[abim]
A pergunta em epígrafe foi respondida pelo Mons. José Luiz Villac e publicada na Revista Catolicismo deste mês (Nº 809, maio/2018). Aqui a reproduzimos para conhecimento de nossos leitores, uma vez que tal questão foi muito discutida em altas cúpulas no mês anterior.
Catedral de Notre Dame de Paris, fachada central que representa o Juízo Final (detalhe). |
Pergunta — Numa
conversa com familiares e amigos, discutimos a existência do Inferno e o
fim dos condenados. Os incrédulos diziam que o Inferno não existe, e
que os padres inventaram isso para meter medo na gente. O que mais me
surpreendeu foi alguns dos que frequentam a paróquia afirmarem que o
Inferno é contrário à misericórdia infinita de Deus; e se de fato ele
existe, em algum momento Deus vai livrar todos os que estão lá; ou então
já não há ninguém lá. Meus conhecimentos doutrinários foram
insuficientes para sustentar com segurança a existência do Inferno, e
também que ele é eterno. O senhor poderia ilustrar-me com os
ensinamentos seguros da Igreja a respeito?
Resposta — Entre
as perguntas recebidas, escolhi esta para responder, porque alguns
leitores podem ter ficado desorientados com as notícias veiculadas pela
mídia, segundo as quais o Papa Francisco, pela terceira vez, teria dito a
Eugenio Scalfari, fundador do jornal italiano “La Repubblica”, que no
fim do mundo as pessoas boas gozarão da visão de Deus, mas as ruins
voltarão para o nada. O Vaticano limitou-se a desmentir que as
afirmações atribuídas ao pontífice tenham sido exatamente aquelas
publicadas pelo jornal, mas não desmentiu ter havido essa conversa, nem
deu nenhum esclarecimento sobre o que o Papa teria realmente dito a
Scalfari, um ateu contumaz. Para dissipar a confusão criada por esse
episódio, convém relembrar o que a fé nos ensina sobre a existência do
Inferno, sua eternidade e as penas que lá se sofrem.
Cumpre primeiramente lembrar que a razão e o senso de justiça indicam
que o bem deve ser premiado, e o mal deve ser castigado. Até mesmo
muitos povos pagãos acreditam na existência de um castigo eterno para os
maus. No entanto, a prova da existência do Inferno não nos é dada pela
razão, mas pela Revelação divina.
O Antigo Testamento contém inicialmente poucas precisões sobre o
castigo reservado, após a morte, aos maus que voltaram as costas para
Deus. O Livro de Judith diz, em relação às nações que se insurgiram
contra Ele, que “no dia do juízo as punirá o Senhor todo-poderoso: entregará as suas carnes aos vermes e ao fogo, e hão de chorar eterna dor” (Jud. 16, 17). O profeta Daniel afirma que “muitos daqueles que dormem no pó da terra despertarão, uns para uma vida eterna, outros para a ignomínia, a infâmia eterna” (Dan. 12, 2). E São João Batista pregava ao povo, às margens do Jordão, que Aquele que viria depois dele “tem na mão a pá, limpará sua eira e recolherá o trigo ao celeiro. As palhas, porém, queimá-las-á num fogo inextinguível” (Mt 3, 12).
O Juízo Final – O castigo do avarento (detalhe)
Bellegambe (1520 – 1525). Gemäldegalerie, Berlim.
Haverá choro e ranger de dentes
Nosso Senhor Jesus Cristo confirmou solenemente essa verdade em inúmeras ocasiões. Chamou o Inferno de “fogo da geena” (Mt 5, 22), aludindo a um vale em torno da cidade antiga de Jerusalém, onde o lixo era incinerado; e também chamou-o de “geena do fogo inextinguível, onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga” (Mc 9, 45-46); recomendou o temor de Deus, que “depois de tirar a vida, tem o poder para lançar no Inferno” (Lc 12, 5); mandou-nos temer “antes aquele que pode mandar para a perdição a alma e o corpo, na geena” (Mt 10, 28); acusou os escribas e fariseus de “correr o mar e a terra para fazer um prosélito, e depois de feito, torná-lo filho do Inferno, duas vezes mais do que vós” (Mt 23, 15); e depois de qualificá-los como “raça de víboras”, perguntou: “Como podereis escapar à condenação do inferno?” (Mt 23, 33).
A respeito do estado de castigo dos condenados no Inferno, Jesus disse ainda que “ali haverá choro e ranger de dentes” (Lc 13, 28); na parábola em que repreende o conviva que se apresentou sem o traje nupcial, mandou os servidores “atar os pés e mãos e lançá-lo fora nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 22, 13 e 25, 30); referindo-se a Judas, lamentou diante de Deus o “filho da perdição” (Jo 17,12); mandou-nos entrar “pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçosa a via que leva à perdição” (Mt 7, 13); sobre o destino do rico glutão, afirma que ele se encontrava “no Inferno, imerso em tormentos” (Lc 16, 23). O Divino Salvador disse também que no Inferno os tormentos são desiguais: aquele que conscientemente desobedeceu “será açoitado com numerosos golpes”, mas aquele que, “ignorando a vontade de seu senhor, fizer coisas repreensíveis, será açoitado com poucos golpes” (Lc 12, 47-48); e sobre a cidade que recusar os que Ele enviou em missão, afirmou que “no dia do juízo haverá mais indulgência com Sodoma e Gomorra do que com aquela cidade” (Mt 10, 15).
Tribulação e angústia a quem pratica o mal
O ensinamento de São Paulo é claro e simples: “Cada
um que comparecer diante do tribunal de Cristo receberá o que mereceu
por tudo o que fez durante a vida, quer de bem, quer de mal” (2 Cor 5, 10). Os obstinados e de coração impenitente terão acumulado contra eles a ira “para o dia da cólera e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada qual segundo as suas obras” (Rom. 2, 5-6); “tribulação e angústia sobrevirão a todo aquele que pratica o mal” (Rom 2, 9). Jesus “descerá do Céu com os mensageiros do seu poder, entre chamas de fogo, para fazer justiça àqueles que não reconhecem a Deus”; e estes “sofrerão como castigo a perdição eterna, longe da face do Senhor e da sua suprema glória” (2 Tess 1, 7-9).
Tanto a existência quanto a eternidade do Inferno são dogmas de fé. O IV Concílio de Latrão declarou que os maus “receberão o castigo eterno (pœnam perpetuam) com o diabo” (Denz.-Hün. 801) e o Concílio de Trento supõe que o castigo é eterno (pœna eterna) (S. 6 c. 25).
A pena de dano: privação da visão de Deus
Assim como no pecado mortal há uma motivação dupla — a aversão de
Deus, nosso fim último, associada ao apego às criaturas —, assim também
no Inferno há uma dupla pena: a primeira negativa, e a segunda positiva.
A primeira, principal e negativa, é a pena de dano, que consiste na privação eterna da visão de Deus: “Retirai-vos de mim, malditos!”
(Mt. 25, 41), dirá o Senhor aos réprobos. Essa condenação é o maior
tormento do Inferno, pois quanto maior é o valor do bem perdido, maior é
a dor por sua perda. Afirma Santo Afonso Maria de Ligório que, tendo os
réprobos perdido o Bem infinito, sua pena é de algum modo infinita. Os
bramidos de Esaú por ter perdido a primogenitura (Gn 27, 34) são uma
pálida imagem da raiva dos condenados pela perda da visão de Deus. Além
do mais, os réprobos também estão excluídos do convívio com os
bem-aventurados. Talvez os vejam, como o rico Epulão via o mendigo
Lázaro da parábola (Lc 16, 19-31), não para seu gozo, mas para aumentar
seu tormento. Em lugar desse convívio afetuoso, eles terão que conviver
eternamente com os demônios e com os outros réprobos, que os odeiam e
aumentam seus tormentos com todo tipo de agressões.
A pena do fogo
O jesuíta italiano do século XVI, Pe. Lucas Pinelli comenta: “Assim
como é verdadeiríssimo que a alma incorpórea se une ao corpo humano e
lhe comunica a vida, mas como ocorre essa união ninguém pode sabê-lo,
assim também é conforme à verdade que a alma unida com o fogo é queimada
e atormentada por ele, ainda que se ignore o modo como isso se dá”.
Por que não poderia o Deus todo-poderoso excitar na alma humana depois
da morte, mesmo antes da ressurreição dos corpos para o Juízo Final,
aquelas dores que padeceria pelo fogo quando estava unida ao corpo?
O fogo do Inferno é considerado por São Gregório como um fogo
corporal, mas de um gênero particular, porque é físico mas tortura
também a alma, queima sem consumir, ilumina e aquece, porém sem impedir
as trevas e o ranger de dentes causado pelo frio extremo.
A pena do remorso
Finalmente, os réprobos sofrem a pena do remorso da consciência e do
desespero, por terem trocado a felicidade eterna por um bem transitório,
somado à vergonha de verem todas as suas maldades reveladas e eles se
terem tornado os últimos da humanidade, quando na Terra muitos deles
estavam entre os primeiros.
Quem vai para o Inferno? Contrariamente ao que supõem erradamente os
calvinistas, ninguém é predestinado para esse castigo eterno. O
Catecismo da Igreja Católica (§1037) é muito claro a esse respeito: “Deus
não predestina ninguém para o Inferno; para isso é preciso uma aversão
voluntária a Deus (um pecado mortal) e persistir nela até o fim. Na
Liturgia Eucarística e nas orações cotidianas de seus fiéis, a Igreja
implora a misericórdia de Deus, que quer ‘que ninguém se perca, mas que
todos venham a converter-se’” (2 Pd 3,9). Ou seja, vão para o Inferno somente aqueles que voluntariamente morrem em estado de pecado mortal sem contrição.
Ninguém vos seduza com vãos discursos
A ideia de que o Inferno existe e é eterno, mas está ou ficará vazio,
é um erro muito antigo, já difundido na época de Santo Agostinho, com
frequência acenando com a alegação de que o inferno é contrário à
misericórdia de Deus. Os adeptos desses erros eram por isso chamados
“misericordiosos”. É natural que os argumentos desses autores
eclesiásticos anônimos, que contestavam a eternidade das penas do
Inferno, servissem de refúgio e autoengano a muitos cuja consciência não
estivesse tranquila, daí se poder esperar que essas teorias
encontrassem larga audiência.
São Gregório Magno foi o Padre da Igreja que tratou de modo mais
completo das questões escatológicas, incluído o Inferno. Ele replicava,
junto com Santo Agostinho, que se o Inferno tem um termo final, então o
Céu também deveria ter um. Porque se a ameaça não é verdadeira, então a
promessa também não o é. E se a “falsa ameaça” não tem outra finalidade
senão afastar as pessoas do mal, então a “falsa promessa” não teria
outra finalidade senão atrair os bons para o bem. Como ninguém pode
aceitar essa segunda afirmação, logo é preciso rejeitar a primeira e
repetir, com a Igreja, que o Inferno é realmente eterno.
Nessa “misericórdia”, que fecha os olhos à justiça de Deus, ainda
acreditam muitos “misericordiosos” modernos. Autores com tais posições
podem argumentar com muitos textos das Sagradas Escrituras sobre a
misericórdia de Deus, mas se esquecem de que tais textos se referem à vida presente,
quando ainda há espaço para o arrependimento e o perdão, portanto não
são absolutos. Do contrário, significariam a demolição do Juízo e de
seus efeitos. Deus disse claramente pelos lábios de São Paulo: “Não
vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os
efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os
bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino
de Deus” (1 Cor 6, 9). E ainda: “Sabei-o bem: nenhum dissoluto,
ou impuro, ou avarento — verdadeiros idólatras! — terá herança no Reino
de Cristo e de Deus. E ninguém vos seduza com vãos discursos. Estes são
os pecados que atraem a ira de Deus sobre os rebeldes” (Ef 5, 5).
Pensar no inferno a fim de não ir para lá
Pensar muitas vezes no Inferno é um excelente instrumento para nos
afastar do mal e do pecado. São Bernardo nos aconselha a descer muitas
vezes em vida ao inferno, para não termos de ir para lá após a morte. E
Nossa Senhora não hesitou em mostrar o Inferno aos três pastorinhos de
Fátima, que na época das aparições tinham respectivamente 10, 8 e 7
anos! Se nossa consciência nos acusa de alguma falta grave, façamos o
propósito firme de nos confessar na primeira oportunidade, confiando
sempre no Coração materno d’Aquela que é invocada pela Igreja como
Refúgio dos Pecadores.
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