sexta-feira, 3 de junho de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 42

CAPÍTULO  VI
SINAIS QUE SIGNIFICAM A SI MESMOS


AGOSTINHO 
  – Vamos em frente, e diga-me se te parece que, assim como concordamos que todas as palavras são nomes, e todos os nomes, palavras, também te parece que todos os nomes são vocábulos e todos os vocábulos nomes.

ADEODATO 
  – Não encontro entre eles outra diferença senão a do som das sílabas.
AGOSTINHO 
  – Por enquanto, aceito, embora não faltem os que vêem entre eles diferença de significado, o que não vem ao caso discutirmos agora. Porém, com certeza compreendes que chegamos àqueles sinais que tem significado recíproco, sem outra diferença que a do som, e àqueles que significam a si mesmos junto com as demais partes da oração. 
ADEODATO 
  – Por ora não entendo.
AGOSTINHO 
  – Não compreendes então que “nome” significa “vocábulo” e “vocábulo” “nome”, e que assim – além do seu som – não há outra diferença entre eles quanto ao nome em geral; mas que, quanto a ser nome em particular, trata-se de uma das oitos partes da oração, sem que naturalmente inclua as outras sete.
ADEODATO 
 – Compreendo.
AGOSTINHO 
– Contudo, era isso mesmo que estava dizendo quando afirmava que vocábulo e nome significam-se reciprocamente. 
ADEODATO 
  – Entendo, mas o que querias dizer com as palavras “significam a si mesmos junto com as demais partes da oração”? 
AGOSTINHO 
  – Acaso a discussão anterior não nos provou que todas as partes da oração podem chamar-se tanto nomes como vocábulos, isto é, podem ser significadas pelos termos de “nome” e de “vocábulo”?
ADEODATO 
 – Certamente.
AGOSTINHO 
  – Se te indagasse como chamas o nome em si mesmo, isto é, o som expresso por estas duas sílabas, seria correto me responder “nome”?
ADEODATO 
  – Seria correto.
AGOSTINHO 
  – E significará a si mesmo, talvez, o sinal com quatro sílabas, quando proferimos “coniunctio”  (conjunção)? Não; porque este termo não pode ser incluído entre as coisas que significa.
ADEODATO 
  – Compreendo perfeitamente.
AGOSTINHO 
  – E foi isso que antes afirmamos: que o nome significa a si mesmo tanto quanto os outros nomes que significa; o que podes chamar também do “vocábulo”.
ADEODATO 
  – Sim, está fácil; agora porém me ocorre que o termo “nome” pode ser tomado em sentido geral ou particular, enquanto “vocábulo”, ao contrário, não é uma das oito partes da oração; parece-me, pois, que os dois termos são diferentes não só pelo som, mas também por isso.
AGOSTINHO 
 – Acreditas que “nomem” (nome) e “ónoma” (nome) tenham algo mais diferente que o som, que também distingue a língua grega da latina?
ADEODATO 
  – Neste caso, sinceramente, nada mais encontro.
AGOSTINHO 
  – Chegamos, então, àqueles sinais que, além de significantes a si mesmo, com inteira reciprocidade um significa o outro, ou seja, os seus significados mutuamente se significam. Assim, o que este significa também aquele significa e vice-versa, tendo por diferença entre si apenas o som; este quarto caso, nós o encontramos agora: os três anteriores referem-se a “nome” e “palavra”.
ADEODATO 
  – Chegamos. 

 CAPÍTULO VII 
RESUMO DOS CAPÍTULOS ANTERIORES


AGOSTINHO 
  – Desejaria que fizesses um resumo do que apuramos em nossa discussão.
ADEODATO   
  – Farei o que puder. Antes de mais nada, lembro que por certo tempo indagamos da razão por que se fala, e achamos que se fala para ensinar ou para recordar. Pois, mesmo quando interrogamos, nada mais pretendemos do que fazer saber ao interlocutor o que dele queremos ouvir. Depois vimos que, ao cantar, o som  que emitimos apenas por prazer não pertence propriamente à locução; e quando na oração nos dirigimos a Deus, a quem não se pode ensinar ou recordar algo, o valor das palavras está em admoestar a nós mesmos ou, mediante nós, admoestar e instruir aos outros. A seguir, após teres demonstrado o bastante que as palavras nada mais são do que sinais e que não pode existir sinal que não tenha significado, propuseste-me um verso, de cujas palavras busquei explicar o significado, uma por uma, o verso era: “Si nihil
ex tanta superis placet urbe relinqui”. Sua segunda palavra (nihil), apesar de familiar a todos, não conseguimos, todavia, encontrar o que significava, pois parecia a mim que nós não a empregamos inutilmente durante a fala, mas para transmitir algo a nosso ouvinte; isto é, parecia-me que esta palavra indicasse, talvez, o estado da mente quando acha que não existe a coisa que procura ou que julga tê-la achado; e tu evitaste com uma brincadeira aprofundar não sei como a questão, adiando para outra ocasião o esclarecimento. Não julgues, porém, que eu esqueça dessa tua dívida comigo. Depois, quando eu buscava explicar a terceira palavra do verso, me convidaste a indicar não outra palavra equivalente mas, pelo contrário, a mostrar a própria coisa que a palavra significa. Respondi, em nossa conversação, que isto não seria possível, e consideramos aquelas coisas que podem ser apontadas aos nossos interlocutores. Pensava eu que isso fosse possível com todas as coisas corpóreas, mas depois achamos que o seria apenas com as visíveis. Daí passamos, não lembro como, aos surdos e aos histriões, observando que exprimem pelo gesto sem voz, não só as coisas visíveis, mas muitas outras e quase todas as que expressamos com palavras, e conviemos que os gestos também são sinais. Voltamos pois a indagar se seria possível indicar, sem empregar  sinal algum, as mesmas coisas que indicamos por sinais, sendo aquela parede, aquela cor e tudo o que é visível e que é indicado pelo gesto, devemos convir que é sempre indicado por certo sinal. Nisso eu me enganei e respondi que não poderíamos achar nada disso, e, todavia, ficou assente entre nós que seria possível mostrar, sem sinais, aquilo que nós não fazemos no momento da pergunta, mas que podemos fazer depois de interrogados; a locução, porém, não se enquadra nisto, pois quando falamos, se alguém nos perguntar o que é falar, demonstra-se facilmente por si mesmo: falando. – Com isso ficou estabelecido que: ou se mostram sinais com sinais ou, com sinais, indicam-se coisas que o não são; ou então, sem sinais podemos mostrar as coisas que podemos fazer depois de interrogados. Desses três casos, consideramos e discutimos com mais detalhes o primeiro. Por esta discussão, ficou esclarecido que existem sinais que não podem, por seu turno, receber significado pelos sinais que eles significam, como ocorre no caso do quadrissílabo “coniunctio” (conjunção); ao passo que existem outros que o podem, como no caso de “sinal”, e entendemos que significa também “palavra”, pois sinal e palavra são dois sinais e duas palavras (sinal-palavra, palavra-sinal). Neste caso em que os sinais tem significado mútuo, demonstramos também que uns não têm o mesmo valor, outros o têm igual, e outros finalmente são idênticos. Assim, quando pronunciamos o dissílabo “sinal”, certamente nos referimos a todos os sinais que podem indicar ou significar uma coisa; mas, se dizemos “palavra”, esta não se refere a todos os sinais, mas apenas aos que se pronunciam articulando a voz. Donde ficou claro que embora
“palavra” seja indicada com um sinal, e “sinal” (signun) com “palavra” (verbum); isto é; estas duas sílabas por aquelas e aquelas por estas – todavia, “sinal” vale mais que “palavra”, porque aquelas duas sílabas (sinal) têm sentido mais amplo que estas (palavras). Porém “palavra” em geral e “nome” em geral, têm o mesmo valor. Pelo raciocínio, vimos que todas as partes da oração também são nomes, sendo que a todas podemos substituir pelo pronome e de todas podemos dizer que “nomeiam” algo, e todas elas formam, se lhe acrescentarmos o verbo, uma proposição ou um enunciado completo. Mas, apesar de “nome” e “palavra” terem o mesmo valor, pois tudo o que é “palavra” é “nome”, entretanto não são idênticos. Observamos, em nossa discussão, com muita probabilidade, que a razão por que se diz “verba” (palavras) difere da outra por que se diz “nomina” (nomes). “Verba” diz respeito à percussão  (verberatio) do ouvido, e “nomina” ao conhecimento  (commemoratio: notio, noscere) do espírito; por isso, é correto dizer qual é o “nome” desta coisa desejando gravá-la na memória, e não usamos, ao contrário, “palavra”. Entre os sinais que não têm o mesmo valor, mas são completamente idênticos, diferenciando-se só pelo som das letras, encontramos “nomen” (nome) e ónoma (nome).
  Quanto a esse gênero de sinais com significado recíproco, entendi que não encontramos nenhum sinal que, além de significar os outros, não significasse também a si mesmo.
  Eis tudo o que pude recordar. Tu, que, nesta discussão, apenas falaste sabendo e tendo a certeza, poderás avaliar se meu resumo está correto e ordenado. 

CAPÍTULO  VIII
NÃO SE DISCUTEM INUTILMENTE ESTAS QUESTÕES. ASSIM, PARA RESPONDER ÀQUELE QUE INTERROGA,  DEVEMOS DIRIGIR A MENTE,  DEPOIS DE PERCEBER OS SINAIS,  ÀS COISAS QUE ESTES SIGNIFICAM


AGOSTINHO 
  – Certamente resumiste com acerto tudo o que eu queria, e devo admitir que estas argumentações me parecem mais claras agora do que quando, disputando em nossas indagações, as tirávamos de não sei que esconderijos. Contudo, aonde quero te levar por meio de tantas voltas e rodeios é difícil dizer neste momento. Talvez julgues que foi mero divertimento, ou que nos afastamos das coisas serias com questões menores, buscando nisso, quando muito, uma utilidade por pequena e medíocre que seja; ora, se estas discussões tivessem que gerar algo de grande ou importante, seria bom que o soubesses agora, ou, ao menos, ter disto um vislumbre. Todavia, eu gostaria que, antes de mais nada, não julgasses eu ter feito contigo uma brincadeira inoportuna; embora às vezes usando de tom jocoso, a minha brincadeira jamais deverá ser tida como infantil, pois eu nunca visei bens pequenos ou medíocres. No entanto, se te dissesse que era precisamente a eterna bem-aventurança para onde, com a ajuda de Deus, isto é, da própria verdade, pretendia conduzir-te com passos pequenos, ajustados ao nosso pé vacilante, recearia parecer ridículo por ter começado com um caminho tão longo, não em consideração às próprias coisas que são significativas, mas aos sinais. Espero que me perdoes, portanto, se quis fazer contigo uma espécie de prelúdio, não para brincar, e sim para treinar a agilidade e a agudeza da mente, que nos facultarão mais tarde não só suportar, mas também amar a luz e o calor daquela região da vida bem-aventurada. 
ADEODATO 
  – Continua por esta senda, pois eu não julgaria desprezível ou de pouco valor qualquer coisa que digas ou faças. 
AGOSTINHO 
  – Então, continuemos! Retomemos aquela parte da nossa discussão sobre os sinais que não significam outros sinais, aquelas coisas que chamamos “significáveis”. Em primeiro lugar, dize-me se “homem é homem”.
ADEODATO 
  – Agora, na verdade, não sei se estás brincando.
AGOSTINHO 
 – Porquê?
ADEODATO 
  – Porque me estás perguntando se o “homem” é diferente de “homem”.
AGOSTINHO 
  – E julgarias também que estou a zombar de ti se te perguntasse se a primeira sílaba deste nome é mesmo “ho” e a segunda “mem”? 
ADEODATO 
 – Certamente.
AGOSTINHO 
  – Mas negarás que estas duas sílabas dêem “homem”?
ADEODATO 
  – E como negar? 
AGOSTINHO 
  – Pergunto, pois, se és o mesmo que estas duas sílabas unidas.
ADEODATO 
  – De maneira alguma. Porém percebo agora onde queres chegar. 
AGOSTINHO 
  – Fala, então, uma vez que não crês tratar-se de zombaria.
ADEODATO 
  – Julgas, talvez, que se possa concluir que não sou “homem”?
AGOSTINHO 
  – Mas diga-me, não pensas o mesmo, já que concordaste ser verdade tudo o que foi dito e de onde se tira essa conclusão? 
ADEODATO 
  – Não vou manifestar meu pensamento antes de ouvir de ti qual a intenção da pergunta “se é homem é homem”; te referias às duas sílabas ou ao seu significado?
AGOSTINHO 
  – Antes, responde-me qual o sentido em que tomaste a minha pergunta: pois, se é ambígua, devias precaver-te e não responder antes de ter certeza quanto ao sentido de minha pergunta.
ADEODATO 
  – E porque me seria obstáculo esta ambigüidade, uma vez que respondi num sentindo e no outro? Naturalmente que homem é homem, e estas duas sílabas nada mais são do que duas sílabas, e o que elas significam nada mais é do que é (homem).
AGOSTINHO 
  – Brilhante a tua resposta: mas por que tomaste nos dois sentidos apenas (o que se diz) “homem” e não as demais coisas de que falamos?
ADEODATO 
  – E de que modo poderia me persuadir de que não tomei assim das outras?
AGOSTINHO 
  – Se tivesses tomado apenas a minha primeira pergunta só no aspecto do som das sílabas, não me terias respondido nada, pois até poderia parecer-te que nada houvesse indagado; mas, como fiz repercutir no teu ouvido três palavras, uma das quais repeti no meio, dizendo: “utrum homo homo sit”  (se homem é homem), tu tomaste a primeira e a segunda palavra não conforme os mesmos sinais, mas pelo que elas significam, coisa evidenciada pelo simples fato de que te ocorreu de imediato dever responder à minha pergunta com rapidez e desembaraço. 
ADEODATO 
  – Dizes a verdade.
AGOSTINHO 
  – Qual motivo então te fez preferir tomar só a palavra do meio (homo) segundo o som e o significado?
ADEODATO 
  – Mas agora tomo-a exclusivamente pelo seu significado. Concordo contigo não ser possível conversar se a mente, ouvidas as palavras, não evocar logo as coisas de que aquelas são sinais. Por isso, mostra-me como eu pude ser enganado por esse raciocínio, que concluiu que não sou homem.
AGOSTINHO 
  – Será mais oportuno reapresentar-te as mesmas perguntas, para que tu possas perceber por ti mesmo onde erraste. 
ADEODATO 
  – Está bem.
AGOSTINHO    – Não vou perguntar-te o mesmo que antes, pois já o concedeste. Antes, observa com
mais atenção, se na palavra “homo” (homem) a sílaba “ho” é outra coisa que não “ho” e a sílaba
“mo” nada mais que “mo”.
ADEODATO 
  – Não vejo, na realidade, nada além disso. 
AGOSTINHO 
  – Observa ainda se, ao juntar estas duas sílabas, pode-se fazer um homem.
ADEODATO 
  – Absolutamente te concederia isto, uma vez que concordamos, acertadamente, que, depois de ouvir o sinal, a mente examina seu significado, e só após o exame concede ou nega o que foi proposto. Mas aquelas duas sílabas, quando separadas, soam sem qualquer significado, e por isso ficou assente que têm valor apenas como som.
AGOSTINHO 
  – Estás pois convicto que não se deve responder às perguntas senão de acordo com as coisas que as palavras significam?
ADEODATO 
  – Não vejo como haveria de concordar com isto, desde que se trate de palavras. 
AGOSTINHO 
  – Gostaria de saber o que responderias àquele zombeteiro que, dizem, fez sair um leão da boca do companheiro com quem discutia. Após indagar-lhe se o que dizemos sai da nossa boca, e não lhe sendo possível nega-lo, induziu facilmente o interlocutor a proferir o nome “leão”; feito isso, começou a andar ao redor dele e escarnecê-lo, pois admira que aquilo que dizemos sai da nossa boca e não podendo negar que proferira a palavra “leão”, estava assumindo que, sendo embora boa pessoa, vomitara um animal tão feroz.
ADEODATO 
  – Não seria difícil responder a esse brincalhão, pois eu não concordaria que tudo o que dizemos sai da nossa boca, uma vez que proferimos apenas sinais, e o que da nossa boca sai não é a coisa significada, mas o sinal que a significa; assunto este de que tratamos há pouco.
AGOSTINHO 
  – Com isso o refutarias corretamente; mas que me responderias se te perguntasse se homem é um nome?
ADEODATO 
  – Que mais haveria de ser?
AGOSTINHO 
  – Então, quando te vejo, vejo um nome?
ADEODATO 
 – Não.
AGOSTINHO 
  – Queres que te diga o que disso resulta?
ADEODATO 
  – Não te incomodes: eu mesmo, ao responder-te que um homem é nome quando me perguntaste se homem era nome, reconheço que declarei não ser eu homem, e fiz isto apesar de já termos estabelecido que só devemos admitir ou negar o que é dito conforme o significado das coisas.
AGOSTINHO 
  – Parece-me, todavia, que não foste incidir nesta reposta sem motivo, pois a própria lei da razão, gravada em nossas mentes, pode iludir a tua vigilância. De fato, se te perguntasse o que é “homem”, responderias talvez: “animal”; porém, se te perguntasse que parte da oração é “homem”, só poderias responder corretamente dizendo “nome”; por aí concluímos que “homem” é nome e animal: o primeiro (ser nome) dizemos enquanto é sinal; o segundo (ser animal) quanto à coisa significada. Se alguém pois, me perguntasse se homem é nome, responderia que é, uma vez que esta pergunta deixa entender que a indagação é a respeito de “homem” só como sinal. Se, ao contrário, me perguntar se homem é animal, anuirei mais facilmente porque, mesmo que se omitissem os termos “nome” e “animal” indagando apenas “o que é homem”, obedecendo àquela regra do falar que já estabelecemos, a minha mente voltar-se-ia para o significado daquelas duas sílabas e só poderia responder “animal”, e até poderia acrescentar a definição completa, isto é, “animal racional, mortal”; não te parece? 
ADEODATO 
  – Certamente; mas, se concordamos que é um nome, como nos subtrairmos a conclusão desagradável de que não somos homens?
AGOSTINHO 
  – Demonstrando que a ela não se chegou pelo sentido da palavras, quando concordamos
com o nosso interlocutor. 
  E se este quisesse deduzi-la da palavra considerada como sinal, nada haveria a temer,
pois qual prejuízo haveria em confessar que não sou aquelas duas sílabas?
ADEODATO 
  – Nada mais verdadeiro. Mas por que então incomoda ouvir dizer: “Tu não és homem” uma vez que, pelo que já vimos, é uma verdade incontestável? 
AGOSTINHO 
  – Por ser difícil evitar de pensar que aquela conclusão – ao ouvirmos estas duas sílabas – não se relacione com seu significado, pela regra de grande e natural valor, segundo a qual a nossa atenção, ao ouvirmos os sinais, volta-se logo para as coisas significadas. 
ADEODATO 
  – Aceito quando dizes. 

CAPÍTULO  IX
SE DEVEMOS PREFERIR AS COISAS, OU O  CONHECIMENTO DELAS, AOS SINAIS

AGOSTINHO 

  – Queria, pois, que bem compreendesse que são mais importantes as coisas significadas do que seus sinais. Tudo o que existe em função de outra coisa, necessariamente tem valor menor que a coisa pela qual existe, se concordas com isso.
ADEODATO 
  – Parece-me impróprio concordar com isto  sem refletir. Quando, por exemplo, se diz: “coenum” (lamaçal), parece-me que este nome seja em muito superior à coisa que significa. De fato, o que desagrada ao ouvirmos esta palavra não é o som;  “coenum”, mudando apenas uma letra, torna-se  “coelum” (céu), mas é evidente a enorme diferença que há entre as coisas que estes dois nomes significam. Por isso eu não teria por essa palavra toda a repulsa que tenho ao que significa, e, portanto, eu a prefiro a isso; pois menos desagrada o seu som do que ver ou tocar a coisa que significa.
AGOSTINHO 
  – Falas com sabedoria. Assim, não seria correto afirmarmos que todas as coisas têm valor superior aos sinais que as exprimem.
ADEODATO 
  – Assim parece.
AGOSTINHO 
  – Dize-me, então, qual seria a intenção dos que deram um nome a coisa tão feia e desagradável? Tu os aprovas ou desaprovas?
ADEODATO 
  – Na verdade, não me acho em condição nem de aprová-los nem de desaprová-los, e também não sei que intenção tiveram.
AGOSTINHO 
  – Poderás, ao menos, dizer-me qual a tua intenção, a finalidade de pronunciares esse nome?
ADEODATO 
  – Sim; ao pronunciá-lo, quero avisar ou ensinar ao meu interlocutor aquilo que julgo necessário avisá-lo ou ensiná-lo.
AGOSTINHO    – Como? O fato de ensinar e avisar, ou de receber tal ensinamento, facilmente expresso com este nome, não deveria talvez ser-te mais caro que a própria palavra?
ADEODATO 
  – Admito que o conhecimento obtido por este sinal seja preferível ao próprio sinal, mas não preferível à coisa em si.
AGOSTINHO 

  – Então, no que acima afirmamos, embora seja falso que devemos sempre preferir as coisas aos seus sinais, é verdade que tudo o que  existe em função de outra coisa tenha valor menor que a coisa pela qual existe. O conhecimento, pois, do lamaçal, para o qual foi instituído esse nome, há de ser considerado mais que a palavra que, por sua vez, vimos ser preferível ao próprio lamaçal. E é bem esse o motivo do conhecimento ser preferível ao sinal de que estamos tratando, pois este existe devido àquele e não aquele por causa deste. Assim, aquele glutão, devoto ao ventre, conforme relata o Apóstolo, quando disse que vivia para comer, foi contestado por um homem sóbrio, que lhe ouviu as palavras e, não tolerando-as, assim o redargüiu: “Bem melhor seria que comesses para viver”; e vemos que o sóbrio falou assim seguindo essa mesma regra (regra que estabelece que tudo o que é devido a outra coisa, como no caso de comer que é subordinado ao viver – é inferior à coisa pela qual existe). O comilão desagradou porque avaliava tão miseravelmente sua vida, que a tinha em menor conta que os prazeres do paladar, afirmando viver para comer. O homem sóbrio é digno de louvor porque, compreendendo qual das duas coisas (comer e viver) é feita para a outra, ou seja, qual está subordinada à outra, alertou que devíamos comer para viver e não viver para comer. Do mesmo modo, tu e todo homem sensato que aprecie as coisas pelo seu valor e justo lado, se um charlatão afirmasse: “Ensino para falar”, lhe responderias: “Homem, não seria melhor falar para ensinar?” Ora, se tais coisas são verdadeiras, como alias reconheces, observa quanto as palavras têm menor importância, em comparação com aquilo por que as usamos; sendo que o próprio uso das palavras já é mais importante do que elas próprias. As palavras, pois, existem para que as usemos, e as usamos para ensinar. Por isso, ensinar é melhor que falar, e assim o discurso é melhor que a palavra. Muito melhor que as palavras é, portanto, a doutrina. Mas quero ouvir de ti se por acaso tenhas algo a opor.
ADEODATO 
  – Concordo em que a doutrina seja preferível às palavras; mas talvez se possa levantar objeção contra a regra que diz: “tudo o que existe em função de outra coisa é inferior aquilo pelo qual existe”.
AGOSTINHO 
  – Trataremos disto a seu tempo e com mais detalhes: por enquanto, o que concedes já basta para que eu chegue aonde me proponho. Concordas, pois, que o conhecimento das coisas é mais importante que os sinais que as exprimem. Por isso, o conhecimento das coisas significadas deve ser preferido ao conhecimento dos  sinais, não te parece?
ADEODATO 
  – Mas eu disse, por acaso, que o conhecimento das coisas não é superior ao dos sinais, ou melhor, que é superior aos próprios sinais? Por isto hesito em concordar contigo neste ponto. Se o nome “lamaçal” é melhor que seu significado, por que o conhecimento deste nome não haveria de ser também melhor que o da coisa, embora o nome em si seja inferior aquele conhecimento? Lidamos aqui com quatro termos: nome, coisa, conhecimento do nome e conhecimento da coisa. Como o primeiro é superior ao segundo, por que também o terceiro não seria superior ao quarto? E, em não lhe sendo superior, acaso lhe estaria subordinado?
AGOSTINHO 
  – Noto que guardas muito bem na memória o que concedeste, e que explicaste claramente teu pensamento. Creio porém, que compreendes como este nome trissílabo  “vitium”(vicio), quando o pronunciamos, é melhor, como som, do que seu significado; entretanto, o simples conhecimento do nome é bem menos valioso que o conhecimento dos vícios. Assim, ainda que consideremos aqui os quatro termos que mencionaste: nome, coisa, conhecimento do nome, conhecimento da coisa, com razão nós preferimos o primeiro ao segundo. Quando Pérsio escreve na sua sátira este nome, dizendo: “Sed stuped hic vitio”  (mas este se admira do vicio), não só não torna viciado o verso, mas, pelo contrário, de algum modo dá-lhe beleza, apesar do significado desse nome ser sempre execrável, onde quer que se encontre. Mas observamos também que não é tampouco preferível o terceiro termo ao quarto, e sim o quarto ao terceiro. O conhecimento deste nome (vicio) é bem menos importante se comparado ao conhecimento dos vícios. 
ADEODATO 
  – Acreditas pois, que tal conhecimento, apesar de nos tornar mais mesquinhos, teria de ser preferido? O próprio Pérsio, a todas as penas que a crueldade dos tiranos excogitou ou a cobiça impôs, antepõe apenas aquela que atormenta os homens, quando obrigados a reconhecer os vícios que não conseguem evitar. 
AGOSTINHO 
  – Assim, também chegarias a negar que deve ser preferido o conhecimento das virtudes ao do seu nome, pois saber da virtude e não possuí-la é um suplicio, que aquele poeta satírico almejou como castigo dos tiranos. 
ADEODATO  
– Deus me livre de tal loucura: entendo que não devemos culpar os próprios conhecimentos, entre os quais o da moral, a mais excelsa disciplina com que se educa o espírito, mas sim, que devemos considerá-los – como creio que também Pérsio pensava – os mais míseros dos que são atacados por tal doença, que nem um tão grande remédio pode curar. 
AGOSTINHO 
  – Entendimento correto; mas em que pesa o pensamento de Pérsio? Não estamos submetidos, nisso, a tal autoridade; ainda mais que é difícil elucidar aqui qual conhecimento deve ser preferido a outro. Por ora, estou satisfeito com o que conseguimos; isto é, ter o conhecimento das coisas que são significadas como um valor superior, se não ao conhecimento dos sinais, pelo menos aos sinais em si. Por isto voltemos agora a discutir sobre o gênero das coisas que podem se mostrar por si mesmas, como dizíamos, sem sinais, como sejam: comer, passear, sentar, fazer e semelhantes.
ADEODATO 
  – Volto a meditar sobre as tuas palavras. 

(Continua...)

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