sábado, 4 de junho de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 43

CAPÍTULO  X
SE É POSSÍVEL ENSINAR ALGO SEM SINAIS. AS COISAS NÃO SE APRENDEM PELAS PALAVRAS

 
AGOSTINHO 
  – Parece-te que podemos indicar, sem uso de sinais, tudo que podemos fazer, logo após sermos interrogados, ou algo deve ser excluído?

ADEODATO 
  – Na verdade, tenho pensado muito neste gênero de coisas, sem todavia encontrar nada que se possa ensinar sem sinal, executando, talvez, o próprio falar e ensinar, mas este só se nos perguntarem o que é ensinar. Parece-me que quem pergunta – qualquer coisa que eu faça após a indagação para que aprenda – não o pode aprender através da própria coisa, que deseja lhe seja mostrada. Por exemplo: se quando estou fazendo outra coisa, alguém me perguntasse que é caminhar e eu, imediatamente, buscasse demonstrar-lhe a coisa sem usar sinais começando a caminhar, como poderia evitar que ele entendesse que caminhar é apenas o quando andei? Ora, se ele pensar nisso, terá sido levado a engano, pois julgará que quem andar mais, ou menos, do quanto eu andei, não caminhou. E o que vale quanto a esta palavra aplica-se também a todas aquelas que julguei se possam mostrar sem sinal, menos as duas que exclui.
AGOSTINHO 
  – Concordo com isso, mas não te parece que falar é uma coisa e ensinar é outra?
ADEODATO 
  – Certamente, pois se fossem a mesma coisa não se poderia ensinar senão falando; ora, como muitas coisas são ensinadas com outros sinais que não palavras, quem poderia negar a diferença? 
AGOSTINHO 
  – Ensinar e significar são a mesma coisa ou diferem em algo?
ADEODATO   
– Creio que a mesma.
AGOSTINHO 
  – Será correto afirmar que nós usamos de sinais (que significamos) para ensinar?
ADEODATO    – Sem dúvida.
AGOSTINHO 
  – Se alguém afirmasse que ensinamos para usar sinais (para significar), não seria facilmente refutado pela afirmação precedente?
ADEODATO 
 – Seria.
AGOSTINHO 
  – Se usarmos pois os sinais para ensinar, não ensinamos para usar os sinais: uma coisa é ensinar e outra é usar os sinais (significar)
ADEODATO 
  – É verdade, e quando disse que eram a mesma coisa, eu não respondi corretamente. 
AGOSTINHO 
  – Agora, responde a isto: quem ensina o que é ensinar o faz usando sinais ou outro modo?
ADEODATO 
  – Não vejo como o poderia fazer diversamente.
AGOSTINHO 
  – Não é pois verdade a tua afirmação anterior, isto é, que não se pode ensinar sem sinais a quem indague o que é ensinar, porque constatamos que nem mesmo isto podemos fazer sem usar sinais, pois me concedeste que uma coisa é usar sinais (significar) e outra ensinar. Se são coisas distintas e uma se mostra pela outra, quer dizer que certamente não se mostra por si mesma, como te pareceu. Portanto até aqui nada encontramos que se mostre por si mesmo, salvo a palavra que, entre as outras coisas, significa também a si mesma; mas como ela também é um sinal, parece nada haver que possa ensinar-se sem sinais. 
ADEODATO 
  – Nada tenho a opor.
AGOSTINHO 
  – Concluímos então que nada pode ser ensinado sem sinais, e que o próprio conhecimento tem de ser, para nós, mais caro que os sinais pelos quais o obtemos, embora nem todas as coisas que eles exprimem devam ser preferidas aos seus próprios sinais.
ADEODATO 
  – Parece ser assim mesmo.
AGOSTINHO 
  – Lembras quantas voltas demos para chegar a tão modesto resultado? Desde o começo de nossa conversa, que dura já um bom tempo, fatigamo-nos bastante para descobrir estas três coisas: 1) se era possível ensinar sem sinais; 2) se havia sinais preferíveis às coisas que expressam; 3) se o conhecimento das coisas pode ser melhor que os sinais. Mas há ainda uma quarta que gostaria de saber agora: se as coisas que encontramos, estão para ti claras e não te deixam possibilidade de dúvida.
ADEODATO 
  – Seria mesmo agradável, depois de tantos rodeios, que tivéssemos chegado à certeza, mas esta pergunta gera em mim certa inquietação, que me impede de assentir. Tenho a impressão que tal não me perguntarias se não tivesses alguma objeção a apresentar: e o emaranhado do assunto não me permite ver tudo e responder com segurança, pois, entre tantos véus, temo que se esconda algo que os olhos da minha mente não possam divisar.
AGOSTINHO 
  – Agrada-me a tua dúvida, porque revela uma alma sem leviandade, e isto garante imensamente a tranqüilidade. É de fato difícil não se perturbar quando o que nós tínhamos como ponto de consenso fácil e pacífico é derrubado e como que arrebatado das mãos por discussões. Por isso, como é justo ceder depois de observar e examinar bem os motivos, assim é perigoso conservar como coisa certa o que não é. Às vezes, quando desmorona aquilo que tínhamos como estável e permanente, pode haver o receio que se gere tão grande aversão ou medo da razão, que nos pareça não podermos mais depositar nossa fé nem sequer na verdade mais evidente.
Mas, vamos adiante? Reexaminemos, agora um pouco mais rapidamente, se tens razão de duvidar. Pergunto: se alguém, que não conheça as armadilhas que se tendem aos pássaros com varas e visco, deparasse com um caçador com este arnês, e que vá indo pelo caminho sem ter começado ainda a sua tarefa e, vendo o caçador, apressasse o passo, e estranhando em seu íntimo tudo aquilo, se perguntasse o que poderiam significar aqueles apetrechos; e o caçador, sentindo-se observado e admirado, para fazer mostra de si, exibisse a cana e o falcão, conseguisse atrair e apanhar um passarinho, diga-me: o caçador, sem usar de sinais, mas usando a própria coisa, não estaria a ensinar ao seu espectador o que esse queria saber? 
ADEODATO 
  – Parece-me que o caso é semelhante àquele que mencionei, isto é, de quem pergunta o que é caminhar. Neste caso também não acho que foi mostrada toda a arte de caçar. 
AGOSTINHO 
  – É simples desfazer-se desta impressão; eu acrescento: se aquele espectador fosse inteligente o bastante para compreender por inteiro a arte de caçar só pelo que viu, isto bastaria para demonstrar que alguns homens podem ser ensinados sem sinais sobre algumas coisas, embora não sobre todas.
ADEODATO 
  – No caso, também posso acrescentar isto: quem pergunta o que é caminhar, se for bem inteligente, compreenderá por inteiro o que é caminhar, bastando que se lhe mostrem uns poucos passos.
AGOSTINHO 
  – Podes, eu concordo com prazer. Chegamos pois a esse resultado, ou seja, que umas coisas podem ser ensinadas sem sinais, sendo portanto falso aquilo que há pouco nos parecia verdadeiro, isto é, não existir nada que se possa mostrar ou ensinar sem sinais; e acode à nossa mente não uma ou duas coisas, mas milhares que, sem precisar de sinal algum podem mostrar-se por si mesmas. Poderemos pois duvidar, eu te pergunto? Sem considerar os muitos espetáculos em que uns atores representam nos teatros as coisas sem usar sinais, Deus e a natureza não apresentam e mostram por si mesmos, ao observador, o sol e a luz, que tudo banha e recobre, a lua e as estrelas, a terra e os mares com infinidade de criaturas que os habitam?
  Todavia, se observarmos isto com maior atenção, talvez não encontremos nada que se possa aprender pelos seus próprios sinais. De fato, se me for apresentado um sinal e eu não souber de que coisa é o sinal, este nada poderá me transmitir; se, ao contrário, já souber de que é sinal, que estará me ensinando? Assim, quando leio “Et saraballae eorum non sunt immutatae” (E as suas coifas não foram trocadas), a palavra (coifas) não me explica a coisa que significa. Pois se uns objetos que servem para cobrir a cabeça têm este nome de  ‘saraballae” (coifas), terei porventura, depois de ouvi-lo, aprendido o que é cabeça e o que é cobertura? Ao contrário, eu já as conhecia antes, pois delas adquiri conhecimento sem que as ouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as com os meus próprios olhos. Quando as duas sílabas da palavra  “caput” (cabeça) soaram pela primeira vez ao meu ouvido, desconhecia seu significado como quando ouvi e li pela primeira vez  “saraballae”. Porém, ouvindo repetidamente dizer  “caput” (cabeça), e notando e observando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela significava aquela coisa que eu bem conhecia, por tê-la visto. Mas antes de entender seu significado, a palavra era para mim apenas um som, e aprendi que era um sinal quando a associei àquilo de que era sinal, e aprendi-lhe o significado pela visão direta do objeto. Vemos, pois, que é mais pelo conhecimento da coisa que se aprende o sinal do que o contrário.
  Para que compreendas isto com maior clareza, imagina que estejamos ouvindo agora, pela primeira vez, pronunciar a palavra  “caput” (cabeça). (Lembra-te que buscamos o conhecimento não da coisa que é significada, mas do próprio sinal, conhecimento que nós não temos enquanto ignorarmos o que sinaliza). Se, na nossa pesquisa, nos mostrassem ou apontassem com o dedo a própria coisa, ao vê-la teríamosconhecimento do sinal; isto é, saberíamos o que quer dizer aquele sinal que tínhamos ouvido, mas não compreendido. No sinal há duas coisas: o som e o significado; ora, o som não foi certamente recebido como sinal de algo, mas como simples verberação no ouvido, enquanto o significado foi apanhado pela visão da coisa que é significada. Como o apontar do dedo só pode significar o objeto que o dedo está apontando, e como o dedo não está apontado pelo sinal, mas para a parte do corpo que se chama “caput” (cabeça), ocorre que, pelo gesto, não venho a conhecer a coisa, que já conhecia, nem o sinal que o dedo não estava apontado. Mas não quero colocar grande ênfase no gesto de apontar o dedo, pois o tenho mais como sinal do ato de indicar do que das próprias coisas indicadas; veja o que ocorre quando dizemos:  “ecce” (eis), e habitualmente acompanhamos este advérbio com o gesto de apontar como se não bastasse um só desses sinais para indicar. E procurarei ao máximo te convencer, se o puder, disto: que nada aprendemos por meio dos sinais chamados palavras; antes, como já disse, aprendemos o valor da palavra, ou seja, o significado oculto no som pelo conhecimento ou da percepção da coisa significada; mas não a própria coisa mediante o significado. 
  E o que disse da cabeça, poderia dizer do que serve para cobrir a cabeça e de infindáveis outras coisas; que, embora as conhecesse, nunca, até agora, tive o conhecimento daquelas “saraballae” (coifas). Se alguém com um gesto me apontasse estas  “saraballae” (coifas) ou as pintasse, ou me mostrasse algo de parecido, não diria, como aliás poderia se quisesse falar um pouco mais, que não mas ensinou, mas que não me ensinou com as palavras o que está diante de mim. Se, ao tê-las diante de mim eu fosse avisado com as palavras: “Ecce saraballae” (eis as coifas), aprenderia uma coisa que não sabia, não pelas palavras que foram pronunciadas, mas pela visão direta da coisa em si, à qual associei o nome, cujo valor gravei. Pois, quando aprendi a própria coisa, não acreditei nas palavras de outrem, mas nos meus olhos; talvez acreditasse também nelas, mas apenas como um alerta, ou seja, para procurar com os olhos o objeto em questão. 

CAPÍTULO  XI
NÃO APRENDEMOS PELAS PALAVRAS QUE REPERCUTEM EXTERIORMENTE,  MAS PELA VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTE


AGOSTINHO 
  – Limitado o valor das palavras, e delas direi, querendo valorizá-las, que apenas estimulam a procurar as coisas, sem porém mostrá-las para que as conheçamos. No entanto, aquele que me apresenta alguma coisa, quer aos sentidos corporais, quer à mente, ensina-me de fato as coisas que quero conhecer. Com as palavras não aprendemos senão palavras; de mais a mais, o som das palavras, pois se não for sinal tampouco é palavra, não vejo como possa ser palavra, som que ouvi pronunciado como sendo palavra, até que lhe conheça o significado. O sentido completo das palavras, se consegue apenas depois de conhecer as coisas; e ao contrário, ouvindo somente as palavras, não aprendemos nem sequer estas. De fato, não tivemos conhecimento das palavras que aprendemos senão depois de perceber seu significado, o que acontece não ouvindo as vozes que as proferem, mas pelo conhecimento das coisas significadas. Ao ouvirmos palavras, é perfeitamente razoável saber ou não o que significam; se o sabemos, não foram elas que no-lo ensinaram, apenas o recordaram; se não o sabemos, nem sequer o recordam, mas talvez nos estimulem a procurá-lo. 
  Ora, daqueles objetos que servem para cobrir a cabeça e dos quais apenas ouvimos o nome (coifas), só podemos adquirir a noção depois de vê-los; portanto, nem sequer o seu nome conhecemos completamente, não antes de conhecermos os próprios objetos. Todavia, podes afirmar que de nenhum modo senão pelas palavras, aprendemos o que se narra a respeito dos três jovens, aqueles que com sua fé e religião venceram o rei e as chamas, quais os hinos de louvor que cantaram a Deus; quais as honras que mereceram do próprio inimigo; responder-te-ei que já conhecíamos todas as coisas significadas por aquelas palavras. Pois eu já tinha na minha mente o que significa três jovens, o que é forno, o que é fogo, o que é rei, o que quer dizer ser
preservado do fogo, e por fim, as demais coisas significadas por aquelas palavras. Mas, como aquelas “saraballae” (coifas), ficam para mim desconhecidos os jovens Ananias, Azarias e Misael; nem os seus nomes me ajudaram a conhecê-los. E confesso que, mais que saber, posso afirmar minha crença que tudo o que se lê naquela narração histórica tenha ocorrido naquele tempo assim como foi escrito; e os próprios historiadores a que emprestamos fé não ignoravam esta diferença. Diz o profeta: “Se não credes, não entendereis”; e certamente não diria isto se não tivesse por necessário estabelecer uma diferença entre as duas coisas. Por isso, creio tudo o que entendo, mas nem tudo o que creio entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo o que creio conheço. Eu sei quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço, utilidade que se aplica também na história dos três jovens. Como não posso saber a maioria das coisas, sei porém que é útil acreditar nelas. Quanto às coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, que é exterior, mas a verdade que dentro de nós reside, em nossa mente, estimulados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina em verdade, e este é o Cristo que habita, como foi dito, no homem interior, isto é, a virtude única de Deus e a eterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela ao homem na medida de sua própria boa ou má vontade.  E se ocorre o erro, isto não acontece por falha da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos se enganam; esta luz que consultamos a respeito das coisas visíveis, para que no-las torne claras na proporção em que nos é permitido distingui-las. 

CAPÍTULO  XII
CRISTO É A VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTE


AGOSTINHO 
  – Ora, se para as cores precisamos de luz, e para as outras coisas que nosso corpo percebe interpelamos os elementos do mundo, os objetos percebidos e os próprios sentidos são instrumentos de que a mente se serve para conhecer as coisas externas. Todavia, para aquelas coisas que conhecemos pela inteligência consultamos, por meio da razão, a verdade interior; e o que diremos, para que fique claro, senão que pelas palavras nada mais aprendemos além do som que atinge nosso ouvido? Pois todas as coisas que percebemos, ou são apanhadas pelos sentidos físicos ou pela mente. Chamamos às primeiras “sensíveis”, e às segundas “inteligíveis” ou, para usar a linguagem de nossos autores, às primeiras “carnais” e às segundas “espirituais”. Quanto às primeiras, se estiverem ao nosso alcance podemos responder, como quando estamos
olhando a lua, e alguém nos pergunte o que é ou onde ela está. Neste caso, quem pergunta, se não enxergam acredita ou não nas nossas palavras, mas não aprende de modo algum; a menos que também veja o que lhe está sendo afirmado e, nesse caso, não aprende pelo simples som das palavras, mas pelas coisas mesmas e que ferem seus sentidos. As palavras, pois, têm o mesmo som para quem vê, como para quem não vê. Se porém somos indagados, não sobre as coisas presentes, mas sobre as que percebemos outrora, respondendo, não fazemos referencias às mesmas, mas às suas imagens gravadas  em nossa memória; não sei como poderíamos chamar tais imagens de verdadeiras, pois percebemos serem falsas, a não ser que acrescentemos que sua visão e percepção não são atuais, mas pretéritas. Portanto, nós gravamos nos meandros da memória as imagens como documentos das coisas que percebemos; contemplando-as com honestidade na nossa mente, não mentimos quando falamos. Mas estes são documentos válidos só para nós, pois quem nos ouve, se as percebeu ou presenciou, não as aprende pelas minhas palavras, mas as reconhece nas imagens que também levou consigo; todavia, se nunca as percebeu, todos concordarão que ele mais do que aprender, crê nas palavras. 
  Tratando das coisas que percebemos pela mente, isto é, por meio do intelecto e da razão, estamos ainda tratando de coisas que temos como presentes, sob a luz interior da verdade, que ilumina o homem interior, que dela desfruta. Mas também aqui nosso interlocutor conhece o que eu digo pela sua própria contemplação, e não mediante minhas palavras, posto que ele também veja por si a mesma coisa com olhos interiores e simples. Portanto, nem sequer a este, que vê as coisas na verdade, ensino algo dizendo-lhe a verdade, uma vez que não aprende pelas minhas palavras, mas pelas próprias coisas que Deus a ele revela em seu interior; e ele, interrogado sobre elas, sem mais, poderia responder. Ora, haverá absurdo maior que acreditar que minhas palavras possam ter instruído aquele que, interrogado antes de minha preleção, poderia
responder sobre o assunto? O caso, que ocorre com freqüência, de alguém interrogado negar algo e depois, estimulado por ulteriores perguntas, vir a concordar, depende da fraqueza da sua visão que não pode abarcar todas as coisas pela luz interior, e a isto sendo levado, por partes sucessivas, pelas perguntas inerentes às mesmas partes de uma verdade única, que ele não podia intuir, de uma só vez, no seu conjunto. Se chegar isso por meio das perguntas, não significa que as palavras lhe ensinaram alguma coisa, mas apenas que lhe ofereceram um meio, uma capacitação para enxergar no seu interior. Seria assim se eu te argüisse sobre o que estamos tratando agora, isto é, se é possível ensinar algo pelas palavras, e tu, na incapacidade de abranger com a mente a questão inteira, julgasses, no primeiro momento, absurda a pergunta. Por isso, foi preciso apresentar a pergunta na medida da tua capacidade de ouvir o mestre interior, e dizer-te as coisas que, quando ouves, confessas com certeza serem verdadeiras e que afirmas conhecê-las bem; onde aprendeste? Responderias, talvez, que fui eu quem tas ensinou? E então eu perguntaria: Como? Se eu te afirmasse ter visto um homem voando, as minhas palavras dar-te-iam tanta certeza como se me ouvisses dizer que os homens sábios são melhores que os tolos? Certamente, depois de negar, responderias não acreditar na primeira ou, mesmo que acreditasses, que ela é para ti completamente desconhecida, e no entanto que sabes com certeza a segunda. Compreenderias pois com clareza que nada aprendeste com minhas palavras: nem aquilo que ignoravas, nem aquilo que já sabias otimamente; pois jurarias, ao ser interrogado parte por parte sobre as duas coisas, que a primeira te era desconhecida e a segunda, conhecida. E então chegarias a admitir tudo o que antes negavas ao reconhecer como claras e certas as partes que compõem a questão; isto é, que a respeito de tudo o que falamos, quem nos está ouvindo ou desconhece se não verdadeiras, ou sabe que são falsas, ou sabe que são verdadeiras. No primeiro caso, ou crê, ou opina, ou duvida; no segundo, nega; no terceiro, afirma, mas em nenhum dos três aprende. Tanto aquele que depois de me ouvir ignora a coisa, como quem reconhece que ouviu falsidades e como quem, interrogado, poderia repetir o que foi dito, demonstra que nada aprendeu pelas minhas palavras. 
 
CAPÍTULO  XIII
A FORÇA DAS PALAVRAS NÃO CONSEGUE MOSTRAR SEQUER O PENSAMENTO DE QUEM FALA


AGOSTINHO 
  – E também no tocante às coisas que se contemplam com a mente, aquele que não entende, inutilmente ouve as palavras de quem as vê, a não ser porque é útil acreditar em tais coisas enquanto se ignoram. Aquele porém que as pode ver interiormente, é discípulo da verdade; exteriormente, é juiz de quem fala, ou melhor, das suas palavras, pois muitas vezes sabe as coisas que foram ditas, enquanto quem as disse não as sabe. Seria este o caso em que alguém, acreditando nos epicuristas e julgando mortal a alma, repetisse os argumentos já tratados pelos mais sábios sobre a sua imortalidade, na presença de quem pode intuir as coisas espirituais. Este julgaria que aquele diz a verdade, ou antes considerará falácia o que diz. Devemos pois, acreditar que quem não sabe pode ensinar? E, no entanto, usa as mesmas palavras que também usaria aquele que sabe.
  Por isso tudo, nem sequer resta às palavras o papel de manifestar ao menos o pensamento de quem fala, pois é duvidoso se este sabe ou não o que diz. Considera também os mentirosos e enganadores, e facilmente compreenderás que, com as palavras, eles não só não revelam, mas até ocultam o pensamento. Jamais duvidaria que as palavras sinceras se esforcem e façam o melhor para manifestar o espírito de quem fala, o que conseguiriam, e seria ótimo para todos se não fosse permitido aos mentirosos falarem. Todavia, repetidamente percebemos em nós mesmos e nos outros que as palavras não expressam o pensamento; e isto pode acontecer de duas maneiras: ou quando as palavras que gravamos e repetimos saem da boca de quem está pensando em algo diferente, o que acontece amiúde quando cantamos um hino; ou quando, nos saem umas palavras em vez de outras, contra a nossa vontade, por um lapso da própria língua; também neste caso não são transmitidos os sinais das coisas que temos na mente. Os mentirosos, sem dúvida, também pensam as coisas que dizem, e embora nós não saibamos se falam a verdade, sabemos porém que eles têm em mente o que dizem; a menos que lhes aconteça uma das coisas que mencionei; e se me objetarem que, às vezes, isto pode ocorrer, e que, quando ocorre, isto aparece, ainda que muitas vezes possa ficar oculto, eque eu, ao ouvir tais coisas, às vezes também possa ser enganado, não me oporei.
  E há ainda outro caso, bastante freqüente e origem de inúmeras controvérsias: quando quem fala exprime de fato seu pensamento, mas apenas para si e para uns poucos, e não para o interlocutor e para os demais. Por exemplo, se alguém em nossa presença afirmasse que o homem é superado em valor por alguns animais, não o toleraríamos e logo refutaríamos com grande veemência esta falsa e perniciosa afirmação; e talvez por valor ele entenda a força física, e com tal palavra enuncie mesmo o que pensava, sem mentir, sem engano, sem ocultar as palavras gravadas na memória, agitando na mente alguma outra coisa, sem que por um lapso da língua fale algo diverso do que corresponde ao seu pensamento; estaria apenas chamando com um nome diverso do nosso a coisa que pensa, e nós teríamos concordado imediatamente com ele, se houvéssemos intuído o seu pensamento, o que não conseguiu explicar-nos com as palavras de sua afirmação. Dizem que a definição pode sanar tal erro; assim, se nesta questão se definisse o que é valor  (virtus), tornar-se-ia claro, dizem, que a controvérsia gira só em torno da palavra, e não da coisa. Mas, mesmo concordando com isto, quantos bons definidores poderemos encontrar? E isso embora se tenha discutido bastante sobre a arte de definir, o que não é oportuno tratarmos aqui, nem merece sempre a minha aprovação. 
  Nem considero o caso de não ouvirmos bem umas coisas e disputarmos longamente sobre elas como se as tivéssemos ouvido. Quando, há pouco, quis dizer “misericórdia” com uma certa palavra púnica, afirmaste ter ouvido, daqueles que têm familiaridade com esta língua, que aquela palavra significa “piedade”. Eu opunha-me, afirmando que tinhas esquecido de todo o que tinhas ouvido, pois me parecia teres dito não “piedade”, mas “fé”, embora tivéssemos sentados bem perto, e certamente estas duas palavras não podiam levar a um engano pela semelhança do som. Por um bom lapso de tempo pensei, todavia, que não soubesses aquilo que te fora dito, e no entanto era eu que não sabia o que havias dito; ora, se eu tivesse ouvido claramente as tuas palavras, não teria recebido a impressão, nada absurda, que a língua púnica indicasse com o mesmo vocábulo “piedade” e “misericórdia”. Tais coisas ocorrem com freqüência mas, como disse, vamos deixá-las de lado, para não dar a impressão que quero atribuir culpa às palavras pela negligência de quem ouve, ou até pela surdez dos homens. O que mais aflige é o que disse acima, isto é, o não conseguirmos conhecer o pensamento de quem fala, embora ouvindo claramente as palavras, e palavras latinas, e sendo nós da mesma língua. 

CAPÍTULO  XIV
CRISTO ENSINA INTERIORMENTE,  O HOMEM AVISA EXTERIORMENTE PELAS PALAVRAS


AGOSTINHO 
  – Porém  agora admito que, quando as palavras tenham sido ouvidas por quem já as conhece, a este possa parecer que quem fala tenha realmente pensado no seu significado; mas significará talvez que também aprendeu o que agora estamos indagando, isto é, que aquele tenha falado a verdade? E, porventura, os mestres pretendem que se aprendam e retenham os seus conceitos pessoais e não as disciplinas mesmas que querem ensinar quando falam? Mas quem seria tão tolo em mandar o seu filho à escola para que aprenda o pensamento do professor? Mas quando tiverem exposto com palavras todas as disciplinas que dizem professar, inclusive as que concernem à virtude e à sabedoria, então os discípulos irão considerar consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, consultando a verdade interior conforme sua capacidade. E é então que, finalmente, aprendem; e, quando dentro de si descobrem que as coisas ditas são verdadeiras, louvam os mestres sem perceber que elogiam homens mais doutrinados que doutos, se é que aqueles, também sabem o que dizem. Erram, pois, os homens ao chamar de mestres
outros homens, porque na maioria dos casos entre o tempo da audição e o tempo da cognição não se interpõe tempo algum; e, como depois da admoestação do professor, logo aprendem em seu íntimo, julga que aprenderam pela fala do mestre exterior, que nada mais faz do que admoestar.   Mas sobre a importância das palavras, bem considerada no seu conjunto, não é pequena, falaremos, se Deus permitir, em outro lugar. Por ora avisei-te apenas que não lhes atribuas importância maior do que é necessário, para que não se creias, mas também comece a compreender quão grande é a verdade do que está escrito nos livros sagrados que não se chame a ninguém de mestre na terra, pois o verdadeiro e único Mestre de todos está no céu. E o que há nos céus, no-lo ensinará Aquele que, por meio dos homens, também nos admoesta com sinais exteriores, para que, voltados para Ele interiormente, sejamos instruídos. Amar e conhecer a Ele constituem a bem-aventurança, que todos afirmam buscar, mas bem poucos são os que se alegram por tê-la encontrado. E agora gostaria de  ter as tuas impressões sobre este meu arrazoado. Se tu soubesses que eram verdadeiras as coisas expostas, dirias que as conhecias quando interrogado sobre cada uma separadamente; observa, portanto, de quem as aprendeste; não certamente de mim, a quem terias respondido, se te indagasse sobre elas. Se, ao contrário, sabes que não são verdadeiras, nem eu nem Aquele tas ensinou: eu, porque nunca teria a possibilidade de ensinar; Aquele, por tu não teres ainda a possibilidade de aprender.
ADEODATO 
  – Eu, na verdade, pela admoestação das tuas palavras aprendi que servem apenas para estimular o homem a aprender, e que já é grande resultado se por meio da palavra transmite-se um pouco do pensamento de quem fala. Se foi dita a verdade, isto no-lo pode ensinar somente Aquele que, por sinais externos, avisa oque habita dentro de nós; Aquele que, pela sua graça, hei de amar com tanto mais ardor quanto mais eu progredir no conhecimento. Mas quanto a essa tua oração, que usaste continuamente, sou-te grato particularmente por isto: que ela previu e desfez todas as objeções que tinha preparado para te fazer, e nada descuidaste daquilo que me suscita dúvidas, e sobre o que não me responderia assim aquele secreto oráculo, como tuas palavras
afirmaram.

(Continua...)

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