sábado, 30 de outubro de 2021

Carta do Cardeal Burke sobre os políticos católicos e a não admissão à Sagrada Comunhão

 

“Quando morrer, irei comparecer perante o Senhor, para prestar contas do meu serviço como Bispo, e não perante a Conferência dos Bispos”  

 

Festa dos Santos Simão e Judas, Apóstolos

Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!

Queridos irmãos e irmãs em Cristo,

Durante os últimos meses, a intenção da Igreja nos Estados Unidos da América tem estado muito presente nas minhas orações. Na sua próxima reunião de novembro, os Bispos dos Estados Unidos da América vão considerar a aplicação do cânone 915 do Código de Direito Canônico: “Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto.”1

As suas deliberações abordarão, em particular, a situação a longo prazo e gravemente escandalosa dos políticos católicos que persistem em apoiar e fazer avançar programas, políticas e leis em violação grave dos preceitos mais fundamentais da lei moral, ao mesmo tempo que afirmam ser católicos devotos, especialmente apresentando-se para receber a Sagrada Comunhão. Ao rezar pelos Bispos e pela minha pátria, os Estados Unidos da América, tenho pensado cada vez mais na experiência da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, há mais de 17 anos, na sua reunião de Verão, em Denver, em Junho de 2004, ao abordar a mesma questão. Trata-se de uma experiência que vivi intensamente.

Achei importante oferecer as seguintes reflexões como uma ajuda para todos ao abordarmos, agora e no futuro, um assunto tão crítico — uma questão de vida e morte para os nascituros e de salvação eterna para os políticos católicos envolvidos — na minha pátria, como noutras nações. Tinha querido oferecer estas reflexões muito mais cedo, mas a recuperação de recentes dificuldades de saúde impediu a escrita destas reflexões até agora.

O contexto da reunião de junho de 2004 dos Bispos dos Estados Unidos foi a campanha do Senador John Kerry para Presidente dos Estados Unidos. O Senador Kerry afirmou ser católico, ao mesmo tempo que apoiava e promovia o aborto a pedido na nação. Na altura, era Arcebispo de Saint Louis (nomeado a 2 de dezembro de 2003 e instalado a 26 de janeiro de 2004). Como tinha sido a minha prática como Bispo de La Crosse (nomeado a 10 de dezembro de 1994 e instalado a 22 de fevereiro de 1995), aconselhei o Senador Kerry a não se apresentar para receber a Sagrada Comunhão porque, depois de ter sido devidamente admoestado, persistiu no pecado objetivamente grave de promover o aborto diretamente procurado. Não fui o único Bispo a admoestá-lo desta forma.

Desde o tempo do meu primeiro ministério episcopal na Diocese de La Crosse, tinha enfrentado a situação de políticos que se apresentavam como católicos praticantes e, ao mesmo tempo, apoiavam e faziam avançar programas, políticas e leis em violação da lei moral. Como novo e relativamente jovem Bispo, falei com os irmãos Bispos, especialmente um dos mais antigos sufragâneos da minha província eclesiástica, sobre vários legisladores católicos da Diocese de La Crosse que se encontravam nesta situação. A resposta comum dos irmãos Bispos foi a expectativa de que a Conferência dos Bispos acabaria por abordar a questão.

Conhecendo a minha obrigação moral numa questão de tão sérias consequências, definida no cân. 915, comecei a contactar os legisladores da Diocese de La Crosse, pedindo para me encontrar com eles para discutir a completa incoerência da sua posição em relação ao aborto provocado com a fé católica que professavam. Infelizmente, nenhum deles se mostrou disposto a encontrar-se comigo. Um deles teve comigo uma certa correspondência, insistindo que a sua posição relativamente ao aborto era coerente com a fé católica, seguindo o conselho errado apresentado, por certos professores dissidentes de teologia moral, aderentes da escola herética do proporcionalismo, numa cimeira realizada, no complexo de Hyannisport, da Família Kennedy, no Verão de 1964. A documentação da reunião encontra-se num livro de Albert R. Jonsen, que acompanhou um dos professores dissidentes europeus de teologia moral e esteve presente em toda a reunião.2

Relativamente à recusa dos legisladores em se encontrarem comigo, devo observar que considero, na melhor das hipóteses, ingênuo o refrão comum de que é necessário mais diálogo com os políticos e legisladores católicos em questão. Na minha experiência, eles não estão dispostos a discutir o assunto porque o ensinamento do direito natural, que é necessariamente também o ensinamento da Igreja, está para além da discussão. Em alguns casos, também tive a forte impressão de que eles não estavam dispostos a discutir o assunto, porque simplesmente não estavam dispostos a ter as suas mentes e corações mudados. A verdade continua a ser que o aborto provocado é a destruição consciente e voluntária de uma vida humana.

Quando eu era Arcebispo de Saint Louis, um legislador católico aceitou encontrar-se comigo, embora, como o seu pároco também atestou, não se apresentasse para receber a Sagrada Comunhão. Ele começou o encontro mostrando-me uma fotografia da sua família. Se bem me lembro, a sua esposa e ele tiveram quatro filhos. À medida que a nossa conversa avançava, perguntei-lhe como, tendo-me mostrado com tanto orgulho a fotografia dos seus filhos, podia votar regularmente a favor da matança de bebês no útero. Ele baixou imediatamente a cabeça e disse: “Está errado. Eu sei que está errado”. Embora o exortasse a agir de acordo com a sua consciência, que acabara de exprimir, tive de admirar o fato de, pelo menos, ele ter admitido o mal em que estava envolvido e não ter tentado apresentar-se como um católico devoto. Quanto à realidade objetiva da prática do aborto como uma violação gravíssima do primeiro preceito da lei natural, que salvaguarda a inviolabilidade da vida humana inocente e indefesa, não há nada sobre a qual dialogar. O tema do diálogo deve ser a melhor forma de prevenir um tal mal na sociedade. Tal prevenção nunca poderá envolver a promoção efetiva do mal.

Com o anúncio da minha transferência da Diocese de La Crosse para a Arquidiocese de Saint Louis, a 2 de dezembro de 2003, a imprensa secular viajou para a Diocese de La Crosse, a fim de encontrar material para a criação de uma imagem negativa do novo Arcebispo antes da sua chegada à Arquidiocese. Enquanto que, antes da minha transferência, não houve discussão pública das minhas intervenções pastorais com os legisladores em questão, como é inteiramente apropriado, o assunto tornou-se agora público em dezembro de 2003 e em janeiro de 2004. Ao colocar a questão da aplicação do cân. 915 perante o corpo de Bispos na sua reunião de junho de 2004, a ação pastoral que eu tinha empreendido na Diocese de La Crosse e que estava começando tomar na Arquidiocese de Saint Louis foi seriamente colocada em questão. Para ilustrar o fato, durante uma pausa na reunião, encontrei, numa escadaria, um dos membros eminentes da Conferência dos Bispos, que me agitou o dedo, declarando: Não pode fazer o que tem feito sem a aprovação da Conferência dos Bispos. Para ser claro, outros Bispos estavam seguindo uma ação pastoral semelhante. Respondi à sua declaração assinalando que, quando morrer, irei comparecer perante o Senhor, para prestar contas do meu serviço como Bispo, e não perante a Conferência dos Bispos.

Aqui, devo notar que a ação pastoral tomada não teve nada que ver com a interferência na política. Foi dirigida à salvaguarda da santidade da Sagrada Eucaristia, à salvação das almas dos políticos católicos em questão — que pecavam gravemente não só contra o Quinto Mandamento, mas também estavam cometendo sacrilégio ao receberem indignamente a Sagrada Comunhão — e à prevenção do grave escândalo causado por eles. Quando intervim pastoralmente com políticos católicos, isso foi feito de uma forma devidamente confidencial. Certamente, não dei publicidade a este assunto. Foram antes os políticos que acharam útil apresentarem-se como católicos praticantes, na esperança de atrair os votos dos católicos, que publicitaram o assunto para um fim político.

A discussão durante a reunião de junho de 2004 foi difícil e intensa. Sem entrar nos detalhes da discussão, aparentemente não houve consenso entre os Bispos, embora houvesse entre alguns dos Bispos mais influentes o desejo de evitar qualquer intervenção com políticos católicos que, de acordo com a disciplina do cân. 915, não deveriam ser admitidos a receber a Sagrada Comunhão. Por fim, o Presidente, o então Bispo Wilton Gregory, da Diocese de Belleville, remeteu o assunto a um grupo de trabalho sobre Bispos e políticos católicos, sob a presidência do então Cardeal Theodore McCarrick, que se opôs claramente à aplicação do cân. 915 no caso de políticos católicos que apoiavam o aborto provocado e outras práticas que violam gravemente a lei moral. O grupo de trabalho era composto por um conjunto de Bispos com visões mistas sobre o assunto. Em qualquer caso, com o tempo, o grupo foi esquecido e a questão crítica foi deixada por abordar pela Conferência dos Bispos. Quando o Bispo Gregory anunciou o grupo de trabalho, o Bispo sentado ao meu lado observou que agora podíamos ter a certeza de que a questão não seria abordada.

No contexto de recordar a reunião de Denver da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, em junho de 2004, é importante para mim recontar duas outras experiências pessoais relacionadas.  

Primeiro, na Primavera de 2004, enquanto estava em Washington, D.C., para atividades pró-vida, encontrei-me, em privado, durante quarenta e cinco minutos, com um dos mais altos funcionários do governo federal, um cristão não-católico que manifestava grande respeito pela Igreja Católica. No decurso da nossa conversa, ele perguntou-me se, tendo em conta as graves dificuldades de saúde de S.S. João Paulo II, a eleição de um novo Papa poderia significar uma mudança nos ensinamentos da Igreja relativamente ao aborto provocado. Manifestei alguma surpresa com a sua pergunta, explicando que a Igreja nunca poderá mudar o seu ensinamento sobre o mal intrínseco do aborto provocado porque é um preceito da lei natural, a lei escrita por Deus em cada coração humano. Ele respondeu que tinha feito a pergunta porque tinha concluído que o ensinamento da Igreja sobre o assunto não podia ser tão firme, uma vez que podia nomear-me 80 ou mais católicos no Senado e na Câmara dos Representantes que apoiavam regularmente a legislação pró-aborto.

A conversa em questão foi um testemunho eloquente do grave escândalo causado por esses políticos católicos. De fato, eles contribuíram, de forma significativa, para a consolidação de uma cultura de morte nos Estados Unidos, na qual o aborto provocado é simplesmente um fato da vida quotidiana. O testemunho da Igreja Católica sobre a beleza e bondade da vida humana, desde o seu primeiro momento de existência, e a verdade da sua inviolabilidade foi gravemente comprometido ao ponto de os não-católicos acreditarem que a Igreja mudou ou irá mudar aquilo que é, de fato, um ensinamento imutável. Enquanto a Igreja, cumprindo a missão de Cristo, sua Cabeça, para a salvação do mundo, se opõe totalmente ao ataque à vida humana inocente e indefesa, a Igreja Católica nos Estados Unidos parece aceitar a prática abominável, de acordo com uma visão totalmente secularizada da vida humana e da sexualidade.

A esse respeito, é-me dito que o argumento da verdade sobre a vida humana é frequentemente ineficaz, uma vez que a cultura não tem qualquer consideração pela verdade objetiva, exaltando as opiniões do indivíduo, por mais contrárias que sejam à razão certa. Talvez a abordagem adotada na assistência a mães e pais que contemplam o aborto devesse ser adotada a uma escala mais ampla, nomeadamente a visualização de uma ecografia da minúscula vida humana no seu início. Na minha experiência, quando as mães e os pais pensam em visualizar o aborto primeiro, uma tal ecografia, a maior parte deles não procede ao aborto. A imagem visível da beleza e da bondade da vida humana convence-os do mal do aborto. Tais ecografias devem ser facilmente visíveis, especialmente por aqueles que são responsáveis por conduzir o testemunho essencial da vida da Igreja e por aqueles que são responsáveis pelas políticas, programas e leis da nação, que devem proteger e fomentar a vida humana, e não prever a sua destruição.

O segundo evento teve lugar durante a minha visita a Roma, em finais de Junho e princípios de Julho de 2004, a fim de receber, do Papa João Paulo II, o pálio de Arcebispo Metropolitano de Saint Louis. Dada a difícil experiência do encontro em Denver, no início do mês de junho, fui aconselhado a visitar a Congregação para a Doutrina da Fé, a fim de ter a certeza de que a minha prática pastoral era coerente com o ensinamento e a prática da Igreja.

Fui recebido em audiência pelo então Prefeito da Congregação, Sua Eminência Joseph Cardinal Ratzinger, e pelo então Secretário da Congregação, Arcebispo, agora Cardeal, Angelo Amato, e um funcionário de língua inglesa da Congregação. O Cardeal Ratzinger assegurou-me que a Congregação tinha estudado a minha prática e não encontrou nada de censurável nela. Apenas me advertiu para não apoiar candidatos a cargos públicos, algo que, de fato, eu nunca tinha feito. Manifestou alguma surpresa perante a minha dúvida sobre o assunto, dada uma carta que tinha escrito aos Bispos dos Estados Unidos em que tinha abordado minuciosamente a questão. Perguntou-me se eu tinha lido a sua carta. Disse-lhe que não tinha recebido a carta e perguntei-lhe se poderia ter a gentileza de me fornecer uma cópia. Ele sorriu e sugeriu que eu a lesse num blog popular, pedindo ao funcionário de língua inglesa que fizesse uma fotocópia do texto tal como aparecia na sua totalidade no blog.3

A carta em questão expõe, de maneira autoritária, o ensinamento e a prática constantes da Igreja. O fracasso na sua distribuição aos Bispos dos Estados Unidos contribuiu, certamente, para o fracasso dos Bispos, em junho de 2004, em tomar as medidas adequadas na implementação do cân. 915. Agora, é-me dito que se mantém que a carta era confidencial e, portanto, não pode ser publicada. A verdade é que ela foi publicada, já no início de julho de 2004, e que claramente o Prefeito da Congregação, que a redigiu, não ficou de todo perturbado com o fato.

Passaram-se dezessete anos desde a reunião da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, em Denver, durante o mês de junho de 2004. A questão mais grave da aplicação do cân. 915 do Código de Direito Canônico aos políticos católicos que apoiam e promovem programas, políticas e legislação em grave violação da lei natural parece continuar a ser uma questão para a Conferência dos Bispos. De fato, a obrigação do Bispo individual é uma questão de disciplina universal da Igreja, relativamente à fé e à moral, sobre a qual a Conferência dos Bispos não tem autoridade. Efetivamente, vários Bispos compreenderam o seu dever sagrado na matéria e estão a tomar as medidas apropriadas. Uma Conferência dos Bispos cumpre um importante papel de apoio ao Bispo diocesano, mas não pode substituir a autoridade que lhe pertence de forma adequada. É o Bispo diocesano, e não a Conferência, que aplica a lei universal a uma situação particular.4

O trabalho da Conferência dos Bispos consiste em ajudar os Bispos individualmente no cumprimento do seu dever sagrado, de acordo com o cân. 447 do Código de Direito Canônico: “A Conferência episcopal, instituição permanente, é o agrupamento dos Bispos de uma nação, ou determinado território, que exercem em conjunto certas funções pastorais a favor dos fiéis do seu território, a fim de promoverem o maior bem que a Igreja oferece aos homens, sobretudo por formas e métodos de apostolado convenientemente ajustados às circunstâncias do tempo e do lugar, nos termos do direito.” 5 O que mais corresponde à promoção do “maior bem que a Igreja oferece aos homens” do que a salvaguarda e a promoção da vida humana criada à imagem e semelhança de Deus,6 e redimida pelo Preciosíssimo Sangue de Cristo, Deus, o Filho Encarnado,7 corrigindo o escândalo dos políticos católicos que promovem, pública e obstinadamente, o aborto provocado.

Convido-vos a rezarem comigo pela Igreja nos Estados Unidos da América e em todas as nações, para que, fiel à missão de Cristo, seu Esposo, ela seja fiel, límpida e firme na aplicação do cân. 915, defendendo a santidade da Sagrada Eucaristia, salvaguardando as almas dos políticos católicos, que violariam gravemente a lei moral e ainda se apresentariam para receber a Sagrada Comunhão, cometendo, assim, sacrilégio, e impedindo o mais grave escândalo causado pela inobservância da norma do cân. 915.

Que Deus vos abençoe a vós e aos vossos lares. Rezem por mim e, especialmente, pela recuperação da minha saúde.

Vosso, no Sagrado Coração de Jesus e no Imaculado Coração de Maria, e no Puríssimo Coração de São José,

Raymond Leo Cardeal Burke

____________

Tradução: Diogo de Campos

[1] «Can. 915 Ad sacram communionem ne admittantur excommunicati et interdicti post irrogationem vel declarationem poenae aliique in manifesto gravi peccato obstinate perseverantes.»

[2] Cf. Albert R. Jonsen, The Birth of Bioethics (New York: Oxford University Press, 1998), pp. 290-291.

[3] Cf. https://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/7055.html; Tradução inglesa:

https://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/7055bdc4.html?eng=y.

[4] Cf. can. 447; e Ioannes Paulus PP. II, Litterae Apostolicae Motu proprio datae Apostolos suos, De theologica et iuridica natura Conferentiarum Episcoporum, 21 Maii 1998, Acta Apostolicae Sedis 90 (1998) 641-658.

[5] «Can. 447 Episcoporum conferentia, institutum quidem permanens, est coetus Episcoporum alicuius nationis vel certi territorii, munera quaedam pastoralia coniunctim pro christifidelibus sui territorii exercentium, ad maius bonum provehendum, quod hominibus praebet Ecclesia, praesertim per apostolatus formas et rationes temporis et loci adiunctis apte accommodatas, ad normam iuris.»

[6] Cf. Gn 1, 27.

[7] Cf. 1 Pe 1, 2. 19; 1 Jo 1, 7; Rom 3, 25; Ef 1, 7; e Heb 9, 12; e Ap 1, 5.

 

Fonte - abim

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