sábado, 18 de março de 2023

Dez anos do Papa Francisco: luzes, sombras e penumbras

"Não acredito que Francisco tenha trazido mudanças significativas para a Igreja. Se um papa muito diferente viesse depois dele, não sobraria muito de seu legado para viver."

Dez anos do Papa Francisco: luzes, sombras e penumbras


Por Miguel Ángel Quintana Paz

 

Dois divertidos gazapos da mídia espanhola acompanharam nesta segunda-feira o décimo aniversário da eleição de Jorge Mario Bergoglio como duzentos e sessenta e seis bispos de Roma. A manchete do portal InfoCatólica dizia: “Cem anos se passaram desde a eleição de Francisco como Papa”. No canal de televisão La Sexta, seu apresentador proclamou que "sua chegada como o primeiro papa negro ao Vaticano revolucionou a opinião pública".

Não é preciso ser freudiano para verificar o quanto ambos os coelhos nos revelam sobre seus emissores. Parece que, para uma mídia conservadora como a InfoCatólica, este pontificado está se tornando extenso e, portanto, sua hesitação entre estarmos com ele há uma década ou talvez um século. Por seu lado, para os liberais de La Sexta, Francisco representa, sem dúvida, um louvável símbolo de identidade, Wokista, como foi Barack Obama no seu tempo; talvez fosse exagero anunciá-lo como o primeiro não-binário ou transpontífice, de modo que deixá-lo como primeiro papa negro revela, ao final, certo comedimento.

Além dos erros de um ou de outro, é verdade que avaliar um pontificado como o atual envolve não poucas dificuldades. A primeira coisa que gostaria de destacar é que há muitos (dentro e fora da Igreja) que não entendem o que significa ser papa. E a culpa é sobretudo dos séculos XIX e XX.

No século XIX, com o surgimento e expansão das ideologias políticas, muitos passaram a considerar o catolicismo apenas como mais um. E se o catolicismo é uma ideologia, então a Igreja é um partido político e, seu Papa, o líder máximo. Ninguém se torna bolchevique em 1917 se não for para homenagear Lenin; ninguém se juntou ao conservador britânico em 1875, exceto porque Disraeli os agradou. A consequência dessa visão errônea do que é católico é lamentável: assim como a crítica ao líder supremo é desaprovada em um partido político (tanto atrapalha seu objetivo, o acesso ao poder!), quem vê o catolicismo sob a perspectiva de um ideologia eles também abominarão qualquer crítica ao seu líder máximo, o supremo pontífice.

É preciso dizer que um dos aspectos louváveis ​​de Francisco é que ele já lutou várias vezes contra esse erro. "Você pode criticar o Papa, não é pecado", repetiu. Junto com um aviso: "Tenho alergia a chupamedias" (que é como chamam os bajuladores na Argentina).

«Francisco nem sempre foi tão aberto às críticas como proclama.»

É verdade, porém, que as obras são amor e não boas razões. E, portanto, depois de citar aquela luz do pontífice, não só nos asseguramos de que criticá-lo como vamos criticá-lo agora não é pecaminoso, mas também é inevitável mencionar sua sombra: Francisco nem sempre foi tão aberto a crítica como ele proclama. Basta-nos recordar o caso de Bruno Forte, um dos principais teólogos das últimas décadas, arcebispo italiano, colaborador próximo do Papa... até que em 2016 teve a ideia de fazer uma piada sobre seu jesuíta métodos. Ele foi, ipso facto, removido de qualquer comissão, qualquer confiança, qualquer promoção. Brincar nem sempre é divertido para todos. Nem ser criticado. 

Outro sinal da alergia papal às críticas é o dinheiro que a Santa Sé gastou no segundo escritório de advocacia de maior prestígio do mundo, Baker & McKenzie. Foi para denunciar um dos milhares de ataques contra as igrejas católicas que ocorrem em todo o mundo? Foi para lidar com algumas das calúnias que são derramadas sobre a Igreja dia após dia? Não, foi apenas para tirar de um dos principais portais espanhóis de informação religiosa, o InfoVaticana, o direito de usar esse nome. Um pouco como se o prefeito de Madrid quisesse me proibir de chamar um bar em Vitigudino de “Bar Madrid”. Esses fundos não tiveram sucesso: Baker & McKenzie, juntamente com a Santa Sé, falharam em sua empreitada (que, curiosamente, não teve contrapartida em denúncias semelhantes a outros meios de comunicação que usam o adjetivo "Vaticano", como o portal Vatican Insider). E a todos ficamos com a convicção de que a crueldade contra aquele médium espanhol se baseava apenas na falta de complexos ao criticar o Sumo Pontífice, e não na obsessão de monopolizar o adjetivo "Vaticano" só para si.

É oportuno recordar aqui o segundo obstáculo que hoje dificulta a compreensão do que é um papa. Neste caso, como dissemos, é um obstáculo herdado do século XX. Antes da invenção do rádio, da televisão, da Internet ou dos aviões, o Bispo de Roma era para a imensa massa de católicos uma figura distante, por quem rezar e pouco mais. De vez em quando chegava uma bula, uma encíclica, lembrando-nos da sua existência; mas era ridículo fingir que era preciso "gostar" do papa, cujo rosto dificilmente se reconheceria na rua; também era absurdo esperar comentar todas as homilias que ele pudesse fazer. Você poderia ser um católico modelo na Idade Média ou Moderna sem ter nenhuma opinião do Sumo Pontífice; sem mencionar que, no que diz respeito ao seu governo mundano, você poderia até lutar contra suas tropas, como o imperador Carlos V e seus lansquenets bem sabiam em 1527. 

Esse mundo inteiro virou de cabeça para baixo hoje. A maioria dos católicos conhece o papa melhor do que o pároco. E, como vivemos em uma democracia, somos constantemente instados a falar sobre tudo: além de nossas pequenas opiniões sobre o conflito árabe-israelense, a camada de ozônio e as últimas eleições brasileiras, também somos instados a valorizar a Sumo Pontífice. E mais: se possível, sobre cada uma de suas ações e palavras ontem. Parmênides e Platão ficariam horrorizados com essa paixão que hoje temos pela mera doxa; Harry Frankfurt nos alertou que todo o charlatanismo que nos rodeia flui daí.

"Para aqueles de nós que se preocupam com a verdade, ter uma opinião sobre cada pequena coisa sobre o Papa parece fútil em comparação com o catolicismo."

Diante dessa nova situação em que todos somos doxóforos, ou portadores de opiniões, muitos piedosos acreditam que o que é católico é que essas ideias sejam sempre favoráveis ​​ao papa; outros, que se desacreditarem o papa, também estarão desacreditando a Igreja. Ambos os grupos estão errados. O catolicismo, se for sério, é verdadeiro. E as verdades estão acima do papa, de Agamenon ou seu guardador de porcos. Por quase dois milênios, todos os tipos de reflexões e argumentos sobre a verdade católica foram pensados, escritos e elaborados. Se amanhã se descobrisse que Jorge Mario Bergoglio é pai de quatro filhos (o exemplo não é irracional, já houve pontífices assim), isso não subtrairia uma vírgula à verdade católica (embora subtraísse uma vírgula à moral de Bergoglio). Se amanhã o papa ficasse com sua assistente porque mexeu com a mãe (algo que já havia anunciado em 2015 que poderia fazer), isso não refutaria nenhuma verdade da Bíblia, de São Justino Mártir ou de São Boaventura. Em suma, para nós que nos preocupamos com a verdade, por mais que ela pese no século 20, ficar atento e opinar sobre cada coisinha do Papa parece uma futilidade comparada ao catolicismo. E assim deve ser.

Uma vez descritas essas duas dificuldades (uma, herdada do século XIX, a outra do século XX) para fazer o balanço do atual papado, é hora de lembrar as outras duas, mais óbvias: a primeira, que é um papado polêmico, com fãs e haters dos mais determinados. A segunda, que ser Papa significa ocupar uma posição inusitada no mundo, com tantas facetas que é impossível ser suficientemente solvente para avaliar todas elas: líder espiritual, líder eclesial, chefe de um Estado e sua diplomacia, intérprete da tradição e Escrituras, pregador de moral e costumes, redator de textos doutrinários e pastorais, juiz supremo nos conflitos internos, mediador dos conflitos externos...

No restante deste artigo nos limitaremos, então, ao campo em que um servidor é menos ignorante: o filosófico. Não quero dar a impressão de que estou evitando um julgamento global desses dez anos de Francisco. Vou ao que interessa: não me parece o melhor papa da história, nem me parece o pior. Eu nem acho que está entre os vinte primeiros; nem que esteja entre os vinte piores. Na verdade, acho que esta é uma das dificuldades para entendê-lo: dada a importância exagerada que damos ao nosso presente, há uma tendência a engrandecer suas virtudes e defeitos.só porque eles são os mais próximos de nós. Um pouco como a mancha em nossos óculos nos parece maior do que a torre distante que podemos ver através deles. É difícil para nós nos contentarmos em ter um pai comum. Mas o mais seguro (e estatisticamente mais provável) é que seja assim.

Não, não acredito que Francisco tenha trazido uma "primavera para a Igreja", como proclamam os mais lisonjeiros de seus partidários (onde está aquela primavera, em um Ocidente onde continua abandonando a fé, uma América Latina onde continuam a tira fiéis da Igreja - grupos evangélicos, e a fé cresce na África ou na Ásia, sobretudo por mera demografia). Mas também não acredito que ele seja um agente comunista, um antipapa ou um enviado do Anticristo, como o mais histérico de seus detratores abaixo.

"Não acho o Francisco um grande pensador, mas também não é um cara ignorante."

Não creio que Francisco seja um grande pensador (seus textos passariam despercebidos se ele não tivesse sido nomeado papa; na verdade, não conheço nenhum estudioso que tenha elogiado suas obras até dez anos atrás). Mas também não acho que seja um tipo ignorante (se as suas obras são medíocres, só o são na medida em que são incluídas nas mesmas bibliotecas onde existem gigantes como Escoto Erígena, São Tomás de Aquino ou, para citar também aos pontífices, um João Paulo II ou um Bento XVI).

Não acredito que Francisco tenha trazido mudanças significativas para a Igreja (além da reforma da Cúria, que é de fato um mérito louvável dele). Se um papa de caráter muito diferente chegasse depois de seu pontificado, não restaria muito de seu legado para sobreviver. Ele não fez desenvolvimentos doutrinários que envolvessem voltas de substância especial (escrever sobre ecologia ou criticar o capitalismo já havia sido feito com papas anteriores; dizer que ninguém além de Deus deve julgar gays ou lésbicas é a mesma ideia que Jesus Cristo expressou quando advertiu contra quem se dedicou a condenar os outros). Nem, portanto, acredito que tenha alterado de alguma forma o legado da fé.

Os sínodos (e não digamos aquele trava-língua chamado “sínodo da sinodalidade”) me parecem um curioso entretenimento para os paroquianos e pessoas com tempo para se ocupar com as coisas eclesiais. Mas basta ler os documentos por eles emitidos para verificar que não representam um grande marco histórico para a Igreja (e quando tentarem assumi-lo, como no caso do Caminho Sinodal Alemão, colidirão com a autoridade papal).

A esta altura, talvez o leitor esteja contemplando que, mais do que o próprio Papa Francisco, quem aqui brinca de ser um tanto temperante é o autor destas linhas. Talvez os últimos parágrafos que agora vêm te neguem, e que são, cumprindo o que foi prometido, os mais relacionados com a filosofia deste artigo. Bem, há uma questão, que para alguns parecerá apenas sindical, na qual fica clara a minha crítica ao Papa Francisco. Uma questão filosófica. Uma questão em que Francisco falha completamente em atuar como contraponto ao mundo atual.

Estou pensando em pós-verdade. Vamos começar esclarecendo o significado dessa palavra, que muitos não entendem. "Pós-verdade" não é um novo nome para as mentiras de toda uma vida; Não representa um termo para aludir à proliferação de falsidades e enganos por toda parte. A "pós-verdade" alude antes a algo que, infelizmente, nos é cada vez mais familiar: esta época em que quase ninguém se preocupa com o que é verdadeiro ou falso, porque a diferença entre um e outro deixou de nos interessar. Em vez do que é verdadeiro, queremos saber o que significa "meu membro da tribo" ou "meu líder de grupo": nossas epistemologias, como notou David Roberts, tornaram-se tribais. Parece-nos até "pretensioso" aspirar a conhecer a verdade sem mais delongas.

Um mundo pós-verdade é um mundo onde um político (digamos, o Presidente do Governo, Pedro Sánchez) pode nos dizer algo hoje e o contrário amanhã. Ou ainda pior: tanto quando diz a primeira quanto quando diz a segunda (contraditória), colherá os aplausos dos mesmos fiéis. Porque são isso, fiéis ao líder, não à diferença entre mentira e verdade.

"Um mundo pós-verdade é um mundo pós-cristão."

Um mundo pós-verdade é um lugar onde se fala muito, abunda o charlatanismo: se eu não me importo com a diferença entre o verdadeiro e o falso, é tão fácil reclamar! Já mencionamos como Harry Frankfurt fica horrorizado com tudo isso, e como ele associa isso à mania democrática de ter opinião sobre tudo e em todos os lugares.

Um mundo pós-verdade é um mundo pós-cristão: se não existe mais verdade ou mentira, a diferença entre um homem, Jesus, que disse ser a própria Verdade, e qualquer outra coisa não importa mais: vamos começar a fazer reiki, viagem astral ou adoração à Pachamama, que tudo não importa.

Bem, Francisco é um campeão eficaz contra este tempo de pós-verdades? Como filósofo, temo não poder ver nele (e bem que gostaria de acrescentar aliados!) um parceiro em tal batalha.

Já não é só que o Francisco fala muito, muito, mais do que qualquer um dos seus antecessores, e sobre qualquer assunto (sogras, vírus, mães que parem como "coelhos", economia...). Fala tanto que, até certo ponto, é compreensível este hábito, por ele inaugurado, de escrever encíclicas... nas quais é sobretudo citado. Agora, diz o ditado que quem tem boca está errado. E quem tem boca grande está muito mais enganado. Essa extrema loquacidade de Francisco já deveria nos alertar para um possível desprezo apenas pelo rigor da verdade; e, infelizmente, tal aviso é verificado aos poucos que olhamos mais de perto.

Com efeito, Francisco difundiu afirmações surpreendentes tanto em termos teológicos como políticos e humanos.

Em termos teológicos: que a Virgem não nasceu santa, que a multiplicação dos pães e peixes de Jesus não foi um milagre, que não se deve fazer proselitismo, que a maioria dos casamentos é nula, que ser santo é viver a fé "qualquer coisa é, com coerência" (conheço muitas fés que é melhor que as pessoas não vivam com coerência, sério)...

Em termos políticos: manifeste-se primeiro contra a venda de armas à Ucrânia, depois a favor, sem reconhecer esta mudança de ideia ou contradição; livrar-se de palavras bonitas para líderes de países opressores (como Cuba), mas ser muito mais duro com os de países democráticos (como os EUA)...

Em termos humanos: dizer que falar mal dos outros é "terrorismo" (conviria não banalizar um termo tão sério); chamar Santa Teresa de "velha" (sim, é um nome que não soa igual na Argentina e na Espanha, mas mesmo assim talvez o coloquialismo seja excessivo por lá); zombando do cardeal Burke porque, depois de não querer tomar a vacina contra a covid-19, ele conseguiu...

«Entre as milhares de palestras papais, muitos de nós detectamos coisas surpreendentes repetidas vezes.»

Todas essas declarações polêmicas de Francisco deram origem, aliás, ao surgimento de um tipo de católico muito curioso e até cômico: o advogado linguístico-hermenêutico papal. De fato, dado que entre os milhares de discursos papais, muitos de nós detectamos repetidamente coisas surpreendentes, o advogado linguístico-hermenêutico sempre surge nas redes sociais ou face a face. Aquele que vem esclarecer que realmente não entendemos nada (entendeu). Aquele que nos censura por interpretar mal o Papa (ele sempre interpreta corretamente). Aquele que argumenta que o Papa tem razão em tudo o que diz (nós, porém, quando detectamos essas coisas estranhas, ou somos muito estúpidos ou muito maus, mas nunca temos razão).

Em suma, temo que nem mesmo o mais habilidoso desses advogados linguístico-hermenêuticos será capaz de salvar algumas das mais surpreendentes contradições do papa. Vejamos a mais recente, por exemplo: no dia 8 de março, ela aproveitou para aderir à maré feminista da época e declarou que era preciso “oferecer oportunidades iguais a homens e mulheres em todos os contextos”.

É impossível que, ao pronunciar aquelas palavras, o Papa não se tenha lembrado de que existe um contexto, muito próximo dele!, o do clero católico, onde os homens têm oportunidade de aceder e as mulheres não. Não me importo. Qualquer orador rigoroso da verdade teria feito um esclarecimento a esse respeito (explicar essa exceção) ou até mesmo algo mais simples: evitar modestamente a frase "em todos os contextos", que o Papa, no entanto, acrescenta (por descuido? 8-M?, uma mistura de motivos?). Esta adição retorna, no entanto, a contradição mais óbvia entre o que o Papa realmente defende e o que o Papa ali afirma. Em tempos de pós-verdade, alguns de nós buscam o rigor e honram a verdade, toda a verdade, e somente a verdade, quando falada. Fuja das contradições.O Papa, por outro lado, prefere aliar-se à onda contemporânea de frouxidão.

Não é nada grave: desde o surgimento do marxismo até a denúncia de seu caráter anticristão, também passou um certo tempo; Do momento em que surge qualquer heresia até que ela seja delimitada, costumam passar também anos ou décadas. Talvez o problema esteja na impaciência de alguns de nós, que não aguentamos mais esse clima em que nada é verdadeiro ou falso, e tudo depende de quão poderoso é o orador para que as coisas sejam aceitas ou não.

Mas, seja com este Papa ou com outro futuro, uma coisa é certa: a pós-verdade é um problema do nosso tempo que precisa ser enfrentado com urgência. E estes últimos dez anos não ajudaram aqueles de nós que acreditam que tal batalha deve ser travada.

 

Fonte - theobjective

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