"Em relação ao clero e ao episcopado no Brasil, o 'efeito Francisco' ainda é um pouco mais lento na recepção dos seus gestos mais proféticos", avalia o historiador.
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O anseio por uma Igreja “em saída”, que leve Jesus para todos os espaços, tem emergido como uma das principais linhas condutoras do pontificado de Bergoglio nesses dois anos. A análise é de Sérgio Coutinho, que
considera, entretanto, que as palavras de Francisco têm recebido mais
aceitação do que propriamente “os gestos mais proféticos” do Papa.
Segundo o historiador, há uma intenção clara de solidificar o caráter
missionário da Igreja, buscando uma aproximação maior com a sociedade,
sobretudo com os estratos mais pobres da população.
Trata-se da busca de uma mudança de mentalidade e de estrutura em
direção à perspectiva do discípulo-missionário, que se propõe a “tocar a
carne de Cristo”, destaca.
Essa proposta se evidencia em diversos documentos como, por exemplo, as resoluções da 53ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, onde são apresentados os rumos da Igreja no país. Nesse documento especificamente, a CNBB se posicionou acerca
das desigualdades, da situação dos povos indígenas e da vida política
brasileira, da qual se propõe a participar com autonomia. Em relação à
ação evangelizadora, é acolhida a visão do Papa Francisco de uma Igreja
missionária e misericordiosa, porém, de acordo com Coutinho, “o conteúdo teológico das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora - DGAE
é muito mais avançado que a prática dos próprios bispos que aprovaram o
texto. Há um descompasso entre a teoria e a prática, que é ainda
muitíssimo autorreferencial e pouco em ‘saída’”. A mudança de
mentalidade e a conversão pastoral foram apontadas pelo historiador como
os grandes desafios da Igreja contemporânea.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Sérgio Coutinho ainda faz uma avaliação dos reflexos da conjuntura política brasileira
na atuação da Igreja no país e aponta que as denúncias de corrupção e a
tensão política, com o acirramento de posições mais conservadoras na
sociedade, acabaram incidindo no perfil da nova presidência da CNBB.
Externamente, apesar de manter certa cautela, a instituição se preocupa
em continuar o diálogo com a sociedade e o atual governo, mas
internamente mantém “um controle cada vez maior sobre o papel dos
assessores(as) das 12 Comissões Episcopais Pastorais, reduzindo-os a apenas secretários-executivos”, frisa.
Sérgio Ricardo Coutinho
é professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de
Brasília e da disciplina “Serviço Social, Religião e Movimentos
Sociais”, no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de
Brasília.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Como a Igreja no Brasil tem recebido o pontificado de Francisco nesses dois anos?
Sérgio Coutinho - Como em todo mundo, aqui também o impacto do Papa Francisco
é bem evidente entre o povo, de modo geral, e na Igreja entre os
leigos, que aprovam muito seu jeito de ser, gestos e palavras. Ele
mesmo, de próprio punho, escreveu e enviou cartas para dois importantes
eventos eclesiais no Brasil: para o 13º Intereclesial das Comunidades
Eclesiais de Base, em 2014, e para o 11º Encontro Nacional da Pastoral
da Juventude, em 2015. Junto ao nosso povo católico, de modo especial
junto ao laicato das comunidades e à juventude mais engajada nas
pastorais, se reconhece sua linguagem por uma “Igreja pobre e para os pobres”.
Já em relação ao clero e ao episcopado no Brasil,
o “efeito Francisco” ainda é um pouco mais lento na recepção dos seus
gestos mais proféticos, mas suas palavras têm sido muito consideradas e
usadas abundantemente. Para isso, basta ver todo o material visual da
última Campanha da Fraternidade onde, pela segunda vez, a CNBB usou uma imagem do Papa para ilustrar seu cartaz (a primeira vez foi em 1968 com a imagem de Paulo VI) em que aparece repetindo o gesto de Jesus no lava-pés e, além disso, a ampla citação da Exortação Evangelii Gaudium [1] e do mais recente texto da Bula Misericordiae Vultus [2] nos documentos da CNBB.
IHU On-Line- Em artigo recente, o senhor comentou que as nomeações episcopais para o Brasil poderão significar “a continuidade do espírito wojtyliano-ratzingeriano”, com pouca preocupação pastoral-missionária. Em que fundamenta esses comentários?
Sérgio Coutinho - A primeira fundamentação está, como não poderia deixar de ser, no longo pontificado de João Paulo II
[3] e de todo o processo de implementação e formação de quadros
internos para levar a cabo o projeto de uma Nova Evangelização. Projeto
este pautado por aquilo que o Pe. João Batista Libânio [4] chamou de “volta à grande disciplina”, e pelo que a socióloga francesa Danièle-Hervieu-Léger
[5] chamou de “concentração católica”, ou seja, formação de quadros
clericais (e também laicais) fortalecidos em sua “identidade católica”,
visando enfrentar o duro inimigo da “ditadura do relativismo”.
Neste sentido, o celeiro de onde saem os bispos no Brasil
são os formados majoritariamente para dar continuidade a um modelo de
Igreja “autorreferencial” e isto fica muito evidenciado no perfil
acadêmico-moral-pastoral da maioria dos bispos recém-nomeados:
formadores/reitores de Seminários, especialistas em Direito Canônico
e/ou Teologia Moral (canonistas moralistas).
IHU On-Line - A partir da sua crítica às nomeações episcopais, como vê o discurso e as ações de Francisco em relação à preocupação pastoral-missionária?
Sérgio Coutinho - O Papa Francisco
tem um programa pastoral muito claro e ele já tinha deixado claro ainda
no pré-conclave. Abandonar uma Igreja “doente”, curvada sobre si mesma
como aquela mulher dos Evangelhos, por uma Igreja “acidentada”, ferida e
enlameada (Evangelii Gaudium 49), que não tem medo de correr
riscos. Quais seriam os riscos? O primeiro, de errar o caminho, mas ele
prefere errar tentando, a ficar estacionado numa suposta segurança; e
outro risco é de “sofrer acidentes” e morrer, e ele tem abordado muito
intensamente a experiência dos milhares de mártires contemporâneos.
Penso que a beatificação de Dom Oscar Romero [6] sinaliza o modelo de Igreja que ele deseja.
"Levaria ainda mais outros 30 anos para se conseguir desmontar a mentalidade de toda uma geração de presbíteros e futuros bispos"
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IHU On-Line - Qual a importância da Conferência de Aparecida, em 2007, em que Bergoglio foi relator do documento final? Como as linhas mestras desse documento aparecem no pontificado de Bergoglio?
Sérgio Coutinho - Não
há dúvida que seja o desejo de uma Igreja “em saída”, que não trancafie
Jesus em seu interior, mas o “liberte” para que caminhe em direção às
periferias existenciais. Desta forma, as linhas mestras são: conversão
pastoral, mudança de mentalidade e de estrutura em direção a uma Igreja
decididamente missionária; e assumir a perspectiva do
“discípulo-missionário” que caminha em direção aos pobres, que visa tocar a “carne de Cristo”.
IHU On-Line - Que avaliação faz da eleição da nova presidência da CNBB, com a nomeação de dom Sérgio da Rocha e o vice-presidente, dom Murilo Krieger?
Sérgio Coutinho - A eleição de Dom Sérgio da Rocha [7] e de Dom Murilo Krieger [8] precisa ser compreendida com um maior distanciamento no tempo. Acaba, de certa forma, por remeter à chegada do PT ao poder em 2002.
Para explicar um pouco melhor as
eleições precisamos minimamente tipificar os grupos que formam o
episcopado brasileiro. Há cinco anos, escrevi um artigo no site do IHU, em que tentei construir uma tipologia dos bispos brasileiros. Agora ele está um pouco mais sofisticado, mas nada que complique muito a análise.
Na verdade, são tipos-ideais weberianos,
ou seja, são tipos puros que não conseguiremos encontrar todos os seus
elementos explicitamente visíveis na realidade. A realidade sempre se
mostra muito mais dinâmica e complexa, mas pode ajudar-nos a entender
melhor as várias tendências internas no episcopado brasileiro. Nesta
tipologia não vamos remeter aos já clássicos termos vindos da política,
como direita-conservadores, esquerda-progressistas ou centro-moderados
(ou como eu mesmo usei naquele referido artigo: “concentração católica”,
“de libertação” e “moderados-conservadores”), pois as diferentes
posições dos bispos não devem ser encontradas em filiações políticas ou
ideológicas, mas em pontos de vista teológicos sobre Cristologia,
Eclesiologia e Antropologia cristã. Assim, teríamos bispos:
a) Neopelagianos: Como diz o papa Francisco, são “autorreferenciais” que focam na “segurança doutrinal ou disciplinar” (Evangelii Gaudium
94), com forte “pretensão de dominar o espaço da Igreja” por meio de
“um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da
Igreja” (Evangelii Gaudium 95);
b) Neoagostinianos: Também muitos deste grupo assumem uma postura “autorreferencial” e seguem a esteira deixada pelo cardeal teólogo Joseph Ratzinger
(depois papa Bento XVI): possuem uma postura cautelosa na relação
Igreja-mundo, defendem a “identidade católica” com um foco
cristocêntrico (a necessidade absoluta de Cristo para a salvação) e um
arraigado eclesiocentrismo normativo (clericalismo e corporativismo);
c) Neotomistas: Com um
foco reinocêntrico, estão comprometidos com a missão de pregar, servir e
testemunhar o reinado de Deus na história e no mundo dos pobres, e se
identificam muito com o projeto do papa Francisco de uma Igreja “em saída” (Evangelii Gaudium 49).
Tendo como referência o número total de
bispos com direito à voto, ou seja, 294 bispos, e observando alguns
dados da avaliação e observando a intenção de voto (a melhor forma de
verificar é pelos resultados dos 1os Escrutínios) para os cargos da
Presidência, Consep [9] e delegado do CELAM, [10] teríamos a seguinte composição quantitativa:
Neopelagianos: 20% (58 bispos);
Neoagostinianos: 50% (147 bispos);
Neotomistas: 30% (89 bispos).
Evidentemente é um dado hipotético, mas
não muito longe da realidade. Para isso fiz a seguinte contabilidade a
partir dos votos recebidos por três nomes que podem muito bem ser
classificados como neotomistas, apesar de todas as ressalvas que se
possa ter: Dom Sérgio Castriani (arcebispo de Manaus) e Dom José Belizário (arcebispo de São Luís).
Dom Sérgio ficou em segundo lugar com 22% e Dom Belizário com 10% (32% no total) no 1º escrutínio para o cargo de vice-presidente da CNBB. Já na escolha do nome para delegado do CELAM, Dom José Belizário bateu dois cardeais (Dom Orani Tempesta [11] e Dom Odilo Scherer
[12]) com 30% dos votos. Interessante notar também que nas eleições
para a Comissão Pastoral que acompanha as Pastorais Sociais, D. Guilherme Werlang (bispo de Ipameri) alcançou 44%.
Uma conta parecida poderia ser feita para os neopelagianos. Observando os votos que Dom Murilo Krieger e Dom Odilo Scherer receberam no 1º escrutínio para o cargo de presidente, conseguiram 11% e 8%, respectivamente. Na escolha de delegado para o CELAM, Dom Odilo recebeu 13% dos votos e Dom Murilo alcançou 44% para o cargo de vice-presidente no 1º escrutínio.
Os neoagostinianos são o “fiel da
balança”, pois, dependendo do tema, podem se aproximar de cada um dos
polos. Isto pode ser observado na eleição de Dom Sérgio da Rocha para a presidência da CNBB, onde foi amplo o consenso entre todos os grupos, alcançando 73% dos votos.
Assim, podemos compreender melhor o que foram estas eleições.
Em 2003, quando Lula chega à Presidência da República, a CNBB elegeu dois nomes com ampla experiência na Cúria Romana e que representavam os grupos mais identificados com o projeto da “Nova Evangelização”
e com o perfil teológico-pastoral “neopelagiano” e “neoagostiniano” e,
por isso mesmo, com um cuidado redobrado com o novo governo. Os eleitos
foram Dom Geraldo Majella Agnelo [13] (primaz do Brasil) e Dom Odilo Scherer (auxiliar de São Paulo), como presidentes e secretário-geral respectivamente, sendo Dom Celso Queiroz
(bispo de Catanduva) o representante dos neotomistas na
vice-presidência. Todos sabem que os cargos de presidência e
secretaria-geral são os mais importantes em função, não só da
visibilidade, mas da linha pastoral que vai ser colocada em curso.
Também o CONSEP foi praticamente todo tomado por bispos daqueles grupos, como Dom Aldo Pagotto (arcebispo da Paraíba) para a Comissão das Pastorais Sociais, Dom Walmor Oliveira de Azevedo (arcebispo de Belo Horizonte) para a Comissão da Doutrina da Fé, Dom Rafael Llano Cifuentes (bispo da Opus Dei de Nova Friburgo) para a Comissão da Família.
"A ação evangelizadora é apresentada como consequência da fidelidade da Igreja a Jesus Cristo"
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Nesta época, por pressão exercida pelo então Núncio Apostólico, Dom Lorenzo Baldisseri (atual cardeal secretário do Sínodo dos Bispos), a CNBB
desejava um acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé em vista da
segurança jurídica para a Igreja em diversos pontos. Além disso, havia o
desejo de também retomar a presidência do CELAM que há muitos anos não tinha um brasileiro ali (o último tinha sido Dom Aloísio Lorscheider
em 1979). A Igreja do Brasil vinha construindo lentos passos para
melhorar as relações com o CELAM e com a Cúria Romana. E as coisas
facilitaram muito quando, em 2005, o papa Bento XVI, surpreendentemente, indicou o Santuário de Aparecida para a realização da V Conferência Geral do CELAM. O efeito imediato foi a meteórica ascensão de Dom Odilo: nomeado arcebispo de São Paulo e, em seguida, cardeal.
Em 2007, a Assembleia Geral da CNBB acontece poucos dias antes da chegada de Bento XVI ao Brasil e da abertura da V Conferência. Naquele contexto, Lula tinha sido reeleito e estava com ótima popularidade.
As eleições desta vez foram amplamente favoráveis aos neotomistas, elegendo Dom Geraldo Lyrio Rocha (presidente e arcebispo de Mariana), Dom Luís Soares Vieira (vice-presidente e arcebispo de Manaus) e Dom Dimas Lara Barbosa (secretário-geral, auxiliar do Rio de Janeiro e mais próximo dos neoagostinianos). Logo de cara a CNBB conseguiu encampar seu candidato para a presidência do CELAM em 2007: o cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis (arcebispo de Aparecida).
Esta presidência estabeleceu amplo diálogo com o Governo Federal sempre mediado pelo fiel escudeiro de Lula, Gilberto Carvalho [14]. O ponto alto foi, sem dúvida nenhuma, a aprovação do Acordo Brasil-Santa Sé em 2008. No entanto, as coisas começaram a esquentar quando o governo propôs o Plano Nacional de Direitos Humanos 3
(PNDH3). Na Assembleia Geral de 2010 os neopelagianos estavam
firmemente decididos a se opor ao projeto (chamado de bolivariano e
relativista) e acusavam a presidência da CNBB de se
esquivar e de não ter uma posição clara sobre o conteúdo moral do Plano.
E neste mesmo ano, quando das eleições presidenciais, aqueles dois
grupos fazem campanha aberta contra a candidatura de Dilma Rousseff, chegando até mesmo o assunto ao papa Bento XVI que se manifestou durante a visita Ad Limina [15] dos bispos do Regional Nordeste 5 (Maranhão).
Tudo levava crer que os neopelagianos e parte dos neoagostinianos iriam conseguir novamente a presidência da CNBB em 2011. Pelo contrário, e mantendo uma linha de continuidade, se mantiveram na presidência os neotomistas com Dom Raymundo Damasceno, [16] Dom José Belisário (arcebispo de São Luís) e Dom Leonardo Steiner (bispo de São Felix do Araguaia).
Esta presidência se pautou por uma postura de diálogo com a sociedade e com o governo de Dilma Rousseff, mas mantendo autonomia crítica. E ainda mais, esta presidência foi beneficiada e ainda mais legitimada após a renúncia do papa Bento XVI em fevereiro de 2013 e a eleição do Papa Francisco (não custa lembrar que Dom Damasceno funcionou como um “king-maker”, juntamente com Dom Cláudio Hummes [17], na eleição de Bergoglio contra a candidatura de Dom Odilo Scherer).
Com a reeleição de Dilma,
agora em 2014, e as denúncias de corrupção e a crise política que se
instalou, com o acirramento de posições mais conservadoras na sociedade
(até mesmo Dom Aldo Pagotto [18] foi fotografado vestindo verde e amarelo, com um apito na boca, e gritando “Fora Dilma!”, “Fora PT!”), acabou escorrendo para dentro da CNBB.
Desta forma, neste ano de 2015 tudo poderia indicar para a vitória de um neopelagiano. Dom Murilo Krieger, representante do primeiro grupo, assumiu uma posição dúbia. Fez declarações contrárias, na rede de notícias Zenit, ao Projeto de Reforma Política que a CNBB tinha assumido conduzir ainda na Assembleia de 2011. E no mês seguinte escreveu um artigo incentivando seus fiéis a assinarem o mesmo projeto de iniciativa popular.
Como se diz no popular, “jogou para a torcida”, especialmente para
aqueles bispos anti-Petistas. Acabou conseguindo a vice-presidência.
Dom Sérgio da Rocha,
como dissemos, foi o grande consenso entre os bispos. Consegue transitar
por todos os grupos. Isto porque foi arcebispo em uma arquidiocese de
periferia (Teresina) antes de se transferir para Brasília, foi
presidente da Comissão da Doutrina da Fé e é um bispo com “cheiro de
ovelhas”. Já Dom Leonardo Steiner, [19] reeleito para a Secretaria-geral, revela a continuidade de uma CNBB
externamente preocupada em continuar o diálogo com a sociedade e o
atual governo, mas com uma maior cautela, pois agora terá um presidente
que atuará com mais firmeza que D. Damasceno.
Internamente, vai continuar com o mesmo processo de redução de gastos e
de captação de recursos, e de controle cada vez maior sobre o papel dos
assessores(as) das 12 Comissões Episcopais Pastorais, reduzindo-os a apenas “secretários-executivos”.
IHU On-Line - Quais os principais resultados da 53ª Assembleia Geral da CNBB? O que a 53ª Assembleia demonstra sobre os rumos da Igreja no Brasil?
Sérgio Coutinho - Podemos distinguir dois âmbitos: ad extra e ad intra. Ad extra — Na sua relação com a política e com a sociedade, a 53ª Assembleia Geral se apresentou bastante profética ao lançar mensagens duras sobre a desigualdade, sobre o momento político e sobre a situação dos Povos Indígenas. Estes textos estão entre os melhores que a CNBB
já produziu em toda a sua história. Os bispos deram um recado para os
vários grupos “integristas” católicos de que ela vai continuar sim
participando da vida política do país, assumindo uma posição de
autonomia, na mesma linha apontada pelo documento do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes. [20] Ad intra — A composição do próximo CONSEP
ficou assim distribuída: quatro neotomistas, sete neoagostinianos e um
neopelagiano. Será este conjunto que vai trabalhar neste quadriênio para
a implantação das novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora - DGAE (2015-2019).
Sobre as DGAE, os
bispos resolveram falar em “continuação e reorganização” do documento. A
continuação se verifica no Objetivo Geral, na estrutura fundamental do
documento, em algumas fontes magisteriais, no estilo do documento, em
sua linguagem e na redação de diversos números. A reorganização se
verifica no conteúdo de uma quantidade significativa de números. As
atuais Diretrizes têm 131 números, dos quais 68 são inteiramente novos.
Além disso, o Magistério do Papa Francisco é amplamente acolhido, principalmente a exortação apostólica Evangelii Gaudium. É também significativo o acolhimento dos temas presentes nos discursos do Papa aos bispos durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro (aos Bispos do Brasil e aos dirigentes do CELAM) e na Bula Misericordiae Vultus. Nas Diretrizes 2011-2015, o Documento de Aparecida era citado em 110 notas; nas atuais, é citado em 68. A Verbum Domini era citada em 25 notas; agora, em 23. A novidade maior das atuais Diretrizes é a Exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, citada em 65 notas.
No capítulo I (Partir de Jesus Cristo)
se encontram a cristologia e a eclesiologia do documento. Na
cristologia, à ênfase nas atitudes de “gratuidade” e “alteridade”,
juntou-se, como ênfase principal, a temática do “Reino de Deus” e sua
centralidade na vida, na pregação e nos sinais realizados por Jesus
Cristo. Inseriu-se também uma reflexão trinitária, que destaca a missão
do Filho e do Espírito Santo como manifestação do amor do Pai, que quer a
salvação de todos.
A eclesiologia foi mais explicitada, atendendo ao que foi pedido pela Assembleia Geral de 2014. A ação evangelizadora
é apresentada como consequência da fidelidade da Igreja a Jesus Cristo,
o que implica que também a sua relação com o Reino de Deus e com o
mistério da Santíssima Trindade. A missão da Igreja é continuação da
missão de Cristo. Ela existe no mundo como “ícone da Trindade”, para
anunciar o Reino de Deus e testemunhá-lo. Acolhe-se ainda a ênfase do
Papa Francisco em uma Igreja “em saída”, “casa aberta
do Pai”, “misericordiosa”, que continuamente se renova em vista da
missão que lhe foi confiada.
No capítulo II (Marcas de nosso tempo),
a análise do contexto no qual a Igreja é chamada a cumprir a sua missão
evangelizadora é feita numa perspectiva pastoral, à luz do Evangelho,
como discernimento dos sinais dos tempos.
"Abandonar
uma Igreja ‘doente’, curvada sobre si mesma, por uma Igreja
‘acidentada’, ferida e enlameada, que não tem medo de correr riscos"
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A mudança de época é mantida como
característica global de “leitura” das características de nosso tempo.
Nisso se verifica não apenas uma continuidade com relação às Diretrizes
anteriores, mas, sobretudo com a Evangelii Gaudium e com o Documento de Aparecida.
Procurou-se acolher a reflexão que o Papa Francisco faz da
globalização, especialmente a constatação da “globalização da
indiferença” e a urgente necessidade de “globalização da solidariedade”.
Na análise do desafio pastoral que as
tendências culturais representam (individualismo, fundamentalismo,
relativismo e outros reducionismos), se explicita que o critério
principal é antropológico. À luz do Evangelho e de sua
Tradição, a Igreja anuncia uma antropologia integral. A partir dela se
evidenciam as concepções redutivas do ser humano presentes em nosso
tempo.
Inspirada na Evangelii Gaudium,
as Diretrizes compreendem as consequências para o âmbito religioso e,
em particular, para a Igreja Católica, a partir da “crise do compromisso
comunitário”. O anúncio de Jesus Cristo convida ao encontro com Ele, à
conversão e à vivência eclesial da fé, propondo-se, para tanto, “uma
figura de comunidade eclesial acolhedora e missionária” (Evangelii Gaudium 26).
Acontece que o conteúdo teológico das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora
é muito mais avançado que a prática dos próprios bispos que aprovaram o
texto. Há um descompasso entre a teoria e a prática, que é ainda
muitíssimo autorreferencial e pouco “em saída”.
IHU On-Line - Quais são os maiores desafios da Igreja no Brasil?
Sérgio Coutinho - Penso que o grande desafio seja o da mudança
de mentalidade ou o de uma “conversão pastoral”. Isso envolve bispos,
padres, religiosos e leigos. O “mundanismo espiritual” entrou forte na Igreja no Brasil
nestes últimos 30 anos e fortaleceu muito um modelo de Igreja
“neopelagiana autorreferencial”. Muitos fizeram carreira como os
ardorosos defensores da ortodoxia católica frente aos “hereges” da Teologia da Libertação. Agora estão um pouco sem saber o que fazer com um papa que critica abertamente o capitalismo,
que usa expressões típicas do marxismo (como a “idolatria do capital”) e
que diz que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os
pobres, e deveríamos até mesmo nos ajoelharmos quando um pobre entra na
Igreja.
Por Patricia Fachin e Leslie Chaves
Notas
[1] Evangelii Gaudium:
a exortação apostólica Evangelii Gaudium, publicada no dia 24 de
novembro de 2013, é o documento que orienta o programa do pontificado do
Papa Francisco. O tema principal é o anúncio missionário do Evangelho e
sua relação com a alegria cristã. Fala também sobre a paz, a
homilética, a justiça social, a família, o respeito pela criação
(ecologia), o ecumenismo e o diálogo inter-religioso e o papel das
mulheres na Igreja. Também critica o consumo da sociedade capitalista e
insiste que os principais destinatários da mensagem cristã são os
pobres. Acusa também o atual sistema econômico de ser injusto, baseado
na tirania do mercado, a especulação financeira, a corrupção
generalizada e a evasão fiscal. Evangelii Gaudium. A alegria do
Evangelho. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual é publicada, no
Brasil, pelas Editoras Paulus e Loyola (São Paulo: 2013). (Nota da IHU
On-Line)
[2] Misericordiae Vultus:
bula pontífica, documento expedido pela Santa Sé e que institui o
Jubileu Extraordinário da Misericórdia. (Nota da IHU On-Line)
[3] Papa João Paulo II
(1920-2005): Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana de 16
de outubro de 1978 até a data da sua morte, sucedeu ao Papa João Paulo
I, tornando-se o primeiro Papa não italiano em 450 anos. (Nota da IHU
On-Line)
[4] João Batista Libânio
(1932-2014): padre jesuíta, escritor e teólogo brasileiro. Ensinou na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - ISI–FAJE em Belo Horizonte, e
foi vigário da paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Vespasiano, na
Grande Belo Horizonte, até sua morte. (Nota da IHU On-Line)
[5] Daniele Hervieu-Léger:
socióloga e diretora do Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos
Religiosos na École de Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, em
Paris. É autora de inúmeros livros, entre os quais citamos Le pélerin et
le converti. La religion en mouvement (Paris: Flammarion, 1999) e
Catholicisme, la fin d’un monde (Paris: Bayard, 2003). (Nota da IHU
On-Line)
[6] Dom Oscar Romero
(1917–1980): arcebispo católico romano, foi assassinado enquanto
oficiava missa, na tarde de 24 de março de 1980. Sua dedicação aos
pobres, numa época de efervescência social e guerra, converteu-o em
mártir. Confira nas Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, a entrevista especial com Anne Marie Crosville, Dom
Oscar Romero ajudou a fortalecer meu compromisso com os mais pobres,
disponível para download em http://bit.ly/18Dkkb4. Leia, também, as notícias publicadas em 09-11-2009, El Salvador reconhece responsabilidade no assassinato de Dom Romero, em http://bit.ly/15FzAYv e em 20-05-2007, Pedida a canonização de Oscar Romero na V Conferência, em http://bit.ly/15FzCPU. (Nota da IHU On-Line)
[7] Dom Sérgio da Rocha
(1959): nascido em Dobrada, no estado de São Paulo, atualmente é
Arcebispo Metropolitano de Brasília, delegado eleito para a Assembleia
do Sínodo dos Bispos sobre a Família e presidente da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. (Nota da IHU On-Line)
[8] Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger
(1943): nascido em Brusque, Santa Catarina, é o arcebispo de Salvador,
Primaz do Brasil e Vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil - CNBB. (Nota da IHU On-Line)
[9] Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. (Nota da IHU On-Line)
[10] Conselho Episcopal Latino-americano e Caribe - Celam:
trata-se de um organismo da Igreja Católica fundado em 1955 pelo Papa
Pio XII a pedido dos bispos da América Latina e do Caribe, cuja sede
está localizada na cidade de Santa Fé de Bogotá, na Colômbia. A entidade
presta serviços de contato, comunhão, formação, pesquisa e reflexão às
22 conferências episcopais que se situam desde o México até o Cabo de
Hornos, incluindo o Caribe e as Antilhas. Seus dirigentes são eleitos a
cada quatro anos por uma assembleia ordinária que reúne os presidentes
das conferências episcopais da América Latina e do Caribe. (Nota da IHU
On-Line)
[11] Dom Orani João Tempesta
(1950): nascido em São José do Rio Pardo, SP, é o atual arcebispo do
Rio de Janeiro. É cardeal e monge da Ordem Cisterciense e
cardeal-arcebispo católico brasileiro. Foi o terceiro bispo de São José
do Rio Preto e nono arcebispo de Belém do Pará. (Nota da IHU On-Line)
[12] Dom Odilo Pedro Scherer
(1949): nascido em Cerro Largo-RS, é Arcebispo Metropolitano de São
Paulo. É parente distante do falecido Cardeal Dom Vicente Scherer. (Nota
da IHU On-Line)
[13] Dom Geraldo Majella Agnelo
(1933): nascido em Juiz de Fora-MG, é o cardeal arcebispo-emérito da
Arquidiocese de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil. Teve papel de
destaque na criação da Pastoral da Criança no Brasil. (Nota da IHU
On-Line)
[14] Gilberto Carvalho
(1951): nascido em Londrina-PR, é um político brasileiro. Foi
ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República do Brasil
entre janeiro de 2011 e janeiro de 2015. Braço-direito do ex-presidente
Lula. (Nota da IHU On-Line)
[15] Visita ad limina – Visita ad limina apostolorum
(em português: “visita aos túmulos dos Apóstolos”): é uma obrigação dos
bispos diocesanos e outros prelados da Igreja Católica de a cada 5 anos
se encontrarem com o Papa, visitando os túmulos dos apóstolos São Pedro
e São Paulo, em Roma. Nesse encontro os bispos apresentam um relatório
sobre o estado pastoral das suas dioceses ou prelaturas e ouvem a
apreciação e os conselhos do Papa sobre elas. Para facilitar a visita,
os bispos são organizados de acordo com as comissões nacionais e
regionais. (Nota da IHU On-Line)
[16] Dom Raymundo Damasceno Assis
(1937): nascido em Capela Nova-MG, cardeal brasileiro, é atual
arcebispo de Aparecida, membro do Pontifício Conselho para as
Comunicações Sociais e da Pontifícia Comissão para América Latina, na
Santa Sé. Foi, também, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, entre os anos de 2011 e início de 2015. (Nota da IHU On-Line)
[17] Dom Frei Cláudio Hummes
(1934): é um frade franciscano, sacerdote católico brasileiro. Foi o
décimo oitavo bispo de São Paulo, sendo seu sexto arcebispo e quarto
cardeal. Na Cúria Romana foi prefeito da Congregação para o Clero. (Nota
da IHU On-Line)
[18] Dom Aldo Di Cillo Pagotto (1949): nascido em São Paulo-SP, é arcebispo da Paraíba. É primo do falecido cardeal de São Paulo, Agnelo Rossi. (Nota da IHU On-Line)
[18] Dom Aldo Di Cillo Pagotto (1949): nascido em São Paulo-SP, é arcebispo da Paraíba. É primo do falecido cardeal de São Paulo, Agnelo Rossi. (Nota da IHU On-Line)
[19] Dom Frei Leonardo Ulrich Steiner
(1950): nascido em Forquilhinha-SC, é um frade e sacerdote franciscano
brasileiro, segundo bispo da Prelazia de São Félix, de 2005 a 2011.
Atualmente é Bispo Auxiliar de Brasília. (Nota da IHU On-Line)
[20] Gaudium et Spes:
Igreja no mundo atual. Constituição pastoral, a 4ª das Constituições do
Concílio do Vaticano II. Trata fundamentalmente das relações entre a
igreja e o mundo onde ela está e atua. Trata-se de um documento
importante, pois significou e marcou uma virada da Igreja Católica "de
dentro" (debruçada sobre si mesma), "para fora" (voltando-se para as
realidades econômicas, políticas e sociais das pessoas no seu contexto).
Inicialmente, ela constituía o famoso "esquema 13", assim chamado por
ser esse o lugar que ocupava na lista dos documentos estabelecida em
1964. Sofreu várias redações e muitas emendas, acabando por ser votada
apenas na quarta e última sessão do Concílio. O Papa Paulo VI, no dia 7
de dezembro de 1965, promulgou esta Constituição. Formada por duas
partes, constitui um todo unitário. A primeira parte é mais doutrinária,
e a segunda é fundamentalmente pastoral. Sobre a Gaudium et spes,
confira o nº 124 da IHU On-Line, de 22-11-2004, sobre os 40 anos da
Lumen Gentium, disponível em http://bit.ly/9lFZTk, intitulada A igreja: 40 anos de Lúmen Gentium. (Nota da IHU On-Line)
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