terça-feira, 17 de maio de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 34

CAPÍTULO XII
A criação e a eternidade


  Bem consideradas estas coisas, por graça tua, meu Deus, e como me incitasse a bater, e como me abres quando bato, encontro duas  criações tuas não afetadas pelo tempo, embora nenhuma delas te seja coeterna. Uma, que criaste tão perfeita que jamais deixa de te contemplar, que não sofre nenhuma mudança, embora de natureza mutável, e goza de tua eternidade e de tua imutabilidade.
Outra, informe, a ponto de lhe ser impossível passar de uma forma para outra, quer no movimento, quer no repouso, e, portanto, incapaz de estar sujeito ao tempo. Mas tu não a deixaste informe pois, antes de qualquer dia, fizeste no principio o céu e a terra, as duas obras de que falava. 
  Mas a terra era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o abismo. Por essas palavras, a Escritura sugere a idéia de algo informe, para ensinar aos poucos aos  espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo céu, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na criação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos. E essa obra é tal que, devido à mudanças regulares de seus movimentos e formas, está sujeita às vicissitudes do tempo. 

CAPÍTULO XIII
O céu e a terra em Gênesis 


  “No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a seqüência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo.
  Dessas realidades, uma de forma acabada desde o início, a outra absolutamente informe, o céu, isto é: o céu do céu, e a terra, isto é: terra invisível e informe, é bem a propósito delas que tua Escritura diz, sem mencionar o dia: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. E acrescenta imediatamente de que terra se trata. E, indicando que no segundo dia foi criado o firmamento, que foi chamado de céu, dá a entender também de que céu falara antes, sem precisar o dia. 

CAPÍTULO XIV
A profundidade das Escrituras


  Admirável profundidade das tuas palavras! Sua aparência nos acaricia, como se acariciam as crianças! Sim, admirável profundidade, meu Deus, admirável profundidade! O meditá-las causa um arrepio sagrado, tremor de respeito, estremecimento de amor. Odeio com veemência seus inimigos. Oh! Se pudesses fazê-los morrer sob teu gládio de dois gumes, para que não tivessem mais inimigos! Desejaria que eles morressem para si mesmos, e que vivessem só para ti. 
  Mas há outros que não censuram mas, pelo contrário, exaltam o livro de Gênesis, e que dizem: “Não é isto que quis dizer por essas palavras o Espírito de Deus, que as inspirou a teu servo Moisés. Não, o que ele quis dizer não é o que dizes, mas o que nós dizemos” – Eis, ó Deus de todos nós, o que eu lhes respondo: sê nosso árbitro.

 CAPÍTULO XV
O que dizem seus inimigos


  Ousareis apontar como falso o que, com voz clara, a Verdade disse ao ouvido de minha alma sobre a verdadeira eternidade do Criador: ou seja, que sua substância não varia no tempo, e que sua vontade se confunde com sua substância? E que por isso ele não quer ora isto, ora aquilo, mas quer o que sempre quis, simultaneamente e para sempre. Sua vontade não se exerce repetidas vezes, não se propõe ora esta, ora aquela finalidade, não quer o que antes não queria, nem deixa de querer o que antes queria, uma vez que tal vontade seria mutável, e o que é mutável não é eterno; ora, nosso Deus é eterno.
  Tereis por falazes as palavras da Verdade faladas ao ouvido de minha alma: que a espera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depois se transforma em memória, quando passadas? Que todo pensamento que varia assim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus é eterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deus eterno, não criou o mundo por um novo ato de volição, e que sua ciência não admite nada que seja transitório. 
  Que respondeis, então, meus contraditores? Será isso falso? – Não, dizem eles. – Mas então? Será que erro afirmar que toda criatura que tem forma, que toda matéria susceptível de tê-la recebe seu ser somente daquele que é Bondade soberana, porque ele é Ente supremo? – Também não o negamos. – Então, que negais? Negais talvez que haja uma criatura sublime, unida por um casto amor ao Deus verdadeiro e eterno, sem lhe ser coeterna, que dele não se separa nem se desvia para as várias vicissitudes do tempo, mas, pelo contrário, repousa apenas em sua contemplação? Com efeito, te ama tanto quanto pedes, ó Deus, e mostras a ela tua face e a sacias, e ela jamais se afasta de ti, nem rumo a sim mesma. Ela é a morada de Deus, não
terrena, e nem formada de substância do céu material, habitáculo espiritual que participa de tua eternidade, imaculada por toda a eternidade. Tu a fundaste pelos séculos dos séculos; estabeleceste uma ordem, que não passará jamais. Contudo, essa lei não é coeterna, porque teve princípio, foi criada. 
  Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e coeterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz, também é luz;  a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. – Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela  foi criada
como espírito racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus – e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu que pertence ao Senhor? – Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. 
  Ela procede pois, de ti, nosso Deus, embora seja de essência absolutamente diversa da tua. Não encontramos nenhum tempo, não apenas antes dela, mas nela própria, porque ela é capaz de contemplar sempre tua face sem jamais se apartar de ti, sendo incólume às mudanças e às variações. Contudo, há nela certa mutabilidade que poderia torná-la tenebrosa e gélida, não fosse o grande amor que a une a ti e que brilha como meridiana luz e calor.
  Ó morada luminosa e pura! Amei tua beleza e o lugar onde mora a glória de meu Senhor, teu criador e possuidor. Por ti eu suspiro durante meu exílio! Peço àquele que te criou que me possua também em ti, pois também me criou. Errei como ovelha desgarrada, mas espero ser reconduzido a ti nos ombros de meu pastor, teu arquiteto.
  Que me respondeis a isto, meus contraditores, vós que, também considerais Moisés um servo piedoso de Deus, e seus livros como oráculos do Espírito Santo? Não será esta a casa de Deus que, sem lhe ser coeterna, é contudo, á sua maneira, eterna nos céus? Em vão buscais aí as vicissitudes do tempo, pois não as encontrareis, uma vez que ela transcende toda extensão, toda volubilidade do tempo, e sua felicidade é estar intimamente unida a Deus para sempre.
   – Assim é – dizem eles.
  Mas então, qual das verdades que meu coração proclamou diante de Deus, quando escutava em meu íntimo a voz que canta sal glória, podeis apontar como falsa? O que disse sobre matéria informe, na qual não podia haver ordem por carecer de forma? Mas onde não havia ordem não podia haver vicissitude de tempo; mas esse quase nada, enquanto não era o nada absoluto, provinha certamente daquele de onde nasce tudo o que, de algum modo, existe.
  – Tampouco negamos isto – dizem eles. 

CAPÍTULO XVI
Outros adversários das Escrituras
 

  Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e dêem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o pó e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração – Jerusalém, minha pátria e minha mãe – e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme
alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia.
  Àqueles que, sem negar essas verdades, respeitando tua Escritura Sagrada, obra do piedoso Moisés, e reconhecendo nela, conosco, a mais alta autoridade a seguir, e contudo nos opõem alguma objeções, dirijo estas palavras: “Tu, que és nosso Deus, serás árbitro entre minhas confissões e suas objeções”. 

CAPÍTULO XVII
Opiniões diversas sobre o céu e a terra


  Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e céu e a terra” – Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. – Que quis dizer então? – O que nós afirmamos – respondem – isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. – E que é que afirmais? – Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”.
  Quanto a esta terra invisível e informe, a este abismo de trevas, com que, durante seis dias, foram sucessivamente criadas e ordenadas todas as coisas visíveis que são conhecidas de todos, eles concordam comigo em que se pode entender com isso, sem erro, essa matéria informe de que falei.
  Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamada impropriamente de céu e terra, e portanto, que o universo criado por Deus na sabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém as coisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundem com Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam como morada eterna de Deus, quer mudando-se como a alma e o corpo do homem. Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a terra – em outraspalavras, a criação invisível e visível – mas uma e outra tendo recebido forma, foi designada por essas expressões de terra invisível e informe, e de trevas reinando sobre o abismo. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevas reinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos, imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria. 
  Poderia alguém afirmar, se quisesse: Esses termos céu e terra não significam realidades perfeitas e acabadas, lá onde lemos: No princípio Deus criou o céu e a terra – mas um esboço ainda informe, uma matéria passível de receber forma e servir para a criação; nela já existiam, como que um embrião, sem distinção de formas e de qualidades, essas criaturas, uma espiritual, e outra material que, ordenadas como estão agora, são chamadas de céu e terra. 
 
CAPÍTULO XVIII
Outras interpretações 


  Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões de palavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelo contrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque sua finalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiu toda a lei e os profetas. A mim, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus, luz de meus olhos na escuridão, que me importa que possa que possa encontrar sentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que me interessa, digo eu, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferente do meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamento do autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer o que sabemos ou o que consideramos falso. 
  Assim, nos esforços que fazemos para compreender, na Escritura Sagrada, a idéia que o escritor quis transmitir, onde está o mal se o leitor interpreta o sentido que tu, Luz de todas as inteligências sinceras, lhe fazes parecer verdadeiro, embora talvez não tenha sido este o pensamento do autor? E considerando que ele, pensando de outra maneira, só pensou verdades? 

CAPÍTULO XIX
A verdade


  A verdade, Senhor é que criaste o céu e a terra. A verdade é que o princípio é tua Sabedoria, em que criaste todas as coisas. É também verdade que este mundo visível se compõe de duas grandes partes, o céu e a terra, síntese de todas as realidades criadas. É ainda verdade que tudo o que é mutável sugere a nosso pensamento a idéia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se transformar. 
  A verdade é que um ser tão intimamente unido a uma forma mutável que, embora sujeito em si a mudanças, nunca se transforma, não está sujeito ao tempo. A verdade é que a massa sem forma, que é quase o nada, não pode conhecer as vicissitudes do tempo. A verdade é que a matéria que constitui uma coisa, se assim podemos falar, toma o nome dessa coisa, e portanto, podemos chamar de céu e de terra a essa massa informe com a qual foram feitos o céu e a terra. A verdade é que, de tudo o que recebeu forma, nada se aproxima mais do informe que a terra e o abismo. A verdade é que não apenas tudo o que foi criado e formado, mas ainda tudo o que possa ser criado se origina de ti, tu que és o autor de tudo que existe. A verdade é que tudo o que é formado a partir do informe, primeiro é informe, e depois recebe forma. 

CAPÍTULO XX
O princípio e suas interpretações
 

  Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que crêem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação:“No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é coeterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é coeterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas.
Um terceiro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é coeterno, a matéria informe das criaturas espirituais e corporais. Outro afirma: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, Deus criou a matéria informe das criaturas corporais, onde estavam ainda confundidos o céu e a terra, que agora distinguimos na massa do universo, com suas formas bem distintas e determinadas. 
  Um último diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, desde que começou a agir, Deus criou a matéria informe, onde estavam contidos confusamente em potencial o céu e a terra, que depois receberam forma própria, e que agora nos aparecem com tudo o que neles existe. 

CAPÍTULO XXI
A terra invisível


  O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entre essas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” – isto é, essa massa corpórea, que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem luz, das coisas corpóreas. 
  Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” – isto é, esse conjunto que chamamos de terra e céu era a matéria ainda informe e tenebrosa, da qual seriam tirados o céu e a terra corpóreos, com tudo o que nossos sentidos físicos neles percebem.
  Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” – isto e´, esse conjunto que chamamos de céu e de terra era a matéria ainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o céu inteligível, noutros termos, o céu do céu, e a terra, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o céu material, ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível.
  Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” – isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de céu e de terra, porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de terra invisível, caótica, abismo de trevas, é dela, que Deus criou o céu e a terra, isto é, a criatura espiritual e a corporal. 
  E outro ainda: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” – isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus criou o céu e a terra, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandes partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que nos são familiares. 

CAPÍTULO XXII
Objeções


  Mas a essas últimas opiniões alguém poderia opor a seguinte objeção: “Se não quereis dar o nome de céu e terra à matéria informe, havia então alguma coisa não criada por Deus, e de que ele se serviria para criar o céu e a terra. De fato, a Escritura, não diz que Deus criou essa matéria, a menos que consideremos que seja ela o que chama céu e terra quando diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – No que se segue: “A terra era invisível e informe” – ainda que a Escritura quisesse designar assim a matéria informe, nós apenas poderíamos entender com isso a matéria criada por Deus, conforme está escrito: “Criou o céu e a terra” – Aos que sustentam as duas últimas opiniões que acabamos de expor, ou de uma das duas, respondem assim: “Não negamos que esta matéria informe seja obra de Deus, de quem procede tudo o que é bom. De fato
afirmamos ser um bem superior o que é criado e plenamente formado, mas também dizemos que aquilo que é passível de ser criado e receber forma, embora seja um bem inferior, é ainda um bem. 
  A Escritura não menciona a criação por Deus dessa matéria informe, mas deixa também de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da criação dos querubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, das potestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deus evidentementecriou. Se as palavras: “Deus criou o céu e a terra” – compreendem todas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus? 
  Se pretendemos que sejam parte do que designa a palavra terra, como conceber por isso uma matéria informe, quando vemos as águas tão belas? E, por outro lado, por que está escrito que dessa matéria informe foi criado o firmamento, chamado de céu, quando não se faz menção da criação das águas? Pois as águas que vemos correr com harmoniosa beleza e não são nem informes, nem invisíveis! E se elas receberam sua beleza quando Deus disse: “Que se reúnam as águas que estão sob o firmamento! – e se nessa reunião receberam sua formação, que dizer das águas que estão acima do firmamento? Informes, elas não teriam merecido lugar tão honroso, nem é referido com que palavras foram formadas. 
  Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa que está acima de dúvidas para uma fé sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma doutrina racional ousa sustentar que essas águas são coeternas a Deus, pelo fato de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação , por que haveríamos de aceitar, à luz da verdade, que essa matéria informe, que a Escritura chama de terra invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feita por Deus do nada e por isso não é coeterna a Deus, embora a narração da Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada?

CAPÍTULO XXIII
A opinião de Agostinho


  Ouço e medito essas opiniões na medida  de meu fraco entendimento, que confesso a Deus, embora ele bem o conheça. Vejo que se podem originar duas espécies de opiniões sobre um testemunho de interprete fidedigno. Uma é reativa à veracidade das coisas, e outra à intenção daquele que as enuncia. Procurar conhecer a verdade sobre a criação é uma coisa; procurar saber o que Moisés, grande servo de tua lei, quis o que o leitor ou ouvinte entendessem de suas palavras, é outra.
  Quanto à primeira opinião, longe de mim todos que têm como verdades os seus erros! Quanto à segunda, longe de mim todos os que julgam falsidade o que Moisés disse. Possa eu unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentam de tua verdade na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras de teu Livro, procurando tua vontade nas intenções de teu servo, a cuja pena as revelaste. 

(Continua...)

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