IHU - "Será que é ruim uma criança que tem como referência a Barbie – porque está inserida numa sociedade em que a Barbie
é supervalorizada e a rodeia o tempo todo – enxergar que aquele exemplo
de mulher pode ser modelo, mas também pode ser médica, dentista,
arqueóloga?", escreve Marília Moschkovich em artigo publicado no blog Outras Palavras, 04-11-2013.
Confira.
O ano de 2013 pode ter sido maldoso com muita gente, mas parece, a
princípio, que foi um ano de extremo sucesso para o movimento feminista.
A escolha de Feliciano como
presidente da comissão de direitos humanos da câmara mobilizou muitas
pessoas em prol de certas causas feministas. As marchas das vadias
continuaram crescendo e se multiplicando apesar (ou por causa) de
grandes polêmicas da opinião pública sobre crucifixos enfiados
vocês-sabem-onde. A visita do Papa Francisco
ao Brasil e a Jornada Mundial da Juventude católica terminaram a
receita explosiva para discussões infinitas dentro e fora da internet,
que rondavam temas e abordagens feministas sobre os direitos humanos. A
questão da descriminalização do aborto foi especialmente importante em
tais meses.
Esse momento célebre se estendeu a veículos de comunicação dos mais
diversos, de várias maneiras: uma feminista foi convidada para falar no
programa matinal de Fátima Bernardes; a revista Carta Capital,
de muita influência em círculos ligados ao pensamento de esquerda e que
noticiava apenas ocasionalmente assuntos feministas, passou a ter não
um, mas dois blogs ligados diretamente ao feminismo (Território de Maíra
e Feminismo Para Quê?); a revista TPM promoveu um evento e fez uma capa discutindo questões relacionadas ao feminismo; o site Buzzfeed, muito popular na internet, publicou uma lista de gifs animados direcionada especificamente a ativistas feministas.
Para completar o frisson e inaugurar de vez o próximo Fla-Flu online sobre o feminismo, a revista digital Capricho declarou, em reportagem publicada na última sexta-feira (1º/11), que “o girlpower está na moda”, postando em seguida fotos de celebridades que se declaram feministas. Assim, provavelmente esperam os editores, as meninas têm em quem se inspirar para aderirem a essa “moda”.
Para completar o frisson e inaugurar de vez o próximo Fla-Flu online sobre o feminismo, a revista digital Capricho declarou, em reportagem publicada na última sexta-feira (1º/11), que “o girlpower está na moda”, postando em seguida fotos de celebridades que se declaram feministas. Assim, provavelmente esperam os editores, as meninas têm em quem se inspirar para aderirem a essa “moda”.
Toda essa apropriação têm suscitado muitas questões de ativistas
sobre o que significa essa popularidade repentina. É fato que ela
implica uma compreensão mínima e um tanto rasa de não-feministas sobre o
feminismo e as ideias do movimento. Implica também a transformação do
feminismo em produto consumível – um estilo de vida que se pode comprar,
copiar de famosas, etc. Ao mesmo tempo, indica a possibilidade de
utilizar esses momentos de “fama” para ampliar debates que até poucos
meses se restringiam aos mesmos círculos de sempre.
Diante desse dilema, minha posição é uma só: contra fatos não há
argumentos e o feminismo agora é pop, sim. A questão é o que faremos com
essa informação. Em momentos de afobação como este, é preciso tomar um
cuidado imenso para não jogarmos fora o bebê com a água do banho. Calma
lá, companheiras.
Vocês se lembram das Spice Girls? Da Barbie Mergulhadora, da Barbie Veterinária, da Barbie Pesquisadora, da Barbie Arqueóloga? Da Mulan e da Merida, personagens de filmes da Disney? Da Madonna nos anos 1980? Leila Diniz? Waleska Popozuda? Da Rainha Amidala em Star Wars? Do filme Thelma & Louise ou A Ilha da Garganta Cortada (pra me concentrar na incrível Geena Davis)? Da lista completa de “celebridades” publicada pela Capricho? Do seriado “Law and Order: Special Victims Unit”?
Pois todas essas – e muitas outras – coisas e pessoas são produtos
feministas consumíveis; são representações do feminismo adotadas,
embaladas e plastificadas pelo capitalismo para se converterem em
estilos de vida, imagens, signos e símbolos que ambicionamos. Isso
significa que são ruins? Será mesmo?
Será que é ruim uma criança que tem como referência a Barbie – porque está inserida numa sociedade em que a Barbie
é supervalorizada e a rodeia o tempo todo – enxergar que aquele exemplo
de mulher pode ser modelo, mas também pode ser médica, dentista,
arqueóloga? Será que foi negativo que tantas meninas nos anos 1990
idolatrassem uma banda formada apenas por mulheres que cantava “Se você
quer ser meu namorado, precisa se dar bem com minhas amigas”? Foi um
retrocesso que a cantora mais popular da década anterior explicitasse a
liberdade sexual, como mulher? É um atraso que não apenas as meninas de
classe média, mas também quem tem o repertório cultural do funk, das
favelas, possa escutar músicas dizendo que “a buceta é minha, eu dou pra
quem quiser”?
Como eu disse certa vez, o feminismo precisa ser para todas e todos.
Isso significa, além de uma perspectiva intersecionalista, que é preciso
parar com essa bobagem de querer que os movimentos sociais sejam feitos
por e para apenas alguns grandes iluminados que atingiram certos níveis
de compreensão acadêmica-teórica e portanto seriam os guardiões – no
caso as guardiãs – do conhecimento específico daquela questão social.
Não somos. Parem com isso. Não existe um único feminismo legítimo e essa
é justamente uma das belezas desse movimento: ele está aberto para
disputa. Então nos armemos para debater, sim, com quem chega agora e tem
apenas as referências mais pasteurizadas. Só assim conseguiremos
ampliar a discussão.
No que diz respeito ao mundo não-feminista, porém, não me parece, em absoluto, que estejamos perdendo essa batalha.
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