todo um período obscuro em que a Mortalha (ou Sudário)
não aparece, no qual não pode aparecer. Era mesmo necessário que
estivesse cuidadosamente escondida, para ter escapado a todas as
ocasiões de destruição. Romanos, persas, medos, partos devastaram
sucessivamente Jerusalém e demoliram suas igrejas. E o que foi feito da
Mortalha?
Nicéforo Calisto escreve em sua História Eclesiástica que a
imperatriz Pulquéria fez construir, em 436, em Constantinopla, a
basílica de Santa Maria dos “Blacherner” e ali depositou os panos
mortuários de Jesus, recentemente descobertos. É precisamente aí que
iremos ver o Santo Sudário, em 1204 (Roberto de Clari). Entretanto, em
1171, segundo Guilherme de Tyr, o imperador grego, Manuel I, Commeno
(1122-1180) mostra ao rei Amaury de Jerusalém as relíquias da Paixão:
lança, cravos, esponja, coroa de espinhos e a Mortalha que ele
conservava na Capela do “Boucoleon”. Ora, tudo isto ali está, mais uma
Verônica, segundo Roberto de Clari. Convém, de resto, notar que
Nicéforo, morto em 1250, escreveu após a tomada de Constantinopla, em
1204, quando a Mortalha desapareceu. Há, portanto, alguma confusão
possível.
Mas, muito tempo antes, são Braulio, bispo de Saragoça, em 631, varão
douto e prudente, em sua carta XLII ao abade Tayon, fala como de coisa
conhecida havia muito tempo “de sudaruim quo corpus Domini est involutum
– da Mortalha (= Sudário) em que o corpo do Senhor foi envolvido”. E
acrescenta: “A Sagrada Escritura não diz que tenha sido conservado, mas
não se pode tachar de supersticiosos aqueles que acreditam na
autenticidade deste Sudário”. Um “sudário” que envolveu o corpo de Jesus
não pode ser senão uma mortalha; vê-lo-emos no capítulo do
sepultamento.
Onde estava ela, pois, nesta época?
Abramos os três livros do abade beneditino de lona, Adamnan, “Sobre
os Santos Lugares, de acordo com a relação de Arculfo, bispo francês”,
secção III, cap. X: “de Sudarium Domini”. Arculfo faz uma peregrinação a
Jerusalém por volta do ano 640. Aí viu e osculou o “Sudarium Domini
quod in sepulcro super caput ipsius fuerat positum – o Sudário do Senhor
que no sepulcro estivera colocado sobre Sua cabeça”. São as mesmas
palavras com que se expressou são João (cf.20,7). Ora, este sudário,
segundo Arculfo, é uma comprida peça de tecido que mede, avaliada a
olho, cerca de 8 pés de comprimento (=2,44 m). Não é, portanto, um
lenço, mas sim um lençol ou mortalha (= sudário).
O venerável Beda, no começo do século VIII, também registra este
testemunho de Arculfo em sua História Eclesiástica (De Loci Santis).
Mais ou menos na mesma época, São João Damasceno assinava entre as
relíquias veneradas pelos cristãos o “sindon”. Vemos desde logo que
“sindon” e “sudarium” são empregados indiferentemente como sinônimos.
Parece resultar de tudo isto que no século VII a Mortalha ficara em
Jerusalém ou voltara para lá e que não foi para Constantinopla senão
mais tarde. Quando? Não sabemos. Talvez antes do século XII, durante o
qual alguns peregrinos se referem ao “sudarium quod fruit super caput
eius” naquela cidade; acabamos de ver segundo Arculfo que isto significa
a Santa Mortalha. Em todo o caso, já lá estava em 1204, por ocasião da
4ª Cruzada.
Roberto de Clari, cavaleiro da Picardia, que tomou parte na tomada de
Constantinopla, em 1204, nos conduz a terreno já muito sólido.
Roberto é considerado pelos críticos de história como homem de
instrução média, um tanto ingênuo e que se pôde deixar embair na
política dos altos barões, dos quais estava longe. Mas é testemunha
muito atenta e perfeitamente sincera em relação a tudo o que ele mesmo
vê.
Ora, descreve ele minuciosamente (p. 82) todas as riquezas e
relíquias vistas nos palácios e nas “rikes kapeles”, ricas capelas da
cidade; especialmente no “Boucoleon” que jocosamente denomina “el Bouke
de Lion” (= o estreito de Lião) e em Blachernes”. No “Boucoleon”, viu, a
respeito de Jesus, dois pedaços da verdadeira cruz, o ferro da lança,
dois cravos, um fresquinho de sangue, uma túnica e a coroa. Viu também
(descrito à parte com longa lenda de sua formação, quando de uma
aparição de Nosso Senhor a um santo homem de Constantinopla) uma
“toaille”, isto é, um pano com o rosto do Salvador (como a Verônica de
Roma) e uma tela (ou placa de barro cozido) onde estava ela decalcada.
Mas foi em “Blachernes” que encontrou o Santo Sudário. Tudo isto
escrito naquela rude língua d’oil do século XII, que vive ainda nos
atuais dialetos valões. É necessário lê-lo em voz alta, com o sotaque do
Norte, talvez ter também sangue valão nas veias, para saboreá-lo
plenamente. Em tradução, ei-lo aqui (p. 90): “E entre estes outros havia
ali um mosteiro, que chamavam Senhora Santa Maria de ‘Blachernes’, onde
estava a Mortalha em que Nosso Senhor foi envolvido; e que cada
sexta-feira era levada e estirada tão bem que nela se podia ver o
retrato de Nosso Senhor. E não soube jamais nem grego nem francês o que
aconteceu a esta Mortalha quando a cidade foi tomada”.
O Santo Sudário foi, portanto, roubado ou transformado em presa de
guerra, se se quiser ser indulgente. Ora, segundo os historiadores de
besançon, D. Chamard em particular, uma mortalha correspondente à
descrição de Clari foi consignada, em 1208, às mãos do arcebispo de
Besançon, por Ponce de La Roche, senhor do Franco-Condado, pai de Oto de
La Roche, um dos principais chefes do exército borgonhês na Cruzada de
1204. Essa mortalha, que tem todos os indícios de ser o nosso atual
Santo Sudário, continuaria a ser venerada na Catedral de Santo Estêvão
até 1349. Notemos de passagem que Vignon emitiu dúvidas, em seu livro de
1938, sobre a estada em Besançon, mas, apesar disso, continua a ser
muito provável a referida estada.
No citado ano de 1349, um incêndio devastou a Catedral, e o Santo
Sudário desapareceu uma segunda vez, só seu relicário é que foi
reencontrado. Fora roubado, e este fato explica provavelmente a falsa
posição e as aventuras que geram ainda preconceitos no espírito de
certos historiadores, cada vez mais raros, que se recusam a encarar o
valor intrínseco do documento e de lhe examinar as imagens, sob o
pretexto a priori de que isto não pode ser senão uma falsidade. Seria o
mesmo que recusar estudar a lua, porque não lhe veremos jamais senão a
metade!
A Mortalha reapareceu oito anos mais tarde, em 1357, como propriedade
do conde Godofredo de Charny, que a recebeu como presente do rei Felipe
VI. Este a teria recebido do ladrão, que se supões ter sido um tal
Vergy. Charny colocou-a na Colegiada de Lirey (Diocese de Troyes),
fundada por ele mesmo alguns anos antes. Ora, mais ou menos na mesma
época reaparece, em Besançon, uma outra mortalha da qual temos numerosas
cópias, e que era evidentemente uma incompleta e má reprodução em
pintura da de Lirey. Foi o que demonstraram, sem dificuldade, os
enviados da Comissão de Segurança Pública, que a destruíram, de acordo
com o clero da Catedral, em 1794.
A Mortalha de Lirey não deixou por isso de ser alvo das hostilidades
dos bispos de Troyes: de início, Henrique de Poitiers; trinta anos mais
tarde, Pedro d’Arcy, que se opuseram à sua exposição pelos cônegos de
Lirey. Lamentavam-se de que os fiéis abandonavam as relíquias de Troyes,
para correr em massa a Lirey. Os Charnys cedo retomaram a relíquia,
guardando-a por trinta anos.
Em 1389 expuseram sua causa ao legado do novo papa de Avignon,
Clemente VII, que acabava de iniciar o grande cisma do Ocidente, depois
ao próprio antipapa em pessoa. Ambos autorizaram a exposição, não
obstante a proibição do bispo Pedro d’Arcy. Depois, em face das
reclamações deste, Clemente VII acabou por decidir, tentando um arranjo
com ambas as partes, que por um lado o bispo não poderia mais se opor às
exposições, mas, por outro, declarar-se-ia em cada exposição tratar-se
de uma pintura representando o verdadeiro Sudário de Nosso Senhor.
Pedro d’Arcy, em suas memórias, apresenta a Clemente graves acusações
eivadas de rancor contra os cônegos de Lirey, a respeito de simonia por
parte destes. Acrescenta, como se fosse verdade, que seu predecessor
teria feito uma pesquisa e recebido a confissão do pintor, autor da
Mortalha.
Não se encontrou jamais vestígio algum dessa investigação nem das
declarações do pintor. Se algum pintor houve, parece muito provável ter
sido o que copiou o Sudário de Lirey para fazer o de Besançon. Na
realidade, todas as decisões não foram motivadas senão por questões de
interesse particular e pelo argumento do silêncio dos Evangelhos sobre a
existência das impressões. Parece que o sudário nunca foi examinado
diretamente, sem parcialidade, pois se teria então visto como se vê
hoje, que não tem ele o menor sinal de pintura. Mas o pseudopapa
Clemente VII nunca se mostrou preocupado com isto.
É muito difícil resumir disputas um tanto sórdidas. Mas bem parece
poder concluir-se que o pobre Sudário não tinha senão um defeito, o de
não possuir “autênticas”. No entanto, como possuí-las, se sua presença
em Lirey era o resultado de duplo furto, sendo que o segundo comprometia
o próprio rei da França como acoutador de furtos? Foi precisamente a
falta de carteira de identidade que, em toda a parte, ocasionou
dificuldades ao último proprietário, Margarida de Charny, quando o levou
para Chimay, na Bélgica. Deste modo, após numerosas peregrinações, em
1452, ela o haveria de doar a Ana de Lusignan, esposa do dique de
Saboia.
Foi assim que chegou a Chambéry e tornou-se o que é ainda hoje,
propriedade da casa de Saboia, até há pouco reinante na Itália. Queira
Deus que chegue um dia a seu porto de destino natural, às mãos do Sumo
Pontífice, sucessor de São Pedro e Vigário de Jesus Cristo, o único
homem no mundo que tem verdadeiros direitos sobre esta relíquia!
A história do Santo Sudário torna-se daí para cá bastante conhecida. O
duque de Saboia mandou-lhe construir uma “Santa Capela” em Chambéry.
Sucedem-se as exposições e fazem-no ferver no óleo e lavaram-no com
sabão, várias vezes, sem poder apagar suas impressões. Ideia assombrosa,
se é que a crônica é verídica, mas que supões uma decidida e fera
vontade de certeza.
Como se os homens não bastassem, irrompeu um incêndio na Santa
Capela, em 1532, que por pouco não destruiu a relíquia. Uma gota de
prata derretida queimou um canto do tecido, dobrado em seu relicário,
causando-lhe assim duas séries de abrasamentos que encontramos a
intervalos regulares. Felizmente os buracos ficaram dos lados da
impressão central. A água empregada para extinguir o incêndio deixou
largos círculos simétricos em toda a extensão do Sudário. Foi este o
segundo incêndio depois do segundo furto.
Pelo menos um feliz resultado obteve-se daí: a devassa canônica para
estabelecer a autenticidade do Sudário danificado, e sua reparação pelas
Clarissas de Chambéry, que foi acompanhada de processo-verbal
descritivo e minucioso, feito por essas virtuosas moças.
O Sudário ainda peregrinou bastante, seguindo as vicissitudes
políticas de seu proprietário, chegando, finalmente, em 1578, a Turim,
onde São Carlos Borromeu o venerou. Emitira o voto de ir a Chambéry, mas
o duque de Saboia poupou-lhe a travessia dos Alpes, de modo que só teve
de ir a pé de Milão a Turim.
Foi, depois, colocado na Santa Capela, anexada à catedral de São
João, na mesma cidade de Turim, onde muito raramente é exposta,
dependendo isto de permissão especial da Casa de Saboia, que não é nada
pródiga. As últimas foram em 1898 (primeira fotografia), 1931 e 1933.
Esta última foi obtida em razão do centenário tradicional da morte de
Jesus (mas provavelmente inexato).
Trecho extraído do livro “A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião”, de Dr. Pierre Barbet
BARBET, P.A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião. Trad. Pe.
José Alberto de Castro Pinto.12ª edição. Ed. Loyola e Ed.Cléofas, São
Paulo,2014.
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