sexta-feira, 15 de abril de 2016

Encontro histórico no Vaticano rejeita doutrina da guerra justa e pede encíclica sobre a não violência


Os participantes de um congresso promovido pelo Vaticano – o primeiro de seu gênero – rejeitaram, de maneira contundente, os ensinamentos de longa data sustentados pela Igreja Católica com base numa “doutrina da guerra justa” dizendo que muitas vezes eles, os ensinamentos, foram usados para justificar conflitos violentos e que a Igreja deve considerar o que Jesus ensinou sobre a não violência.
Os membros do congresso, que durou três dias e que foi realizado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz” e pela organização pacifista católica internacional Pax Christi, também pediram que o Papa Francisco considere a possibilidade de escrever uma carta encíclica, ou algum outro “documento magisterial importante”, para reorientar os ensinamentos da Igreja a respeito da violência.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada por National Catholic Reporter, 13-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Não existe ‘guerra justa’”, afirmam os cerca de 80 participantes do congresso em um documento divulgado na manhã desta quinta-feira (14-04-2016).
“Muitas vezes a ‘doutrina da guerra justa’ foi usada para endossar em vez de evitar ou limitar uma guerra”, continuam eles no texto divulgado. “Sugerir que uma ‘guerra justa’ é possível também enfraquece o imperativo moral de desenvolvimento de instrumentos e habilidades para a transformação não violenta dos conflitos”.
“Precisamos de um novo marco que esteja de acordo com a não violência evangélica”, dizem os participantes, observando que Francisco e seus quatro predecessores falaram abertamente contra a guerra em várias ocasiões. “Propomos que a Igreja Católica desenvolva e considere mudar no sentido de uma abordagem de Paz Justa com base na não violência evangélica”.
A doutrina da guerra justa é uma tradição que emprega uma série de critérios para avaliar se o emprego da violência pode ser considerado moralmente justificável. Tendo sido referida pela primeira vez no século IV por Santo Agostinho de Hipona, a doutrina foi mais tarde articulada em profundidade pelo teólogo São Tomás de Aquino, que viveu no século XIII, e hoje resume-se a quatro condições escritas no Catecismo da Igreja Católica.
Pela primeira vez, um congresso sob a égide do Vaticano trouxe especialistas envolvidos em iniciativas não violentas para reconsiderar a doutrina da guerra justa.
Este evento acontece depois que vários teólogos criticaram o uso contínuo da doutrina nos tempos modernos, dizendo que as capacidades poderosíssimas dos armamentos modernos e a prova da eficácia de campanhas não violentas a tornam uma doutrina ultrapassada.
Num evento com a presença da imprensa durante o lançamento do documento final do congresso – documento intitulado “Um apelo à Igreja Católica para se comprometer com a centralidade da não violência evangélica” –, vários dos participantes disseram que a Igreja deveria simplesmente deixar de lado a doutrina da guerra justa.
“Vim de muito longe para este evento, com um pensamento bem claro de que a violência está ultrapassada”, disse Dom John Baptist Odama, da Arquidiocese de Gulu, Uganda. “Para o mundo de hoje ela está completamente ultrapassada”.
“Temos de enunciar isto com uma voz vibrante”, disse o arcebispo africano. “Toda guerra significa destruição. Não há justiça na destruição (…)”.
O Catecismo da Igreja Católica delineia como um dos critérios para a justificação moral da guerra que “o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves do que o mal a eliminar” e observa que “o poder dos meios modernos de destruição tem um peso gravíssimo na apreciação desta condição”.
Odama, que preside a Conferência dos Bispos de Uganda, afirmou que as condições presentes no Catecismo “só podem ser ditas numa realidade onde não exista guerras”.
“É aqui onde o grupo foi bem incisivo”, falou ele, referindo-se ao congresso. “Neste momento, não devemos dar motivos para as guerras. Vamos impedi-las e promover relações harmoniosas, relações de fraternidade, e não aceitar entrar para a guerra”.
Marie Dennis, uma das presidentes da Pax Christi International, disse que ela e o grupo reunido no evento “acreditam que chegou a hora de a Igreja ter um outro discurso sobre a realidade mundial”.
“Quando olhamos para esta realidade de guerras, quando olhamos para os ensinamentos de Jesus, nos perguntamos qual a responsabilidade da Igreja”, disse ela. “Acreditamos que seja uma responsabilidade de promover a não violência”.
Dennis igualmente afirmou entender que as pessoas levantem dúvidas quanto à negação da doutrina da guerra justa diante da necessidade de se deter agressores injustos. Segundo Dennis, o grupo em que ela participou concorda com a ideia de que os agressores violentos precisam ser impedidos de atuar.
“A questão é como fazer isso”, acrescentou Dennis. “A nossa crença seria a de que, enquanto nos mantivermos dizendo que podemos fazer uso da força militar, não iremos investir a energia criativa, o pensamento profundo, os recursos financeiros e humanos na criação ou identificação de alternativas que, de fato, podem fazer alguma diferença”.
“Enquanto continuarmos dizendo que jogar bombas vai resolver o problema, nós não iremos em busca de outras soluções. Acho que isso fica cada vez mais claro para a Igreja”, disse.
O congresso de abril sobre a doutrina da guerra justa vinha sendo discutido há meses e foi o primeiro evento realizado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz” e o Pax Christi, uma coalizão católica internacional no modelo da Anistia Internacional que conta com grupos nacionais autônomos em muitos países.
O evento foi organizado em quatro sessões que permitiram aos participantes dialogarem e partilhar experiências entre si. A única palestra programada nos dias de encontro foi proferida pelo Cardeal Peter Turkson, presidente do citado Pontifício Conselho, que também leu uma carta enviada aos participantes escrita pelo Papa Francisco.
Entre os participantes estavam alguns bispos da Nigéria e do Japão, além de representantes das ordens religiosas masculinas e femininas sediadas em Roma. Também estiveram no evento um representante do Instituto da Paz, dos EUA, vários teólogos e Mairead Maguire, vencedora irlandesa do Prêmio Nobel da Paz.
O documento final emitido pelo grupo afirma sucintamente: “Chegou a hora de a Igreja ser um testemunho vivo e investir muito mais recursos humanos e financeiros na promoção de uma espiritualidade e uma prática de não violência ativa”.
“Em tudo isso, Jesus é a nossa inspiração e o nosso modelo”, declaram. “Nem passiva nem fraca, a não violência de Jesus era o poder do amor em ação”.
Odama disse que Jesus “sempre pedia a seus seguidores a não recorrer à violência na resolução dos problemas, inclusive no último estágio de sua vida”.
“Na cruz, disse Jesus: ‘Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem’”, disse o arcebispo africano. “Nesse dizer, ele uniu a humanidade inteira sob um único pai”.
“Ele não usa palavras violentas nem pratica ações violentas”, disse Odama. “Eis o ensinamento quanto à maneira como devemos lidar com as nossas situações: sem violência”.
Dennis falou que um dos objetivos para a organização do congresso era “levar, em última análise, a uma encíclica ou um processo que produza um importante ensinamento católico sobre a não violência”.
“Até agora nós não enfrentamos nenhum obstáculo”, disse ela. “Também não existe nenhuma promessa nesse sentido. O que realmente queremos que aconteça é um processo que envolva o Vaticano e as comunidades católicas em geral em torno destas questões”, disse Dennis. “O que mais podemos saber sobre o papel que a não violência pode desempenhar na transformação do nosso mundo em um mundo melhor?”
Ken Butigan, professor da DePaul University, em Chicago, e diretor executivo da ONG Pace e Bene, falou: “Há meses estamos vendo um sinal positivo de que o Papa Francisco estaria disposto a levar adiante este tema”.
“Estamos determinados a fazer uso desta vontade neste momento histórico”, declarou. “Sabemos que o Papa Francisco tem uma visão de mundo e nós aqui estamos para apoiar esta visão”.

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