ihu - "Tudo o que os processos de anulação de casamento fazem é
colocar uma barreira no caminho de volta dos casias à Igreja", escreve Peter Daly, padre da arquidiocese de Washington, D.C, em artigo publicado no National Catholic Reporter. 13-01-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O papa quer saber o que “nós” pensamos sobre o assunto.
Isso por si só já se qualifica como um pequeno milagre. Em nossa Igreja totalmente hierárquica, o conceito de “sensus fidelium” tem sido praticamente uma letra morta desde o Concílio Vaticano II. Normalmente, Roma fala e nós escutamos. Mas agora ela quer ouvir de nós. Que bom.
Em preparação para o encontro dos bispos no mês de outubro deste ano, o Papa Francisco pediu a toda a Igreja para responder a 38 perguntas
subsumidas em nove categorias, todas relacionadas ao casamento e à vida
familiar. Aqui quero considerar apenas uma destas perguntas: aquela
sobre anulação.
Eis o que penso: chegou a hora de analisar o processo atual de
anulação do casamento e olhar para o Oriente para sabermos o que os
nossos irmãos e irmãs ortodoxos estão fazendo.
Nos evangelhos, está bastante claro que Jesus não aprovava o divórcio e novo casamento. Ele diz que isso equivale ao adultério, que é uma linguagem muito dura – especialmente vindo de Jesus. Mas se somos seguidores dele, temos que ao menos tentar lidar com o seu ensinamento. O processo de anulação da Igreja é uma tentativa de levar o ensinamento de Jesus a sério e, contudo, permitir às pessoas casarem por uma segunda (ou terceira) vez.
O problema com o processo de anulação na Igreja Católica
é que ela toma o que deveria ser um assunto pastoral e o transforma em
uma questão de direito. É complicado, muitas vezes injusto e
frequentemente não inteligível às pessoas envolvidas. Em alguns
tribunais as coisas são facilitadas. Noutros, são dificultadas. São
imprevisíveis.
Anulações de casamento chegam a cada ano em nosso programa do Ritual da Iniciação Cristã de Adultos – RICA.
Sempre temos diversos casais divorciados e recasados que querem
participar nos sacramentos. Muitas vezes eles se encontram nessa
condição há anos, ou mesmo décadas. Às vezes seus filhos sequer sabem do
casamento anterior. Até o momento em que essas pessoas se sentiram
atraídas pela Igreja, nem mesmo ocorria a elas que
poderia precisar de uma anulação católica. Não faz sentido algum
dizer-lhes que precisam de anulação de um casamento feito há 30 anos em
uma Igreja Batista ou perante um juiz de paz. Tudo o que os processos de anulação fazem é colocar uma barreira em seu caminho de volta à Igreja.
Há uma brecha para os católicos. Se qualquer uma das partes do
casamento anterior foi católico e o casamento aconteceu em cerimônia não
católica, a anulação é apenas uma questão de papelada. É um processo
bem fácil que dura apenas algumas poucas semanas.
Com frequência, pego casos assim. Porém eles me parecem injustos. Isso porque premia pessoas que desobedeceram a Igreja anos atrás, casando-se fora da Igreja.
A maioria das pessoas faz uso dela assim: como uma brecha. Elas têm a
chance de um segundo casamento por causa do tipo de cerimônia que
tiveram antes.
Os casos mais difíceis envolvem pessoas que não eram católicas à
época e que não tinham razão alguma para se casar no catolicismo.
Ironicamente, estas precisam passar por um processo legal antes de um
tribunal eclesiástico.
É doloroso é inútil. Elas precisam encontrar testemunhas, levantar
registros, depoimentos, desenterrar antigos contratos e abrir velhas
feridas. Toda a linguagem aqui está no âmbito legal, não pastoral.
Falamos de petições, tribunais, testemunhas, advogados, peticionários,
réus e provas. É kafkiano. Transforma pastores em burocratas, sem
propósito algum.
Às vezes há boas razões pelas quais as pessoas não querem entrar em
contato com o ex-cônjuge. Pode ter havido abuso ou violência. Elas se
expõem a novas feridas. Elas podem mesmo nem saber onde o ex-cônjuge ou a
testemunha se encontra depois de tantos anos. Tenho lidado com casos em
que o antigo companheiro não libera a anulação por maldade.
Ninguém é impedido de conseguir o divórcio e de se casar novamente
devido ao processo de anulação. Porém, muitas pessoas são impedidas de
virem à Igreja (ou voltarem a ela) devido ao processe de anulação. É espiritualmente contraprudocente.
O processo de anulação da Igreja Católica precisa de uma revisão total. Deveríamos olhar para o que acontece com as Igrejas ortodoxas para melhor sabermos como melhor lidar com o assunto.
Nas igrejas do Oriente, a primeira anulação é feita inteiramente pelo
pároco. Afinal de contas, ela é uma das pessoas envolvidas no caso. Ele
conhece as pessoas envolvidas e pode julgar quanto à sinceridade e
seriedade. Ele pode falar com as pessoas sobre o casamento e ver se elas
estão sendo sinceras no desejo de reconciliação com a Igreja. Nenhum tribunal no centro da cidade poderá fazer isso.
Basicamente, nas Igrejas ortodoxas os casais ganham
uma segunda chance. O primeiro casamento pode ser anulado por um pároco
com uma simples conversa e confissão. Mas para o quarto ou quinto
casamento irão precisar da permissão do bispo na maioria das Igrejas ortodoxas, até onde sei. Entretanto, trata-se de um processo pastoral, não legal.
O nosso processo legal de anulações é um resquício dos tempos em que a Igreja Católica era a lei civil para casamentos em muitos países. Hoje, isso não faz sentido algum.
Ao longo dos anos, tenho visto muitos casais ficarem enfurecidos
comigo, ou com a Igreja. Eles dão a volta e vão embora com raiva. Um
amigo meu, que é padre, certa vez me contou o seguinte: “Enquanto vocês
estiverem sendo tão rigorosos sobre a questão do divórcio e do casamento
pela segunda vez, haverá vazão para a Igreja episcopal”.
Às vezes eu apenas sigo o caminho pastoral. Por exemplo, tive casais
em seus 70 ou 80 anos que foram casados décadas atrás. Eles quase não
lembram do primeiro casamento, deixaram pra lá as recordações. Eu também
tive doentes em estado terminal que queriam voltar para a Igreja. Nestes casos não há tempo ou energia para obter uma anulação.
Se eu fosse o papa, deixaria a decisão sobre as anulações e
participação nos sacramentos inteiramente nas mãos do pároco. Estes
casos deveriam ser revolvidos no foro interno do confessionário. A
ênfase deveria cair sobre a misericórdia, não na lei. Fim da história.
Sigamos em frente.
As pessoas que se dirigem ao setor de Ritual da Iniciação Cristã de Adultos – RICA são espiritualmente maduras. São pessoas sérias que levam a Igreja Católica a sério. Descobri que estes convertidos constituem os melhores católicos e os testemunhos mais fortes da fé.
Se colocarmos um obstáculo legal no caminho dos convertidos, tudo o que realmente estaremos fazendo é mantê-los afastados da Igreja. E isso não é bom!
Isso não altera nenhum dos fatos da vida destas pessoas. Elas já se
encontram no seu terceiro ou quarto casamento. Não seria moral ou
prudente esperar que a pessoa deixe o atual cônjuge só porque assim
dizemos.
Aos nossos fiéis, o verdadeiro escândalo não é o fato de que as pessoas divorciadas e casadas novamente possam receber a Comunhão, mas que as pessoas sinceras que realmente desejam a Eucaristia sejam mantidas afastadas dela devido a um processo de anulação legalista, complicado, caprichoso e alienante.
Permitam aos divorciados e recasados fazerem uma boa confissão e
oferecer sincera contrição e um firme propósito de correção. Deixe-as
recomeçarem. Deus tem nos perdoado por coisas bem piores.
Padres e bispos deveriam ser pastores, não juristas. De qualquer forma, é apenas a opinião de um pastor...
Fico feliz que o papa esteja perguntando sobre isso e, de fato, querendo saber o que está acontecendo na Igreja local.
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