ihu - "É preciso provar que o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo é, na
verdade, moralmente errado para propor aos homossexuais um fardo tão
pesado como o que a Igreja propõe: a total abstinência sexual e a
privação de relações afetivas estáveis com um parceiro com quem se
partilha a totalidade da vida, nas suas várias dimensões", escreve Jorge Paulo,
licenciado em Teologia, em Línguas e Literaturas Modernas, mestre em
Linguística pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa e professor do
ensino básico e secundário, em artigo publicado pelo sítio iMissio, 02-03-2015.
Eis o artigo.
Depois de, em Portugal, como na maior parte dos
países democráticos, o sistema legal ter acolhido o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, coloca-se agora a questão da adoção pelos mesmos
casais. O preconceito, a hostilidade homofóbica, a intolerância em
relação àquilo que é diferente e minoritário, bem como a desconfiança
introduzem-se sub-repticiamente na mente e no discurso político, de tal
forma que a maioria conservadora, apesar de a Constituição da República
obrigar à não discriminação por motivos de orientação sexual, se recusou
a aprovar os diplomas em discussão, ficando, portanto, os casais
homossexuais impedidos de adotar.
Mas não é esta a questão que me leva a escrever este artigo. O tema
que pretendo pôr à consideração do leitor é prévio à questão da adoção.
Como cristão e católico que sou, gostaria de refletir sobre a posição
oficial da Igreja Católica face à homossexualidade. Na verdade, creio
até que o argumentário defendido pela Igreja sobre tal assunto é
partilhado por cidadãos e políticos conservadores, sejam eles
declaradamente católicos ou não.
Comecemos por procurar entender o que Catecismo da Igreja Católica
(n.º 2357-2359) propõe doutrinalmente a respeito de tão polémica
questão. Depois de iniciar com a definição de homossexualidade e de
declarar que a «sua génese psíquica continua em grande parte por
explicar», avança com os dados da Sagrada Escritura que, segundo o
Catecismo, entende as relações homossexuais como depravações graves (cf.
Gn 19, 1-29; Rm 1, 24-27; 1 Cor 6, 9-10; 1 Tm 1, 10) e com os dados da
Tradição, ou seja, das posições oficialmente assumidas pela Igreja ao
longo dos séculos, que «sempre declarou que os atos de homossexualidade
são intrinsecamente desordenados», «são contrários à lei natural, fecham
o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira
complementaridade afetiva sexual (…)», não podendo, portanto, ser
aprovados.
Em seguida, após a explícita condenação moral de todo o ato
homossexual, propõe à comunidade que aja com compaixão, evitando
qualquer discriminação injusta, e à pessoa homossexual que caminhe na
via da castidade (abstinência sexual), através da virtude do
autodomínio.
Há essencialmente duas formas de se entender a homossexualidade.
A primeira reconhece nela o fruto de uma decisão livre; a segunda
descreve-a como condição da pessoa homossexual. Se à primeira poderíamos
atribuir responsabilidade moral, uma vez que decorre de uma opção livre
do sujeito, à segunda nenhuma responsabilidade moral poderá ser
assacada ao sujeito, uma vez que se trata da sua condição ― ou, se
quisermos, da sua natureza pessoal ― e não de uma opção que o sujeito
poderia ter contrariado. O Catecismo aceita a segunda interpretação, mas não deduz daí as consequências necessárias.
Em princípio, as pessoas devem atuar de acordo com a sua condição,
desde que tal condição não se configure patologicamente e se manifeste,
portanto, em ações claramente reprováveis eticamente. O assassino em
série responde à sua condição, matando determinado tipo de pessoas e
repetindo tal ato de forma continuada. A resposta a um estímulo interior
não torna bom o ato em si, apenas atenua ou anula a sua
responsabilidade moral. Porém, o homossexual e o assassino em série nada
têm que ver um com o outro. É preciso provar que o ato sexual entre
pessoas do mesmo sexo é, na verdade, moralmente errado para propor aos
homossexuais um fardo tão pesado como o que a Igreja propõe: a total
abstinência sexual e a privação de relações afetivas estáveis com um
parceiro com quem se partilha a totalidade da vida, nas suas várias
dimensões.
Passemos, pois, aos argumentos sugeridos pela Igreja para condenar o ato homossexual. Em primeiro lugar, vêm os dados da Sagrada Escritura
já citados acima. Cumpre dizer, antes de mais, que a Bíblia não é
nenhum manual de ética cujas afirmações tenham de ser integral e
minuciosamente aceites como fontes absolutas de orientação da conduta
humana. Na verdade, se assim fosse, teríamos de continuar a aceitar a
escravatura, uma vez que é amplamente acolhida nos textos do Antigo e do Novo Testamento
(cf. Ex. 21,2-4; Lev. 25, 44-46; Ef. 6,5; 1Tm. 6, 1-2; Tt. 2,9; 1Pd.
2,18). Ou a poligamia, uma vez que não há nenhuma condenação da mesma
nos textos bíblicos, nem mesmo Jesus a condena, e é claramente atestada
no Antigo Testamento e sugerida no Novo. Há até o curioso texto de 2Sam
12,8 no qual Deus, falando através do profeta Natã, afirma que, se as
esposas e concubinas de David não fossem suficientes,
ele próprio (Deus) teria providenciado ainda mais algumas. Logo, não
basta que a Bíblia condene um ato para que automaticamente tenhamos de
nos sujeitar a tal condenação, ainda que pertençamos à comunidade
religiosa que assume a Bíblia como livro inspirado. Na realidade, a
Sagrada Escritura é o testemunho da Palavra de Deus (não a Palavra de
Deus em si mesma, mas o seu testemunho) e simultaneamente é um conjunto
de textos historicamente datados, com todas as limitações que tal
situação impõe. As sociedades evoluem. As de hoje pouco têm em comum com
as sociedades em que os textos bíblicos foram produzidos. A condenação
do empréstimo a juros, por exemplo, é um caso típico de alteração dos
procedimentos em sociedades com organizações claramente diferenciadas, o
que levou a Igreja a adaptar-se a novas circunstâncias. A Bíblia não é,
pois, um manual de ética que tenha de ser cumprido nos mais ínfimos
pormenores sem que as suas afirmações axiológicas sejam submetidas ao
escrutínio da razão. E muito menos deve ser utilizada instrumentalmente,
desgarrando da mensagem global umas poucas atestações do que queremos
provar. Esse uso, não conforme às melhores práticas exegéticas, é
aplicado sistematicamente pelos grupos fundamentalistas e,
estranhamente, pelo próprio magistério oficial da Igreja Católica,
sobretudo nos textos sobre moral sexual.
Há ainda a considerar a polémica exegética quanto ao que está em
causa nos textos citados sobre uma suposta condenação bíblica da
homossexualidade. Para muitos exegetas, trata-se simplesmente da
condenação da prostituição ritual e não da homossexualidade enquanto
tal. Talvez o texto mais citado, que deixou marcas profundas na cultura
homofóbica e na língua (veja-se, por exemplo o conceito de “sodomia”), é
o que narra a destruição da cidade de Sodoma (Gn. 19). Muitos exegetas
consideram que o pecado grave de que são acusados os habitantes de
Sodoma (cf. Gn 18,20) não é a homossexualidade, mas o atentado ao caráter sagrado da hospitalidade, valor de primeira ordem na hierarquia dos povos antigos do Próximo Oriente
(e de outras regiões). Mas o magistério oficial prefere citar os textos
sem atender aos estudos exegéticos de maior relevância, fixando a
interpretação do texto a partir das suas pré-compreensões profundamente
arreigadas a conceções conservadoras. No fundo, o texto bíblico não é
usado para fundamentar uma posição teológica, é a posição teológica
previamente estabelecida (muitas vezes, eivada de preconceitos) que
instrumentaliza o texto bíblico de modo a que funcione como sua suposta
base de sustentação.
A argumentação extraída da Tradição, segundo o Catecismo,
justifica a condenação do ato homossexual por ser intrinsecamente
desordenado, contrário à lei natural, fechar o ato sexual ao dom da vida
e não proceder duma verdadeira complementaridade afetiva sexual.
Vejamos o poder probatório de cada um destes argumentos. O primeiro
incorre num vício lógico da petitio principii (círculo vicioso), não
tendo, por isso, qualquer valor probatório. O que se pretende clarificar
é a moralidade do ato homossexual, o seu enquadramento na ordem ética.
Afirmar perentoriamente que ele é intrinsecamente desordenado, ou seja,
que não se enquadra na ordem ética, é procurar justificar a imoralidade
do ato com… a sua imoralidade intrínseca! Defender que se trata de um
ato desordenado (na ordem ética da vida), sem apresentar qualquer outra
justificação é proferir afirmação gratuita sem valor probatório de
espécie alguma.
Em segundo lugar, o Catecismo argumenta que se trata
de um ato contrário à lei natural. Mas o que é a lei natural? Este
conceito tem as suas raízes na filosofia grega e, sobretudo, no
estoicismo. De uma forma geral, podemos entender o conceito de lei
natural de duas maneiras: a lei que subjaz à ordem do universo, no qual o
ser humano está inserido, e a lei moral ínsita na natureza humana.
Assim, quando se pretende justificar a anormalidade do ato homossexual
humano recorrendo ao que acontece no reino animal e defendendo que só
nas sociedades humanas é que encontramos tal «aberração» (o que, de
todo, não corresponde à verdade), está-se a usar o conceito de lei
natural na sua primeira aceção. Segundo esta perspetiva, o ser humano
teria de se submeter à ordem do universo material. Tal perspetiva não
tem em conta o facto de o ser humano, enquanto ser livre e racional,
poder redesenhar o mundo de acordo com os seus interesses e desejos,
como aliás tem feito ao longo da história. O ser humano, pela sua
própria natureza, está apenas parcialmente sujeito à ordem do universo.
Ele é capaz de reconstruir o mundo a partir da sua imaginação criativa. E
é exatamente esta sua radical diferença em relação aos restantes
elementos da natureza que faz dele alguém que se coloca diante de Deus
como seu interlocutor adequado, moralmente responsável pela sua ação
concreta.
Resta-nos o segundo conceito de lei natural. Seria, portanto, a lei
inscrita na consciência humana, a lei moral. Mas assim sendo, estamos
novamente perante um círculo vicioso: queremos demonstrar que o ato
homossexual é (des)conforme aos princípios éticos e usamos como
argumento a afirmação de que é desconforme! Também esta justificação
padece, pois, de uma falácia lógica, não tendo, por isso, qualquer valor
probatório.
Os últimos dois argumentos fogem a este erro lógico. De facto, um
casal homossexual não pode procriar e se considerarmos que uma das
principais finalidades do ato sexual é a procriação, então todo o ato
homossexual seria intrinsecamente imoral, porque não cumpre nem pode
cumprir a finalidade para a qual existe. Mas será mesmo assim? Na
verdade, a finalidade procriativa do ato sexual não é qualidade
especificamente humana. Todos os seres vivos que se reproduzem
sexualmente partilham com o ser humano esta finalidade do ato sexual.
Contudo, ao contrário dos outros habitantes do planeta, o ser humano não
se limita a ter relações sexuais apenas quando a fêmea está no seu
período fértil, mas sempre que ambos o desejam, independentemente das
condições físicas de fertilidade da fêmea. Assim sendo, o ato sexual
humano não pode reduzir-se à função procriativa, nem esta pode ser a sua
função específica. Se o fosse, todos os atos sexuais entre pessoas com
problemas de infertilidade seriam imorais! Na verdade, a Igreja defende
também que o ato sexual humano tem igualmente uma função unitiva, ou
seja, manifesta e consolida a união de amor entre os elementos do casal.
Sendo esta a função específica da relação sexual humana, o ato
homossexual estaria, à partida, justificado, uma vez que cumpre o
critério que distingue o ser humano de todos os outros elementos do
reino animal.
Porém, há uma pequena nuance na argumentação do Catecismo:
o texto refere que o ato sexual se fecha à vida, desrespeitando, assim,
o seu significado procriativo. Mas por que razão terão todas as
relações amorosas de estar abertas ao nascimento de filhos? Sabemos que
nem todos os casais heterossexuais estão disponíveis para terem filhos,
pelas mais variadas razões: ou porque não sentem vocação para a
maternidade-paternidade, ou porque têm projetos de vida que são
incompatíveis com o tempo e a dedicação que os filhos exigem, ou ainda
por outros motivos que me dispenso de descrever. As duas razões que
acabei de enunciar são, em minha opinião, claramente justificativas da
opção do casal em não ter filhos. São até sinal de responsabilidade
ética e não de falta dela. Se assim é, a finalidade procriativa não tem
de se realizar em todos os casais existentes à face da Terra, até porque
tal obrigação moral tornaria a vida na Terra demograficamente
insustentável. Resta, portanto, o segundo significado: o ato sexual como
expressão do amor e consolidação da união afetiva entre os elementos do
casal. E esse significado tanto pode ocorrer em casais heterossexuais
como homossexuais. Em última instância, nem sequer é verdade que há um
fechamento à vida, porque um casal homossexual pode, por exemplo, adotar os seus filhos e constituir assim uma família, realidade com que a Igreja também não concorda!
O último argumento do Catecismo
defende que o ato sexual não é aceitável porque não procede duma
verdadeira complementaridade afetiva sexual. Esta afirmação parece ser
inteiramente gratuita e negada pelos factos. Que há casais homossexuais
estáveis afetivamente é um facto. Que se sentem complementares é outro
facto indesmentível. Além disso, a noção de complementaridade é muito
discutível enquanto critério ético, porque pressupõe que cada indivíduo é
em si mesmo incompleto, carecendo da outra metade para o completar.
Levada às últimas consequências, tal visão tornaria inaceitável
moralmente a escolha do celibato, uma vez que a incompletude de um
indivíduo exigiria sempre, para poder ser satisfatoriamente resolvida,
através de um casamento. E decerto que tal argumentação não seria do
agrado do magistério eclesial! Ou será que a Igreja pensa apenas na
questão anatómica quando enuncia este suposto princípio ético? Não me
parece que um princípio de natureza ética possa ser sustentado pela
diferença anatómica entre homem e mulher. Por último, gostaria de
referir ainda que, tendo em conta que o princípio fundamental do
cristianismo é o princípio do amor, este deve ser também o critério
moral com base no qual se deve aquilatar a relevância ética de uma
relação sexual, sejam os sujeitos de tal relação hétero ou homossexuais.
Concluindo, não reconheço, no argumentário da Igreja a respeito desta
questão espinhosa, nenhum fundamento suficientemente dirimente para
determinar a enfática desaprovação moral de toda a relação homossexual.
Por isso, guardo apenas as sábias palavras do Catecismo
quando, no seu n.º 2358, incita os cristãos a acolherem “com respeito,
compaixão e delicadeza” todos os indivíduos homossexuais, evitando, “em
relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta”.
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