CAPÍTULO 37
Da pura e completa renúncia de si mesmo para obter liberdade de coração
1. Jesus: Filho, deixa-te a ti, e achar-me-ás a mim. Despe tua vontade e teu amor-próprio, e sempre tirarás lucro. Porque, logo que te entregares a mim sem reservas, se te acrescentará a graça.
A alma: Senhor, em que devo renunciar-me, e quantas vezes?
Jesus: Sempre e a toda hora tanto no muito como no pouco. Nada excetuo, mas quero te achar despojado de tudo. De outra sorte, como poderás ser meu e eu teu, se não estiveres, exterior e interiormente, desapegado de toda vontade própria? Quanto mais prontamente isso fizeres, tanto melhor te acharás, e quanto mais pleno e sincero for teu sacrifício, tanto mais me agradarás e maior lucro terás.
1. Alguns há que se entregam a mim, mas com alguma reserva, porque não têm plena confiança em Deus, e por isso tratam de prover as próprias necessidades. Outros, a princípio, tudo oferecem, mas depois, combatidos pela tentação, volvem-se novamente às próprias comodidades, e eis por que quase não progridem nas virtudes. Estes nunca chegarão à verdadeira liberdade do coração puro, nem à graça de minha doce familiaridade, enquanto não renunciarem de todo a si mesmos, oferecendo-se em cotidiano sacrifício a Deus, sem o que não há nem pode haver união deliciosa comigo.
2. Muitas vezes te disse e agora te torno a dizer: deixa-te, renuncia a ti mesmo, e gozarás grande paz interior. Dá tudo por tudo, não busques, não reclames coisa alguma, persevera, pura e simplesmente, em mim, e me possuirás. Terás livre o coração e as trevas não te poderão oprimir. A isto te aplica, isto pede, isto deseja: ser despojado de todo amorpróprio, para que possas seguir nu a Jesus desnudado, morrer a ti mesmo e viver eternamente. Então se dissiparão todas as vãs imaginações, penosas pertubações e supérfluos cuidados. Logo também desaparecerá o temor demasiado, e morrerá o amor desordenado.
CAPÍTULO 38
Do bom procedimento exterior, e do recurso a Deus nos perigos
1. Jesus: Filho, nisto deves empenhar toda a diligência, que em todo lugar, ação ou ocupação exterior estejas interiormente livre e senhor de ti mesmo, dominando todas as coisas, e a nenhuma sujeito. Deves ser o senhor e diretor de tuas ações e não servo ou escravo; cumpre sejas livre e verdadeiro israelita, que chega à condição de liberdade dos filhos de Deus. Esses elevam-se acima das coisas presentes e contemplam as eternas; só de relance olham para as coisas transitórias, e têm a vista presa nas celestiais. Não se deixam atrair e prender pelas coisas temporais, mas servem-se delas conforme o fim para que foram ordenadas por Deus e destinadas pelo supremo Artífice, que nada deixou sem ordem nas suas criaturas.
2. Se, além disso, em qualquer acontecimento, não te demorares na aparência exterior, nem considerares com os olhos carnais o que vês e ouves, mas em qualquer negócio entrares logo com Moisés no tabernáculo e consultar o Senhor; ouvirás às vezes, a sua divina resposta, e sairás instruído a respeito de muitas coisas presentes e futuras. Sempre recorria Moisés ao tabernáculo para resolver suas dúvidas e dificuldades, valia-se da oração para triunfar dos perigos e das maldades dos homens. Do mesmo modo deves tu te refugiar no mais recôndito do teu coração, para, com mais instância, implorar o divino auxílio. Por isso - como está escrito - Josué e os filhos de Israel foram enganados pelos gabaonitas "porque não consultaram primeiro ao Senhor", mas, dando crédito demasiado às suas doces palavras, deixaram-se enganar por fingida piedade.
CAPÍTULO 39
Que o homem não seja impaciente nos seus negócios
1. Jesus: Filho, confia-me sempre teus negócios, eu disporei tudo bem a seu tempo. Espera minha determinação, e disso tirarás proveito.
2. A alma: Senhor, de mui boa vontade vos confio todas as coisas, porque pouco adianta o meu cuidado. Oxalá não me perturbasse com os conhecimentos futuros, mas me oferecesse sem demora ao vosso beneplácito!
2. Jesus: Filho, muitas vezes procura o homem com ânsia uma coisa que deseja; logo, porém, que a alcança, muda de parecer, porque as afeições não persistem muito ao mesmo objeto, mas facilmente passam de um para outro. Pelo que, não é pouco renunciar-se o homem a si mesmo, ainda nas coisas pequenas.
3. O verdadeiro progresso do homem consiste na abnegação de si mesmo, e quem assim se abnegou, goza grande liberdade e segurança. Contudo, o antigo inimigo, o adversário de todo o bem não desiste da tentação, armando dia e noite perigosas ciladas, para ver se pode precipitar algum incauto no laço do seu engano. Vigiai e orai, diz o Senhor, para que não entreis em tentação (Mt 26, 41).
CAPÍTULO 40
Que o homem por si mesmo nada tem de bom e de nada se pode gloriar
1. A alma: Senhor, que é o homem, para que vos lembreis dele, ou o filho do homem, para que o visiteis? (Sl 8,5). Por onde mereceu o homem que lhe deis a vossa graça? Como me posso queixar, se me desamparais, ou que posso justamente opor, se não me concedeis o que peço? Decerto, com verdade posso pensar e dizer: Senhor, nada sou, nada posso, nada de bom tenho de mim mesmo, mas falta-me tudo, e sempre pendo para o nada. E se vós não me ajudais e ensinais, fico de todo tíbio e relaxado.
1. Vós, porém, Senhor, sempre sois o mesmo e permaneceis eternamente bom, justo e santo, e boas são vossas obras
2. todas, e justas e santas, e dispondes tudo com sabedoria. Mas eu, que sou mais inclinado à negligência que ao aproveitamento espiritual, não sei conservar-me no mesmo estado, porque mudo sete vezes por dia. Mas logo me vai melhor, quando vos apraz estender-me a mão para me socorrer; porque só vós, sem auxílio humano, me podeis ajudar e dar-me firmeza, de tal modo que jamais se mude meu rosto, mas só a vós se converta meu coração e em vós descanse.
2. Por isso, se eu soubesse rejeitar toda humana consolação, fosse por adquirir a devoção, fosse pela necessidade que me obriga a buscar-vos, então poderia com razão esperar a vossa graça e alegrar-me com o favor de uma nova consolação.
3. Graças vos sejam dadas, Senhor, porque de vós procede todo o bem que me sucede. Mas eu sou vaidade e nada, diante de vós, sou homem frágil e inconstante. De que posso, pois, gloriar-me, ou por que desejo ser estimado? Porventura do meu nada? Isso seria o cúmulo da vaidade. Verdadeiramente a vanglória é peste maligna e a pior das vaidades, porque nos aparta da glória verdadeira e nos priva da graça celestial. Porquanto, desde que o homem agrada a si, desagrada a vós, e quando aspira aos humanos louvores, perde as verdadeiras virtudes.
4. Glória verdadeira, porém, e alegria santa é gloriar-se cada um em vós e não em si, deleitar-se em vosso nome e não na sua própria virtude, não achar deleite em criatura alguma, senão por amor de vós. Seja louvado o vosso nome e não
o meu; sejam glorificadas vossas obras e não as minhas; exaltado seja o vosso santo nome, e a mim nada se atribua dos louvores humanos. Vós sois minha glória e a alegria do meu coração. Em vós me gloriarei e exaltarei todo dia, mas, quanto à minha pessoa, de nada me ufano, a não ser das minhas fraquezas (2Cor 12,5).
6. Busquem os judeus a glória uns dos outros, eu busco aquela que vem só de Deus (Jo 5,44). Pois toda glória humana, toda glória temporal e toda grandeza mundana, comparada com a vossa eterna glória, não passa de vaidade e loucura. Ó verdade e misericórdia minha, Deus meu, Trindade bem-aventurada! A vós só seja dado louvor, honra, virtude e glória por todos os séculos.
CAPÍTULO 41
Do desprezo de toda honra temporal
1. Jesus: Filho, não te entristeças por veres os outros honrados e exaltados, ao passo que tu és desprezado e humilhado. Ergue a mim o teu coração até ao céu, e não te entristecerá o desprezo humano na terra.
2. A alma: Senhor, vivemos na cegueira, e facilmente nos engana a vaidade. Se bem me examino, nunca recebi injúria de criatura alguma; não tenho, pois, motivo de justa queixa contra vós.
2. Mas, porque cometi tantos pecados, e tão graves, contra vós, é justo que contra mim se armem todas as criaturas. A mim, pois, com muita razão, cabe confusão e desprezo, a vós, porém, louvor, honra e glória. E enquanto não estiver disposto a querer de bom grado ser desprezado e abandonado de todas as criaturas, e ser tido absolutamente em nada, não haverá em mim paz e tranqüilidade interior, nem serei espiritualmente iluminado, nem perfeitamente unido a vós.
CAPÍTULO 42
Como não se deve procurar a paz nos homens
1. Jesus: Filho se puseres tua paz em alguma pessoa, por conviver contigo e ser de teu parecer, achar-te-ás inconstante e embaraçado. Mas, se recorreres à verdade sempre viva e permanente, não te entristecerás pela ausência e morte de um amigo. Em mim se há de fundar o amor do amigo, e por mim se há de amar todo aquele que nesta vida te parecer bom e amável. Sem mim não vale nada, nem durará a amizade; nem é puro e verdadeiro o amor cujos laços eu não tenha dado. De tal modo deves estar morto para semelhantes afeições dos amigos que, quanto depender de ti, desejes viver sem relações humanas. Quanto mais se chegar o homem para Deus, tanto mais se afastará de todo alívio terreno. E tanto mais alto sobe para Deus, quanto mais baixo desce na sua estimação, e mais vil se reputa.
2. Mas quem a si mesmo se atribui algum bem impede que a graça venha à sua alma; porque a graça do Espírito Santo sempre busca o coração humilde. Se te souberas perfeitamente aniquilar e desprender de todo amor criado, então viria a ti com a abundância de minhas graças. Quando olhas para as criaturas, perdes a contemplação do Criador. Aprende a vencer-te em tudo por teu Criador, e então poderás chegar ao conhecimento divino. Qualquer coisa, por pequena que seja, se a amas e aprecias desordenadamente, mancha a alma e te separa do sumo bem.
CAPÍTULO 43
Contra a vã ciência do século
1. Jesus: Não te deixes cativar pela elegância e sutileza dos dizeres humanos, porque o reino de Deus não consiste em palavras, mas na virtude (1 Cor 2,4). Atende às minhas palavras, que inflamam o coração, iluminam o espírito, levam à compunção e produzem muitas consolações. Nunca leias minha palavra com o fim de pareceres mais douto ou sábio. Aplica-te a mortificar teus vícios, porque isso te traz mais proveito que o conhecimento das mais difíceis questões.
2. Por muito que estudes e aprendas, terás que referir tudo sempre ao único princípio. Sou eu que ensino ao homem a ciência, e dou aos pequeninos mais clara compreensão, do que os homens são capazes de ensinar. Aquele a quem eu ensinar, depressa será sábio e muito aproveitará espiritualmente. Ai daqueles que indagam dos homens muitas coisas curiosas, e tratam pouco dos meios de me servir. Tempo virá em que aparecerá o Mestre dos mestres, Cristo, Senhor dos anjos, para tomar lições de todos, isto é, para examinar a consciência de cada um. E com a lâmpada na mão perscrutará então Jerusalém, e revelará o segredo das trevas, fazendo calar as objeções das línguas humanas.
3. Eu sou o que levanta num instante o espírito humilde, de maneira que compreenda melhor as razões das verdades eternas, do que se houvera estudado dez anos nas escolas. Eu ensino sem ruído de palavras, sem confusão de opiniões, sem espalhafato, sem contenda de argumentos. Eu sou o que ensina a desprezar as coisas terrenas, a aborrecer as coisas presentes, a buscar e apreciar as eternas, a fugir às honras, sofrer as injúrias, pôr em mim toda esperança, a não desejar coisa alguma fora de mim e amar só a mim, com todo fervor, acima de tudo.
4. Alguns, amando-me inteiramente, aprenderam com isso coisas divinas e falavam coisas maravilhosas. Mais aproveitaram em deixar tudo, do que em estudar questões sutis. A uns, porém, falo coisas comuns, a outros, mais particulares; a alguns revelo-me docemente em sinais e figuras, a outros descubro os meus mistérios com muita luz. A mesma voz fala em todos os livros, mas não ensina a todos da mesma maneira; pois eu sou o que interiormente ensina a verdade, perscruta o coração, penetra os pensamentos. Inspira as ações, distribuindo a cada um segundo me apraz.
CAPÍTULO 44
Que se não devem tomar a peito as coisas exteriores
1. Jesus: Filho, convém fazeres-te ignorante em muitas coisas, e reputares-te como que morto sobre a terra, para que todo o mundo te esteja crucificado. Importa também que te faças surdo a muitas coisas, cuidando antes do que serve à tua paz. Mais útil é desviares os olhos do que não te agrada e deixares a cada um seu parecer, do que entrares em discussões. Se estiveres bem com Deus e considerares seus juízos, não te será custoso dares-te por vencido.
2. A alma: Ah! Senhor, a que chegamos? Eis que choramos uma perda temporal, trabalhamos e corremos para ganhar mesquinho lucro, mas do dano espiritual nos esquecemos e mal nos lembramos, ou tarde. Olha-se muito pelo que pouco ou nada vale, e não se faz caso do que é sumamente necessário, porque o homem inteiramente se entrega às coisas exteriores, e, se prontamente não se recolher, nela descansa com prazer.
CAPÍTULO 45
Que se não deve dar crédito a todos, e quão facilmente faltamos nas palavras
1. Socorrei-nos, Senhor, na tribulação, porque é vão o auxílio humano (Sl 59,3). Oh! Quantas vezes procurei em vão fidelidade, onde cuidava que a havia! Ah! Quantas vezes a encontrei onde menos a esperava! Vã é, pois, a esperança que se põe nos homens; em vós, meu Deus, está a salvação dos justos. Bendito sejais, Senhor meu Deus, em tudo que nos sucede. Nós somos fracos e inconstantes, facilmente nos enganamos e mudamos.
2. Que haverá tão cauteloso e vigilante em todas as coisas, que alguma vez não caia em perturbação ou engano? Mas aquele que em vós, Senhor, confia, e vos procura de coração sincero, não cai tão facilmente. E se vier a cair em alguma tribulação, de qualquer sorte que esteja embaraçado nela, prontamente será por vós libertado ou consolado, porquanto não desamparais para sempre a quem em vós espera. Raro é o amigo fiel que persevera em todas as tribulações de seu amigo. Vós, Senhor, sois o único amigo fidelíssimo e não se acha outro igual.
1. Oh! bem o soube aquela alma santa (Santa Águeda) que disse: "Meu coração está firmado e fundado em Cristo!" Se
2. assim fora comigo, não me perturbaria tão facilmente o temor humano, nem me abalariam as flechas das más palavras. Quem pode prever tudo e precaver-se contra os males futuros? Se os males previstos já ferem tanto, quanto mais os imprevistos causarão feridas dolorosas! Mas por que motivo, sendo eu tão miserável, não me acautelei melhor? Por que tão facilmente dei créditos aos outros? Entretanto - somos homens e nada mais que homens fracos, ainda que muitos se julguem e chamem anjos. A quem hei de crer, Senhor? a quem senão a vós? Vós sois a verdade que não engana nem pode ser enganada. Ao passo que está escrito: "Todo homem é mentiroso (Sl 115,2), fraco, inconstante, inclinado a pecar, mormente em palavras, de sorte que mal se deve logo acreditar o que, à primeira vista, parece verdadeiro".
3. Quão prudentemente nos aconselhastes que nos acautelássemos dos homens, e nos dissestes que "os inimigos do homem são os que com ele moram" (Mt 10,36), que não devemos dar crédito se alguém nos disser: Aqui está Cristo! Ou está acolá! À minha custa aprendi esta verdade, e queira Deus que me sirva de maior cautela e não para dar provas de maior insensatez! Toma cuidado, diz-me alguém, e guarda para ti o que te digo. E enquanto me calo e guardo segredo, não pode guardar silêncio aquele que me pediu segredo, senão logo descobre a si e a mim e lá se vai. De homens tais, palradores e desacautelados, livrai-me, Senhor, para que não caia em suas mãos nem cometa semelhantes faltas. Ponde em minha boca palavras sérias e sinceras, e apartai de mim o embuste da língua. A todo custo devo evitar
o que não quero aturar dos outros.
5. Oh! Como é bom, para viver em paz, calar dos outros, não crer tudo indiferentemente, nem repeti-lo logo a outrem; abrir-se a poucos e buscar sempre a vós, o perscrutador do coração; não se mover com qualquer sopro de palavra, mas desejar que todas as coisas exteriores e interiores se façam conforme o beneplácito da vossa vontade. Que meio seguro para conservar a divina graça, fugir do que cai na vista dos homens, e não desejar o que possa granjear-nos a admiração dos homens, antes procurar, com toda solicitude, o que serve para emenda da vida e fervor da alma! A quantos prejudicou a virtude divulgada e prematuramente elogiada! Quanto proveito, porém, traz conservar a graça do silêncio, durante esta vida tão frágil, que não é mais que contínua tentação e peleja!
(Continua...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário