Por Débora Melo
Inicialmente tratada como um atestado de impotência
diante da crise instalada no Vaticano pelo vazamento de documentos
sigilosos (caso "Vatileaks"), a decisão do hoje papa emérito Bento 16
foi logo saudada como um ato de coragem, que abriu caminhos e inaugurou
um processo de renovação na Igreja Católica --e que hoje continua nas
mãos do papa Francisco.
"O grande desafio de um pontífice é o diálogo com o seu tempo, e a
igreja já não conseguia manter esse diálogo. Com a saúde debilitada,
Ratzinger já não tinha condições de ser o pastor universal que deve ser o
papa, já não tinha mais energia inclusive para lidar com uma série de
escândalos envolvendo instituições financeiras do Vaticano, nem com a
perda de fiéis", afirma Paulo Bosco, professor de direito da
Universidade Católica de Brasília e especialista em direito canônico.
"Tudo isso gerou uma reflexão profunda, que levou à renúncia. Isso,
para mim, foi a primeira grande renovação, o anúncio de uma nova etapa
para a igreja", continua Bosco. "O segundo passo foi a escolha de Jorge
Mario Bergoglio, um homem eleito para socorrer as necessidades da
igreja."
O episódio que ficou conhecido como "Vatileaks"
--que expôs casos de corrupção e má gestão no Vaticano-- e seus
desdobramentos são apontados como os principais motivos da renúncia do
papa, o primeiro caso em 600 anos. A investigação do vazamento rendeu um
dossiê encomendado por Bento 16 a três cardeais de confiança, onde são
descritas as disputas internas por poder na Cúria Romana (o governo da
Igreja Católica), assim como um esquema de chantagem a clérigos
homossexuais.
"Sem dúvida os problemas na Cúria foram o
principal motivo da renúncia. O papa viu que sua equipe de confiança não
era tão de confiança assim. Existem indícios de que Bento 16 sempre
teve muito claro para si que um dia renunciaria, de que não tinha a
ideia de morrer no cargo, e essa questão da Cúria foi determinante", diz
o professor Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e
Cultura da PUC-SP.
Agora, com o papa Francisco, a Cúria Romana
se tornou um dos grandes alvos desse momento de renovação. Francisco,
que já chegou a dizer que a Cúria é a "lepra do papado", criou em setembro o Conselho de Cardeais ("G8 do Vaticano"),
grupo de oito religiosos que irá ajudar o pontífice na administração da
igreja e na criação de um projeto de reforma da Cúria Romana.
Em entrevista ao jornal italiano "La Repubblica", o papa Francisco
criticou os integrantes da Cúria Romana e qualificou a alta cúpula do
clero como "a lepra do papado"
"Ele está conduzindo uma reforma de enxugamento para tornar o Vaticano
uma instituição mais simples, visualmente mais pobre. O problema do
Vaticano não é a riqueza, mas a ostentação que pode haver em certos
momentos. E a Cúria é o órgão que mais tem de passar por isso", diz o
professor Borba. "As palavras mais duras de Francisco são sempre
endereçadas aos bispos. Francisco tem uma lógica: quanto mais perto você
está dele, mais duro é o discurso que ele faz. Os bispos são aqueles
que ele precisa convencer sobre as necessidades de reforma e quem deve
dar o exemplo", completa.
Da renúncia de Bento 16 à visita do papa Francisco ao Brasil
Os escândalos de corrupção envolvendo o banco do Vaticano --formalmente
conhecido como IOR (Instituto para as Obras de Religião)-- também são
apontados como causas da renúncia de Bento 16. O ex-contador de alto escalão monsenhor Nunzio Scarano chegou a ser detido por lavagem de dinheiro.
Segundo as investigações, Scarano se ocupava de uma ampla rede
corrupção que fazia falsas doações e que envolveria milhões de euros em
contas do banco do Vaticano.
Agora, em um passo importante de
suas reformas, o papa Francisco trocou, no início de janeiro, quatro dos
cinco cardeais da comissão que supervisiona o banco do Vaticano --entre os substituídos estava o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer. Em novembro, o papa já havia nomeado seu secretário pessoal, Alfred Xuereb, para supervisionar as atividades do banco.
"O grande desafio do papa Francisco é a ênfase no governo interno da
igreja, nos assuntos econômicos do Vaticano. A primeira grande tarefa é a
modificação da administração de bens temporais. É preciso conservar e
administrar esses bens da igreja, pois, sem isso, não será possível se
dedicar às demais reformas", afirma o professor Paulo Bosco. "Muitas
pessoas estão sedentas por mudanças de doutrina, mas o desafio é a
reforma interna. Ele não pode avançar em reformas de diálogo com o mundo
sem antes resolver os seus problemas internos", completa.
Pedofilia
Escândalos de pedofilia envolvendo sacerdotes da Igreja Católica também
são apontados como causas do desgaste que levou Bento 16 a renunciar.
"O problema seria a vergonha. Os religiosos fazem votos de pobreza,
castidade e obediência, mas nada disso Bento 16 via, muito menos
castidade. Enxergou, então, uma grande vergonha para a igreja, e isso se
transformou em uma situação eticamente insuportável para ele", afirma o
teólogo Ubirajara Calmon Carvalho, professor aposentado de filosofia da
UnB (Universidade de Brasília).
Em dezembro, o papa Francisco criou uma comissão específica para prevenir casos de pedofilia
na igreja --ideia proposta pelo "G8 do Vaticano"--, no que seria uma
continuidade do trabalho de Bento 16. Em janeiro, o porta-voz do
Vaticano, Federico Lombardi, anunciou que cerca de 400 religiosos foram expulsos do sacerdócio por denúncias de pedofilia durante o pontificado de Bento 16.
No último dia 5, a ONU (Organização das Nações Unidas) exigiu que o Vaticano afaste todos os clérigos suspeitos ou acusados de pedofilia
e que os entregue à Justiça. Em resposta, o Vaticano afirmou que
defende os direitos das crianças, mas disse que o relatório ignora
avanços já feitos e mostra uma tentativa da ONU de interferir nas doutrinas da igreja.
Papa Francisco cumprimenta dançarinos do Sri Lanka que se
apresentaram durante uma missa em homenagem ao país, na Basílica de São
Pedro no Vaticano neste sábado (8) Alessandra Tarantino/AP
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