segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Quando o cristianismo se torna magia

[domtotal]
Por Felipe Magalhães Francisco*



É próprio das religiosidades pós-modernas um acento subjetivista no culto e na maneira de viver a fé.

 

Na prática da Igreja primitiva, liturgia e vida correspondiam a uma realidade intrínseca. (Divulgação)

A maneira como os depois de Jesus foram constituindo o movimento cristão dá à Política um lugar próprio, no modo de vida dos seguidores e seguidoras do Cristo. A palavra Política está desgastada, tanto pelos que, no exercício do poder público, promovem o próprio bem pessoal, à revelia da necessidade de todos, bem como dos cidadãos e cidadãs que se omitem diante da construção de uma sociedade justa e igualitária. O cristianismo, por sua vez, se quer ser fiel ao seu fundamento, isto é, a Cristo, precisa resgatar sua dinâmica Política.
A Política é a forma mais perfeita da caridade, ecoa o Magistério da Igreja. A busca pelo bem comum configura o essencial da Política. No cristianismo dos primórdios, dois pilares fundamentais atestam a importância da Política, no contexto da fé e do seguimento de Jesus Cristo: com o Mestre, os discípulos e discípulas aprenderam a viver o amor ao próximo, bem como a renúncia do status. A vida mesma de Jesus é manifestação disso e, mais que a organização de instituição religiosa, o que o Cristo deixa aos seus discípulos são esses dois valores fundamentais para os seguidores e seguidoras do Reino. Amor ao próximo e renúncia ao status formam a base ética do cristianismo, em real oposição aos poderes do mundo: “entre vocês não deve ser assim...” (Mc 10,43).
A prática celebrativa da Igreja nascente manifestava que essa ética constituía o específico do cristianismo: “viviam unidos e tinham tudo em comum” (At 2,43). Liturgia e vida correspondiam, assim, a uma realidade intrínseca: aquilo que se celebrava no partir do pão correspondia ao exercício cotidiano dos seguidores e seguidoras do Ressuscitado. Ao passo que o cristianismo vai, cada vez mais, instituindo-se como religião, ele vai perdendo essa importante dimensão das origens, num processo de descaracterização de seu específico.
Atualmente, é próprio das religiosidades pós-modernas um acento subjetivista no culto e na maneira de viver a fé. As igrejas católicas e evangélicas cedem ao interesse emocional de seus fiéis, o que torna a ética uma realidade cada vez mais distante do testemunho de fé dos membros dessas igrejas. O individualismo tomou conta dos espaços de manifestação da fé: pessoas encontram-se semanalmente para as celebrações, mas sequer conhecem umas às outras, não se criam laços de pertença comunitária e de partilha de vida. A tendência, sempre maior, é de busca de refrigério para os males psíquicos e emocionais: importa, nesse caso, uma religiosidade com efeitos psicossomáticos. Não sem motivos, as missas de cura e libertação arrebanham uma massa sem fim de fiéis, que, se repararmos, nunca está devidamente curada e liberta.
Uma religiosidade que se diga cristã, vivida desse modo, nada tem dos valores fundamentais do cristianismo das origens. Essa é uma religiosidade apolítica, pois não nutre a convivência e a solidariedade entre os convivas que se reúnem ao redor da mesma mesa. Essa é uma assembleia que se esquece que o Reino é para todos, com sério comprometimento ético, e que por isso Jesus nos ensina a rezar Pai-nosso, insistindo em cantar “meu Pai, meu Pai, meu Pai do céu”, com os olhos vertendo lágrimas e o coração anestesiado. Sem o comprometimento ético com aqueles que fazem coro à nossa voz e professam a mesma fé, a ética que devemos viver no cotidiano, em atenção a todos e todas, não é possível. Isso porque uma religião que se pretenda cristã, que não gere imperativos éticos, na realização da verdadeira Política, não passa de magia: os fiéis, clientes buscando experiências pessoais de satisfação; os líderes religiosos, magos que ofertam um serviço, ao gosto dos clientes. Mas não nos enganemos: “comungar é tornar-se um perigo”, já cantava a velha canção. 
Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail para contato: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com. 

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