LIVRO DÉCIMO-TERCEIRO
CAPÍTULO I
Invocação
Eu te invoco, ó meu Deus, minha misericórdia, que me criaste, e que não olvidaste aquele que te esqueceu. Chamo-te à minha alma, que preparas para te receber fazendo-te desejar por ela.
Não abandones ao que te invoca. Antes mesmo que eu te invocasse, já o tinhas prevenido. Muitas vezes me instaste, falando de mil modos diversos para que te ouvisse de longe, para que me convertesse e invocasse por ti que me chamavas.
Senhor, apagaste todos os meus delitos para não ter de punir o que fizeram minhas iníquas mãos, e te antecipaste a meus atos meritórios para me recompensar do que fizeram tuas mãos, que me criaram; de fato, existias antes de mim, e eu não era digno de receber de ti o ser.
Contudo, eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e do que me fizeste. Não tinhas necessidade de mim, eu não sou um bem que te possa ser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação te cansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meu culto seja para ti o que é a cultura para a terra, que sem ela ficaria estéril. Eu devo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo meu ser, capaz de felicidade.
CAPÍTULO II
A criação e a bondade de Deus
É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem, para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti, continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti o céu e a terra, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais e corpórea, que méritos tinham a teus olhos, que as criaste em tua Sabedoria? Que méritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quando tendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de natureza espiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; um corpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariam informes em teu Verbo, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade, comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas que merecimentos antecipados apresentaram a teus olhos, para existir mesmo informes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido?
E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica? Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda, não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e tenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu Verbo não fosse conduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não se transformasse em luz, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não é a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutável em sua sabedoria.
Mas seu bem reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a luz que adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante a um abismo de trevas. E também nós, que por nossa alma somos criaturas espirituais, nós nos afastamos de ti, nossa luz, nós fomos outrora trevas nesta vida e ainda padecemos por entre os restos de nossas trevas, até que nos tornamos tua justiça em teu Filho único, como as montanhas de Deus. Pois fomos objetos de teus juízos, que são profundos como abismos.
CAPÍTULO III
A luz
Sobre as palavras que proferiste no começo da criação: “Faça-se a luz, e a luz foi feita” – eu entendo que se adaptam com propriedade à criatura espiritual, que já era uma espécie de via apta a receber tua luz. Mas assim como ela não tinha merecido de ti ser essa espécie de vida apta a receber a luz, do mesmo modo, uma vez criada, ela como as demais formas não mereceu de ti essa iluminação. Porque sua informidade não te agradaria se não tivesse tornado luz, e isso não se contentando com existir, mas contemplando a luz que a iluminava, unindo-se intimamente a ela. Assim, ela devia a existência e o viver feliz apenas à tua graça; voltada, por uma escolha feliz, para o que não pode mudar nem para melhor, nem para pior. Voltou-se para ti, que és o único que existes, e só o teu ser é simples, pois o viver e a felicidade são para ti a mesma coisa, porque és tua própria felicidade.
CAPÍTULO IV
A bondade criadora
Que faltaria, pois, a esse bem, que és tu mesmo, se nenhuma dessas criaturas existisse, ou se tivesse permanecido informes? Tu as criaste, não por ter necessidade delas, nem para aumentar tua felicidade, mas levado pela plenitude de tua bondade, comunicando-lhes uma forma. Na tua perfeição, desagrada-te sua imperfeição; tu as aperfeiçoas para que elas te agradem, e não, com isso, aperfeiçoar a ti mesmo.
Com efeito, teu Espírito bom pairava sobre as águas, e não era por elas levado como se nelas descansasse. Se diz que teu Espírito nelas repousava; mas era ele que as fazia em si. Incorruptível, imutável, bastando-se a si mesma, tua vontade era suspensa acima da vida que tinhas criado, para a qual viver não é o mesmo que viver feliz, porque ela vive, mesmo quando flutua sobre as trevas. Esta vida carece ainda voltar-se para seu Criador, para viver cada vez mais próxima à fonte da vida, para ver a luz na Luz divina, e nela haurir perfeição, brilho e felicidade.
CAPÍTULO V
A trindade
Mas eis que me aparece o enigma da Trindade que és, meu Deus. Porque tu, Pai, criaste o céu e a terra no princípio de nossa Sabedoria, que é tua Sabedoria, nascida de ti, igual e coeterna, a ti, isto é, em teu Filho.
Já falei longamente do céu do céu, da terra invisível e informe e do abismo das trevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz, se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e a água inferior.
Pelo vocábulo “Deus” eu já entendia o Pai, que criou essas coisas; na palavra “princípio” eu entendia o Filho, em quem ele as criou. E, como eu acreditava na Trindade de meu Deus, eu a procurava em tuas santas palavras. E vi em tuas Escrituras que teu Espírito pairava sobre as águas. Eis tua Trindade, meu Deus, Pai, Filho, Espírito Santo, Criador de toda criatura!
CAPÍTULO VI
O espírito sobre as águas
Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa.
Era pois, necessário, mencionar primeiro o elemento sobre o qual ele pairava, já que convinha falar dele apenas dizendo que pairava. Mas por que não convinha apresentá-lo senão dizendo que pairava?
CAPÍTULO VII
As águas sem substância
Agora, quem o puder com a inteligência, siga a teu Apostolo, quando ele diz que tua caridade se difundiu em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado, quando nos instrui sobre as coisas espirituais e nos indica o caminho excelso da caridade, e dobra o joelho diante de ti por nossa causa, para que conheçamos a ciência altíssima da caridade de Cristo. E é porque era super eminente desde o princípio que pairava sobre as águas.
A quem e como falarei do peso da concupiscência, que nos arrasta para um abismo profundo, e da caridade que nos eleva, com a ajuda de teu Espírito, que pairava sobre as águas? A quem falar, como falar? Nós submergimos e emergimos, mas não em abismos materiais. A metáfora é a um tempo correta e muito inexata. São nossas paixões, nossos amores, a impureza de nosso espírito que nos arrasta para baixo sob o peso das preocupações. E é tua santidade que nos eleva pelo amor de tua paz, para que levantemos nossos corações para junto de ti, onde teu Espírito paira sobre as águas, e alcancemos o sublime repouso, quando nossa alma tiver atravessado essas águas que são sem substância.
CAPÍTULO VIII
À luz que ilumina as trevas
O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” – se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto que agora é luz no Senhor.
Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de tua luz, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tua criatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde encontra repouso – pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu, Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de luz, e nossas trevas serão como o sol do meio-dia.
Dá-te a mim, meu Deus, entrega-te a mim. Eu te amo. Se meu amor é pouco, faze que eu te ame com mais força. Não posso medir, não posso saber o que falta a meu amor para que seja suficiente para que minha vida corra para teus braços, e dali não saia antes de se esconder no segredo do teu rosto.
Se isto reconheço: tudo me corre mal onde tu não estás, não somente à minha volta, mas até em mim mesmo; e toda a abundância que não é meu Deus, para não passa de indigência.
CAPÍTULO IX
O amor de Deus
Mas o Pai e o Filho, não pairavam também sobre as águas? Se os imaginamos como um corpo pairando no espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo ao Espírito Santo. Se porém entendermos por isso a excelência imutável da divindade acima de tudo o que é transitório, então o Pai, o Filho e o Espírito Santo pairavam igualmente sobre as águas. E por que só se menciona o Espírito Santo? Por que se menciona apenas a seu respeito um lugar onde estava, ele que, no entanto, não ocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em teu dom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata, e teu Espírito levanta nossa humildade para longe das portas da morte. A paz, para nós, reside na tua boa vontade. Os corpos tendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio; mas um peso não tende só para baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O fogo sobe, a pedra cai. Cada um é movido por seu peso, e tende para seu justo lugar. O óleo, lançado à água, flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos são impelidos por seu peso a procurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que não estão em seu lugar se agitam; mas quando o encontram, repousam.
Meu peso é meu amor; para onde quer que eu vá, é ele quem me leva. Teu dom nos inflama e nos eleva; ardemos e partimos. Subimos os degraus do coração e cantamos o cântico gradual. É o teu fogo, o teu fogo benfazejo que nos consome e nos eleva, enquanto subimos para a paz de Jerusalém celeste. Regozijei-me ao ouvir essas palavras: “Vamos para a casa do Senhor!” – Ali nos há de instalar tua boa vontade, e não desejaremos nada mais do que permanecer ali eternamente.
CAPÍTULO X
Os dons de Deus
Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é se, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a tivesse erguido com este apelo: “Faça- te a luz” – e a luz se fez. Em nós, o tempo em que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessa criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a transformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que também fosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o compreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todo homem que vem a este mundo?
CAPÍTULO XI
O homem e a trindade
Quem é capaz de compreender a Trindade onipotente? E quem não fala dela, ainda que a não compreenda? Rara é a pessoa que, falando dela, sabe o que diz. Discute-se, disputa-se, mas ninguém sem paz interior contempla esta visão.
Quisera que os homens refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos. Elas diferem muito da Trindade, e eu só as proponho para que as usem como exercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longe deste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço, quero e vejo. Eu sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, e quero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida é indivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência; veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos. O homem está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda. Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso ter compreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos da alma, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente. Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses três atributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ou ambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples e múltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhece e se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quem conceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem, temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo?
CAPÍTULO XII
A criação e a Igreja
Ó minha fé, vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! – Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo; em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o homem por causa de sua iniqüidade, e teus justos juízos são como abismos profundos.
Mas porque teu Espírito pairava sobre as águas, tua misericórdia não abandonou nossa miséria, e disseste: “Faça-se a luz”. Fazei penitencia, porque está próximo o reino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a luz! E porque tínhamos a alma conturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essa montanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós. Nossas trevas te desagradaram, nós nos voltamos para ti, e a luz se fez. E eis que outrora fomos trevas e que agora somos luz no Senhor.
CAPÍTULO XIII
Nós e a luz
Contudo, somos luz apenas pela fé, e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” – Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no espírito...” E ainda: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?” – Mas não é mais sua voz que fala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu Espírito do alto do céu por intermédio de Jesus, que subiu ao céu e abriu as cataratas de seus dons, para que a torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigo do esposo, ele que já possui as primícias do Espírito, mas que ainda geme, porque está à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porque ele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo do esposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e não com sua própria voz, que ele chama pelo outro abismo, objeto de seu zelo e de seus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia que as inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teu Esposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa luz, quando o virmos tal como ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão de meus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está o teu Deus?
CAPÍTULO XIV
Esperança
Também eu pergunto: “Onde estás, meu Deus? Onde estás?” – Respiro um pouco de ti quando minha alma se expande dentro de mim mesmo em gritos de exaltação e de louvor, verdadeiro canto de festa. – Mas ela ainda está triste, porque torna a cair e a ser abismo, ou melhor, porque sente que ainda é abismo.
Minha fé, que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que está triste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é uma lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando éramos trevas”. – Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo morto pelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor. Desde a manhã estarei diante deles, e ocontemplarei, e o louvarei eternamente. Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus, que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós, misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas.
Por isso, em nossa peregrinação, recebemos dele o penhor de já sermos luz; ele já nos salvou pela esperança e, de filhos da noite e das trevas que éramos, ele fez filhos da luz e do dia. Na incerteza da ciência humana, só tu és capaz de distinguir entre uns e outros, porque põe nossos corações à prova e chamas à luz dia e às trevas noite. Quem, senão tu, sabe nos distinguir? E que temos nós que não o tenhamos recebido de ti? Nós, feitos vasos de honra, fomos feitos da mesma argila que serviu para fazer os vasos de ignomínia.
CAPÍTULO XV
Símbolos
E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autoridade, da tua divina Escritura? O céu se dobrará como um livro, e agora ele se estende sobre nós como um pergaminho. Mais sublime é a autoridade de que goza tua divina Escritura depois que morreram aqueles que cujo intermédio no-las comunicaste. E sabes, Senhor, sabes como cobriste de peles os homens, quando o pecado os tornou mortais. Por isso estendeste como um pergaminho o firmamento de teu Livro, e tuas palavras em tudo concordes, que dispuseste sobre nós pelo ministério de homens mortais. Por sua morte, a autoridade de tuas palavras, por eles divulgadas, desdobra sua força sobre tudo o que existe em baixo; ela não se erguia tão alto enquanto eles viviam. É que ainda não tinhas desenrolado o céu como um pergaminho, nem tinhas ainda
difundido a glória de sua morte por toda parte.
Senhor, faze que contemplemos os céus, obra de tuas mãos! Dissipa de nossos olhares as nuvens com que os tens velado. Neles está teu testemunho, dando sabedoria aos humildes. Meu Deus completa teu louvor pela boca dos meninos que ainda mamam! Não conhecemos outros livros que assim destruam a soberba, e que abatam tão bem o inimigo que resiste a toda reconciliação contigo, e defende seus pecados. Não, Senhor, não conheci outras palavras tão puras, que tantos me persuadissem à confissão, e sujeitassem minha mente a teu jugo, convidando-me a te servir tão desinteressadamente. Oxalá eu as compreenda, bondoso Pai! Concede esta graça à minha submissão, pois as firmaste para os corações submissos.
Há outras águas, creio eu, sobre esse firmamento: águas imortais e isentas da corrupção terrena. Que elas louvem teu nome! Que os povos celestes de teus anjos te bendigam, pois não têm necessidade de olhar esse firmamento, nem de ler para aprenderem a conhecer tua palavra! Eles sempre vêem tua face, e ali lêem, sem as sílabas transitórias, o objeto da tua vontade eterna. Lêem, escolhem, amam. Lêem perpetuamente, e o que eles lêem jamais fenece; escolhendo e amando, lêem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha, jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra, para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo, tu criador do tempo. Tua misericórdia está no céu, e tua verdade se eleva até às nuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavra passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o fim dos séculos. O céu e a terra passarão, mas tuas palavras não passarão. O pergaminho será enrolado, e a erva sobre o qual se estendia passará com seu esplendor, mas a tua palavra permanecerá eternamente. Agora ela nos aparece no enigma das nuvens e através do espelho dos céus, e não como é na realidade, porque ainda não se manifestou o que havemos de ser, apesar de amados pelo teu filho. Ele nos olhou através da teia da sua carne e nos acariciou, e nos inflamou de amor, e corremos atrás de sua fragrância. Mas quando ele aparecer seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é. Vê-lo tal qual é será nossa felicidade, mas nós ainda não o podemos contemplar.
CAPÍTULO XVI
Deus, fonte de luz
Assim como só tu existes plenamente, só tu possuis o conhecimento absoluto: imutável, com efeito, és em teu ser, imutável em teu saber, imutável na tua vontade. Tua essência sabe e quer imutavelmente, tua ciência é e quer imutavelmente, tua vontade é e sabe imutavelmente. Não é justo a teus olhos que a luz imutável seja conhecida pelo ser mutável, que ela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha alma é para ti como terra sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se pode saciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tua luz é que veremos a luz.
CAPÍTULO XVII
As águas amargas
Quem reuniu em um só mar as águas amargas? Seu objetivo é o mesmo: uma felicidade temporal, terrena, alvo de todas as suas ações a despeito da grande diversidade de cuidados que as agitam. Quem, senão tu, Senhor, poderia dizer a essas águas que se reunissem em um só lugar, e à terra enxuta que aparecesse, sedenta de ti? O mar é teu, pois tu o fizeste, e tuas mãos formaram a terra enxuta. Não é a amargura das vontades mas a reunião das águas que chamamos de mar. Também refreias as paixões más das almas e fixas os limites até onde permites que avancem as águas, para que suas ondas se quebrem sobre si mesmas; e assim, crias o mar, submetido a teu poder universal.
As almas sedentas de ti, que aparecem a teu olhos separadas do mar com outra finalidade, tu as regas com um orvalho vivo, misterioso e doce, para que a terra produza seu fruto. E a terra o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa alma germina obras de misericórdia, de acordo com sua condição: ela ama o próximo e vai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente da compaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossa fraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, a socorre-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmas necessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas de sementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos, símbolos das obras que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo.
CAPÍTULO XVIII
Meditação
Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura.
E aí, de fato, que nos ensinas a distinguir entre as realidades inteligíveis e as sensíveis, entre as almas espirituais e as almas que se entregam aos sentidos, como entre o dia e a noite. Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras antes da criação do firmamento, a distinguir entre a luz e as trevas. Também tuas criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que tua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a terra, separam o dia da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram, e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no fim dos séculos.
Assim ouves as preces do justo e abençoas seus anos. Mas continuas eternamente o mesmo, e em teus anos, que não terão fim, preparas um celeiro para os anos que passam.
Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do céu no tempo oportuno; a um, teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu deleite na luz de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo Espírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a fé; a outro o poder de curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o discernimento dos espíritos, `aquele o dom das línguas. E todos esses dons são como estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seus dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum.
Mas a palavra de ciência em que estão encerradas todos os mistérios, que variam com o tempo, como varia a lua, e os outros dons que mencionei ao compará-los com as estrelas, diferem a tal ponto desse brilho de sabedoria de que goza o raiar do dia, que não passam de crepúsculo. Contudo, teus dons são necessários àqueles homens, a quem teu prudente servidor não pôde dirigir como a espirituais, mas como a carnais, ele que pregou a Sabedoria entre os perfeitos.
Quanto ao homem carnal, semelhante a um menino em Cristo, que só se alimenta de leite, que não se julgue abandonado em sua noite, que saiba contentar-se com a luz da lua e das estrelas, até que possa tomar alimento sólido e olhar para o sol. Eis o que nos ensinas em tua sabedoria, nosso Deus, em teu livro, que é teu firmamento, para que distingamos todas as coisas em contemplação admirável, embora ainda estejamos sob a lei dos sinais, dos tempos, dos dias e dos anos.
(Continua...)
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