27 janeiro 2014
Autor: Carlos Ramalhete
Uma experiência científica interessante, comparável com aquelas em
que pesquisadores soltam carteiras pelas cidades do mundo para medir
quantas são devolvidas, seria a de furtar abertamente bens alheios em
todas as culturas do mundo. Tomar o chocalho do cacique, a espada do
guerreiro, o sapato da velhinha, o pirulito da criança. E ficar ali, de
bobeira, esperando para ver o que iria acontecer.
Arrisco o chute: o pesquisador levaria uma bela coça na imensa
maioria dos lugares, e nos outros seria conduzido a algum sucedâneo
formal da mesmíssima coça: cadeia, chibatadas, “bolos” de palmatória, o
que for.
Isto ocorre por uma razão simples: o furto é condenado por lei
natural. Lei esta que já vem, “de fábrica”, inscrita em nossos corações.
Todas as sociedades são e sempre foram compostas por gente que conhece a
lei natural. Há quem finja não a conhecer, que mude de calçada para não
cruzar com ela, e alguns destes acabam sempre em cargos de mando. Mas,
na verdade, é impossível não a conhecer. Uma sociedade pode até criar
maneiras doentias e complicadas de negar um que outro aspecto dela, como
quem deixa uma válvula de escape aberta. Mas ela está ali, e todos
sabem dela.
E as condenações e obrigações da lei natural, tão bem conhecidas de
todos, são necessariamente a base do nosso sentido de certo e errado e
daquele curioso mecanismo que nos avisa quando ultrapassamos estes
saudáveis limites: a nossa consciência.
Sabemos todos que é errado, é erradíssimo, é abominável!, matar um
inocente. Podemos tentar justificar o injustificável, arranjar desculpas
esfarrapadíssimas, peneiras furadas com que tentaremos tapar o sol da
própria consciência. Podemos até mesmo fazer com que estas mentiras
ganhem força de lei, e que os donos de escravos possam estuprar e matar
nossas escravinhas sensuais, os arianos puros possam dar uma solução
final aos incômodos judeus, os samurais possam testar lâminas cortando
camponeses ao meio, ou as vadias possam nos livrar de uma gravidez
indesejada matando nosso próprio filho.
Sabemos todos que é justo e necessário dar graças a Deus a todo
momento. Não importa que substituamos Seu Nome por “ainda bem” ou “ufa”;
no fundo, é a Ele mesmo que dá graças o chinês que acende um bastão de
incenso aos “Céus” e o africano ofegante que se deixa cair de costas na
pradaria, contemplando a infinitude do céu estrelado, agradecendo
silenciosamente por ter sido livrado de uma fera que o atacava.
E sabemos todos que não devemos furtar. E não devemos mentir. E não devemos cometer adultério.
Quando, contudo, a sociedade enlouquece – e vivemos numa sociedade
enlouquecida – é frequentemente necessário que lembremos a nós mesmos e
ao próximo o que já sabemos todos, em virtude de ser lei natural. Que,
por vezes, tenhamos que brigar para impedir que o mal seja imposto por
lei e o bem proibido. Que precisemos salvar as vidas cujo valor é negado
pelo século, pela loucura muito peculiar que ataca aquela sociedade
naquele momento.
Este dever é de todos. Não é o dever específico do cristão, nem do
muçulmano, do judeu, do hinduísta, animista, budista ou do zoroastrista.
Paradoxalmente, toda e qualquer religião tradicional – pelo simples
fato de ser tradicional, por ter ouvido durante os séculos o que
milhares, milhões de pessoas de boa-vontade tinham a dizer sobre a busca
do Bem – há de conhecer, repetir e pregar a mesmíssima lei natural.
Esta lei, contudo, não há de ser o cerne de sua pregação, por uma razão
simples: ela não é nem algo que “precise” ser revelado pelo Divino nem
um caminho suficiente até Ele.
A lei natural é o mínimo; é o que nos faz ser plenamente humanos,
para, humanos que somos, podermos caminhar rumo ao Divino. Ela não é nem
pode ser confundida com a mensagem religiosa que, entre outras coisas, a
contém. A mensagem religiosa a contém por ser dirigida ao homem, e a
lei natural é o que deve reger o homem na sua relação com o mundo ao
redor.
A religião, todavia, não é nem tratado de boas maneiras nem código civil ou penal.
Compete ao clero, do papa ao menor dos ostiários, pregar a Vida
Eterna. Pregar a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus,
loucura para os gentios. Tratar das nossas almas, feridas nesta guerra
sem tréguas a que somos chamados, com a medicina dos sacramentos.
Alimentar-nos com o Pão dos Anjos. Curar-nos as almas, para que possamos
viver no mundo sem a ele pertencer.
A adesão – ou não – da legislação e da política à lei natural não
requer a atenção do clero. A relação entre o Estado e a lei natural não é
tema de religião nem necessária à salvação.
Ao contrário, até: é uma armadilha demoníaca tratá-la como se o
fosse. Fazer da luta política pela proteção legal à vida do nascituro
uma marca de catolicidade é, em última instância, negar que seja de lei
natural que a vida do nascituro deva ser protegida. É negar-lhe a
inocência, negar-lhe a humanidade, ao transformá-la falsamente em tema
de Fé. Temos fé no que não vemos, e vemos – nem que seja pelos exames
laboratoriais! – que o nascituro é vivo e é humano.
Mais ainda: assumir a luta pela lei natural como se fosse uma luta
intrinsecamente católica é cair na armadilha da mídia, que não consegue
perceber o que realmente é a Igreja e a reduz àquilo em que a Verdade
eterna faz intersecção com as besteiras do século, e olhe lá. É auxiliar
a pregar que a Igreja é um bando de esquisitões dizendo “não” às
alegrias, e só. É fazer com que a luta pela vida seja percebida como uma
maluquice a mais, irracional – ou mesmo antirracional –, pregada por
loucos sem noção alguma do mundo real.
Isto ocorre porque esta redução da Igreja ao combate contra a
violação deste ou daquele aspecto da lei natural faz com que aquilo que é
realmente intrinsecamente católico desapareça. Se a Igreja “é” o
combate ao aborto, à distribuição de camisinhas ou ao “casamento gay”,
ela “não é” o Cristo. Ela não é a Encarnação do Verbo. Ela não é a
Imaculada Conceição. Ela não é o Santíssimo Sacramento.
O que compete à Igreja pregar é o Eterno, é a Verdade Revelada. Esta
Verdade – que é uma Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade! –
tem, sim, corolários. Entre outros, ela ilumina e atrai a atenção a algo
que já é de lei natural, que é o valor e a dignidade da vida humana. Da
vida do camponês, da mulher, do judeu, do escravizado, do nascituro.
Não podemos, contudo, reduzir ou deixar reduzir a especificidade
católica a um ou mais corolários do que é o cerne da mensagem e do
próprio ser da Igreja: o Cristo. Não podemos permitir que a imprensa
venha nos pautar, que ela venha a transformar a luta pela vida em
catolicidade ou a catolicidade em luta pela vida. Ou contra o “casamento
gay”. Ou contra a exploração do pobre, especialmente o órfão ou a
viúva. Em todos estes pontos, a Revelação ilumina e atrai a atenção a um
ponto de lei natural. Não é, contudo, a Revelação que faz com que
tenhamos o dever de agir neste ou naquele sentido na sociedade, sim a
lei natural.
O combate pela lei natural é o combate de todo ser humano, não só de
todo católico. É um combate a que somos chamados individualmente ou em
grupos e associações que formemos; serão, contudo, associações de
pessoas, não braços da Igreja. Uma ação de pessoas, de leigos, de
indivíduos, de quem quer combater o mal – católico ou não –, não um
braço pastoral.
A Igreja, lembrou-nos com razão o Santo Padre, é como um hospital de
campanha, um hospital feito de lona, localizado logo ao lado do campo de
batalha.
A batalha pela lei natural é nossa, como seres humanos. Quando nossos
amigos também batalham por ela – como é seu dever, por serem eles
também seres humanos – e não têm acesso ao hospital, não acedem aos
Sacramentos, levemo-los, sem dúvida! Mas esta já é outra batalha, quiçá
bem mais importante.
Se o nascituro não pode se defender, compete a cada um de nós, seres
humanos, lutar pela vida de todo ser humano inocente. Em cada ser humano
inocente que é assassinado toda a humanidade é atacada. O assassinato
de inocentes é a negação da própria humanidade, e combatê-lo é dever de
todo ateu, muçulmano, judeu, budista… ou católico. Este combate é um
combate humano, feito em prol da humanidade. Não é um combate religioso,
nem o pode ser. Dizer que é um combate religioso é negar o valor do
combate e permitir que ele seja tratado como uma idiossincrasia
qualquer, pois é assim que o mundo trata a religião.
É urgente que não nos deixemos mais confundir. Que não façamos mais a
besteira de querer que o Papa implore a governantes de terceiro mundo
que aprovem ou vetem esta ou aquela lei antinatural, que nós, leigos,
burramente deixamos passar. Ao Papa compete pregar a Cristo crucificado.
A nós, leigos, é que compete combater no terreno imundo da política.
É urgente que não mais nos confundamos. Que não façamos mais a
besteira de levar imagens de santos para passeatas em que estamos
lutando pelo humano, não pelo divino. Passeatas pedem cartazes, gritos e
a lembrança permanente de que estamos ali por sermos seres humanos, não
por sermos católicos.
É urgente que não mais confundamos as almas. Que não ofendamos a Deus
e a Seus Santos, levando cartazes, bonequinhos e balõezinhos de
campanhas políticas – por mais nobres que sejam! – para as procissões em
que prestamos homenagem e culto de veneração e rogação a Seus Santos.
Cartazes, bonequinhos e balõezinhos são feitos para serem vistos pelos
homens. Procissões são feitas para que os Céus nos ouçam.
Que Deus nos ajude, para que sejamos os seres humanos que Ele quer!
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