segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O que pensaria Jesus da nossa música litúrgica?


Será que a nossa música litúrgica é mesmo adequada à sacralidade da liturgia e pode servir como hino de louvor agradável a Deus? Não está na hora de fazermos um sincero “exame de consciência musical”?



Ao comentar o rito romano da Missa, Santo Tomás faz notar o seguinte:


Neste sacramento [a Eucaristia], é necessária uma devoção maior do que nos outros sacramentos, uma vez que Cristo inteiro está nele contido, e também mais extensa, porque neste sacramento se requer a devoção não só de quem o recebe, como acontece nos outros sacramentos, mas de todo o povo pelo qual é oferecido o sacrifício. Por isso, diz Cipriano (Sobre a Oração do Senhor, XXXI):
“O sacerdote, ao rezar o Prefácio, dispõe o espírito dos irmãos, dizendo: ‘Corações ao alto’, para que eles, quando responderem: ‘O nosso coração está em Deus’, possam recordar que não devem pensar em mais nada além de Deus”.
Que texto memorável! O Doutor Angélico nos diz aqui que a liturgia da Missa deve suscitar em nós uma profunda e extensa devoção, conforme a grandeza de tamanho sacrifício, de modo que a nossa mente não pense em nada mais do que em Deus. Também a Divina Liturgia bizantina testemunha essa ideia: “Que nós, que representamos misticamente os querubins e entoamos o hino três vezes santo à vivificadora Trindade, deixemos agora de lado todos os cuidados terrenos”.
Os cristãos nunca assumiram como um dever apropriar-se de elementos externos deste mundo decaído para introduzi-los nas igrejas.
Nesta vida não podemos imitar perfeitamente os querubins, como se estivéssemos o tempo todo arrebatados, participando da liturgia celeste; estaremos sempre agarrados a alguns pensamentos e emoções terrenas. No entanto, a Igreja levantou a voz contra os músicos e compositores que pretendiam introduzir esses mesmos pensamentos e emoções em nossos templos, fazendo-os dominar a cena.
Inspirados nos ensinamentos de Jesus e alimentados com seu Corpo e Sangue vivificantes, nós, como cristãos, estamos chamados a levar ao mundo a santidade do altar e, na medida do possível, a transformar o mundo, renovando-o e  santificando-o pelo poder dos sagrados mistérios. Os cristãos nunca assumiram como um dever apropriar-se de elementos externos deste mundo decaído para introduzi-los nas igrejas, recriando a liturgia, a oração e as artes como “reflexos” deste mundo. Porque, ainda que sejam reflexos mais “suaves”, eles continuam tendo origem, não em Deus, mas no mundo, e levam consigo a marca da mundanidade.
Não haverá talvez alguma relação entre, de um lado, as tentativas pós-conciliares de substituir a natureza hierárquica da Igreja por modelos democráticos tomados de empréstimo ao humanismo ilustrado e, de outro, o declínio da qualidade da música sacra e religiosa, que agora exalta o homem em vez de Deus e só tem êxito em mostrar a banalidade e a pobreza de um homem sem Deus?
Se quisermos saber como devem ser cantados os Salmos ou outros textos das Sagradas Escrituras, temos de ouvir os “sucessores” dos israelitas cantando os “cantos de Sião”, ou seja, os monges e monjas fiéis que dedicaram a vida a “entoar um hino” (Sl 46, 8) ao Rei do universo. Um ouvido atento pode, de fato, captar as semelhanças entre as cantilenas judaicas e a salmodia cristã, quer latina ou bizantina. Se você ouvir alguma gravação dos monges de Le Barroux, Fontgombault, Norcia ou Silverstream, descobrirá como é que soa uma oração cantada: reverente, piedosa e contemplativa; as palavras sagradas são saboreadas como mel (cf. Sl 118, 103), com as paixões em paz e a mente elevada até ao céu e à Santíssima Trindade.
“Cristo expulsando os cambistas do Templo”, de Rembrandt.
Consumido de zelo (cf. Jo 2, 17), Jesus expulsou os vendilhões e cambistas do Templo, muito embora o que eles então faziam fosse até menos recriminável do que acontece hoje no coração de tantas igrejas católicas. Por que Nosso Senhor, sendo tão compreensivo com os pecadores, agiu daquela forma? Porque Cristo, mais do que qualquer fiel de qualquer tempo, sabe como é importante a pureza da oração, sabe da necessidade de manter separados o mundano e o sagrado. Só Ele sentia e sabia, no íntimo de seu ser incriado, o quão indignos de Deus eram os motivos, as maneiras e as mercadorias oferecidas por aqueles negociantes.
Ao entrarmos numa igreja, deixamos do lado de fora os assuntos e prazeres do mundo e buscamos adorar a Deus com todo o nosso coração, com toda a nossa inteligência, com toda a nossa alma. Essa dedicação e devoção deve, em toda a sua integridade, sair do templo e ir ao encontro do mundo, de forma que quanto mais adorarmos a Deus, mais conformes serão nossas vidas aos mistérios que celebramos, tornando-nos, por assim dizer, uma prolongação “física” dos ritos litúrgicos, inclusive em meio às nossas atividades seculares.
O objetivo não é secularizar o sagrado e fazê-lo mais “acessível” à mentalidade moderna (isso seria, na verdade, um sacrilégio), mas santificar as realidades seculares e fazê-las santas, tornando-as melhores. A igreja é o ambiente próprio do sagrado, e não o espaço de uma mundanidade adaptada e acomodada.
A Igreja deveria conquistar nossas mentes e corações para o sagrado, a fim de que essa vitória permeie todos os aspectos de nossa vida no mundo. O rock cristão”, ou até mesmo o estilo popular de algumas bandas católicas, não passa de uma vitória da mentalidade mundana, um subproduto da cultura imperante, uma contaminação do silêncio e dos cânticos que deveriam ressoar na casa de Deus, onde o espírito pode respirar livremente e as emoções são docemente acalmadas.
Muitos livros e artigos já foram escritos sobre as orientações eclesiásticas a respeito da música litúrgica e sobre o nobre ideal de cantar a Missa — e não simplesmente na Missa —, e tudo isso em continuidade com a gloriosa herança musical que o Espírito do Senhor inspirou à Igreja no decorrer dos séculos.


Como conclusão, eu gostaria apenas de sugerir um bom ponto de partida para um “exame de consciência musical”, que poderá, quem sabe, levar-nos a uma mudança de coração, a novos propósitos e iniciativas concretas. O Concílio de Trento, na 22.ª sessão, desafia-nos a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para tornar nossa participação na liturgia digna de sua natureza mais íntima:

Quão grande cuidado se deve tomar para que o santo sacrifício da Missa se celebre com toda a devoção e reverência, qualquer um pode vê-lo facilmente se considerar que as Sagradas Escrituras chamam “maldito” àquele que faz com negligência a obra do Senhor (cf. Jr 48, 10). E dado que devemos confessar que nenhuma outra obra a ser realizada pelos fiéis é tão santa e divina como este grandiosíssimo mistério, no qual a Vítima doadora de vida, pela qual somos reconciliados com o Pai, é diariamente imolada no altar pelos sacerdotes, é também claro o bastante que todo empenho e atenção se hão de encaminhar a este fim, a saber: que a Missa seja celebrada com a maior pureza interior de coração possível e com as mostras mais evidentes de devoção e piedade.

Essas palavras nos convidam a reformular e aprofundar nossas ideias sobre a qualidade e a adequação da nossa música litúrgica. Depois disso tudo, continua a ecoar aquela exortação de S. Paulo, que atravessa os séculos com os Santos Padres da Igreja, com o Concílio de Trento, com S. Pio X, com João Paulo II e Bento XVI: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito” (Rm 12, 2).

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