No recente segundo volume sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI sustenta que é um erro culpar todo o povo judeu por sua morte. Aqui, o autor expõe as causas desse lamentável erro, e a interpretação do texto de Mateus. Segundo o Evangelho de Mateus, durante o processo de Jesus os judeus pronunciaram uma frase que, sem querer, marcou a história e o destino do povo hebreu em sua relação com os cristãos: “Que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!” (Mt 27,25). Este grito foi interpretado, no decorrer dos séculos, como uma maldição que o povo judeu jogou sobre si mesmo, assumindo a responsabilidade pela morte de Jesus.Desde então muitos citam esse versículo como prova de que Deus rejeitou Israel; e pior ainda, serviu para justificar as atrocidades e perseguições cometidas contra esse povo, como se esses sofrimentos fossem um castigo divino. Hutton Gibson, pai do ator Mel Gibson, em seu livro O inimigo ainda está aqui (2003) escreveu: “Quando Pôncio Pilatos negou a aceitar a responsabilidade pela morte de Jesus, a culpa caiu nos judeus presentes; foi um crime superior ao pecado original e ao da torre de Babel; por isso, o castigo caiu sobre as futuras gerações judias, que sofreram muitos desastres como o holocausto, pela maldição que eles lançaram sobre suas cabeças”. Com razão o teólogo inglês G. C. Montefiore chegou a escrever: “Essa é uma das frases responsáveis por oceanos de sangue humano, e por incessantes rios de miséria e desolação”. Mas por que ficou registrada no Evangelho? A ÁGUA LIBERADORA O episódio aparece somente em São Mateus. Segundo ele, quando as autoridades judias levaram Jesus perante Pilatos para que fosse julgado, o governador romano percebeu que o entregaram por inveja, e tentou liberá-lo. Para isso recorreu a um ardil. Pensou que se Jesus enfrentasse um famoso preso chamado Barrabás, para que o povo escolhesse aquele que deveria ficar em liberdade, o povo optaria por Jesus. Mas se equivocou. Os sumos sacerdotes e dirigentes judeus convenceram a multidão a pedir a liberdade do delinquente (Mt 27). Pilatos, vendo frustrado seu estratagema, disse aos judeus que não podia condenar Jesus à morte, porque não encontrava nele nenhum delito. Esta frase já teria que ter servido para acabar com o julgamento: o juiz já se pronunciara. Mas a nova tentativa também não funcionou porque as pessoas, instigadas pelos sumos sacerdotes, começaram a ficar alteradas e a gritar: “ Crucifica-o, crucifica-o” (Mt 27,22-23). Pilatos ficou com medo da turba emocionalmente comprometida, e certo de que nada que fizesse salvaria Jesus, mas pelo contrário sua negativa a condená-lo provocaria maiores distúrbios, realizou um último gesto simbólico. Diante de todos lavou as mãos dizendo: “ Eu não sou responsável pelo sangue deste homem; este é um problema vosso” (Mt 27,24). SÓ PARA MÃO JUDIAS É muito difícil acreditar que Pilatos tenha realizado este gesto. Efetivamente, o lavatório das mãos como expressão de inocência pública é um costume judeu, estabelecido por Moisés, e ordenado no Antigo Testamento. Segundo a mentalidade semita, o sangue derramado de uma pessoa inocente tinha a propriedade de manchar não só o culpado, mas todos aqueles que cruzassem com o morto, e inclusive todo o povoado onde fora cometido o crime. Por isso, Moisés ordenou que quando numa cidade descobrissem um cadáver e não fosse possível identificar o malfeitor, os dirigentes deveriam reunir-se em um rio e lavar as mãos, dizendo: “Nossas mãos não derramaram este sangue”. Depois deveriam orar a Deus: “Que este sangue inocente não caia no meio de seu povo Israel”. Assim, os dirigentes e o povo ficavam livres da culpa (Dt 21,1-9). Na Bíblia várias vezes se fala da lavagem de mãos. Lemos nos Salmos: “Lavo minhas mãos em sinal de inocência, dando voltas ao redor de seu altar” (Sal 26,6). E também: “Em vão mantive puro meu coração, lavando minhas mãos na inocência” (Sal 73,13). Que Pôncio Pilatos, sendo romano, tivesse realizado um ritual próprio da cultura hebraica resulta inverossímil. Por isso, muitos autores afirmam que a cena é uma criação do evangelista Mateus que, ao escrever aos leitores de origem judaica, utiliza essa imagem para fazê-los compreender o que o governador quis dizer, ao não querer condenar Jesus. A AMEAÇA DE JEREMIAS Como resposta a sua lavagem de mãos, Mateus diz que o povo judeu gritou: “Que seu sangue (de Jesus) caia sobre nós e sobre nossos filhos!” (Mt 27,24- 25). Esta é a frase que para muitos resulta desconcertante. Na realidade é uma fórmula legal frequente no Antigo Testamento, indicando a pessoa que deveria assumir a responsabilidade por um delito, e sofrer o castigo correspondente, que era a morte. O livro do Levítico diz: “Se alguém amaldiçoar seu pai ou sua mãe certamente será morto; que seu sangue caia sobre ele” (Lv 20,9); “Quem se deitar com a mulher de seu pai morrerá; seu sangue cairá sobre ele” (Lv 20,11); “Se um homem se deitar com outro homem, os dois morrerão; seu sangue cairá sobre eles” (Lv 20,13). Quando Davi se encontrou com o soldado que matara o rei Saul, disse-lhe: “Por ter matado ao ungido de Javé, seu sangue cairá sobre sua cabeça” (1 Sm 2,16). E quando Joabe, general do exército de Davi, matou o general Abner sem consentimento do rei, Davi exclamou: “O sangue de Abner cairá sobre a cabeça de Joabe e sua família” (2 Sm 3,29).O profeta Jeremias também disse às autoridades de Jerusalém: “Saibam que se me matarem, sangue inocente cairá sobre os senhores e sobre toda a cidade” (Jr 26,15). O sentido da frase fica mais claro no evangelho de Mateus. Significa que a multidão presente no julgamento de Jesus, assumiu a responsabilidade de sua execução. NENHUM HEBREU FICOU FORA Mas a cena tem detalhes curiosos. Em primeiro lugar, o povo judeu não emprega a fórmula como corresponde. Quando alguém na Bíblia invocava o castigo de sangue, fazia-o sobre a cabeça de outro, de um terceiro, nunca sobre a própria. Em compensação, em Mateus o povo judeu o aplica sobre si, como se quisesse incriminar-se, autocastigando-se, em vez de livrarem-se dos efeitos do sangue, que era o sentido da fórmula. Em segundo lugar, resulta interessante que o grito seja lançado por “todo o povo”. Até esse momento Mateus vinha relatando que só “uma multidão” presenciava o julgamento, isto é, um grupo limitado de pessoas. A “multidão” apresenta-se perante o governador (Mt 27,15), pede a libertação de Barrabás (Mt 27,20-21), exige a crucificação de Jesus (Mt 27,22), e presencia a lavagem de mãos (Mt 27,24). Mas de repente, Mateus parece esquecer-se deste grupo, e diz que é todo o povo quem agora reclama sobre si o sangue de Jesus. Trata-se de uma mudança intencionada. Em Mateus, a expressão “o povo” sempre alude a Israel como raça, etnia, nação global. Por isso ao substituir “a multidão” por “ povo” estava dizendo a seus leitores que o sangue de Jesus, invocado nesse dia, não caiu unicamente sobre os assistentes ao processo, senão sobre toda a nação judia e sobre as gerações futuras. BOM PRETEXTO PARA ODIAR Que significado tem esta cena? Sempre foi interpretada no sentido de que todos os judeus, de todos os tempos são culpáveis da morte de Jesus. Um dos primeiros em defender essa postura foi Orígenes (séc. III), que dizia que o sangue de Jesus “caiu sobre todas as gerações posteriores de judeus, até o final dos tempos”. Tiveram a mesma opinião: Melito de Sardes (s.II), Santo Agostinho (séc.IV), São Jerônimo (séc.IV), São João Crisóstomo (séc.IV), Teofilato (séc.IX), Tomás de Aquino (séc.XIII) e Calvino. Por sua vez Lutero afirmou que a miséria na qual viviam os judeus em sua época, e sua posterior condenação eterna, devia-se a que recusaram o Filho de Deus. Certamente houve outras interpretações mais mitigadas, mas em geral foi essa a que primou, e fez com que muitos cristãos desenvolvessem uma certa antipatia pelo povo hebreu. Alguns estudiosos, para sairem do aperto, sugerem que se a lavagem de mãos não é considerada histórica, a resposta dos judeus também não deve ser considera como tal; portanto, essas palavras carecem de importância. Mas isso não resolve o problema de fundo: por que Mateus, inspirado por Deus, conservou essa frase nos lábios dos judeus? Quis aludir a alguma espécie de castigo? O SERMÃO QUE O COMPLICA Para piorar as coisas Mateus conta que, em seu último discurso em público, Jesus recordou aos judeus que eles derramaram muito sangue inocente ao longo da história, “desde o justo Abel até Zacarias” (Mt 23,33-36). Por que Jesus nomeia estes dois personagens? É que Abel era o filho de Adão e Eva, morto por seu irmão Caim. E Zacarias era um famoso sacerdote de Jerusalém, do século IX a.C., que por ter-se animado a denunciar a imoralidade na qual viviam os israelitas, foi apedrejado até a morte no pátio do Templo. Zacarias morreu dizendo: “Que Javé veja isto e lhes peça contas” (2 Cro 24,20-22). Jesus os mencionou de propósito porque Abel é o primeiro inocente assassinado da Bíblia (Gn 4,8), e Zacarias o último. O que Jesus quis dizer nessa oportunidade é que toda a história do povo judeu, desde o primeiro ao último livro da Bíblia, estava manchada de crimes e mortes inocentes. E esse sangue clamava ao céu (Gn 4,10), exigindo um justo castigo. Por isso concluiu aquele sermão com uma frase inquietante: “Asseguro-lhes que tudo isso recairá sobre esta geração” (Mt 23,36).A morte de Jesus e a maldição dos judeus Toda a história do povo judeu, desde o primeiro ao último livro da Bíblia, estava manchada de crimes e mortes inocentes. E esse sangue clamava ao céu (Gn 4,10), exigindo um justo castigo. Ariel Álvarez Valdés http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=17755&cod_canal=46 |
Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
segunda-feira, 16 de maio de 2011
A morte de Jesus e a maldição dos judeus
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário