Cabem ao leigo, portanto, os assuntos temporais, opináveis, aqueles nos quais é permitida uma pluralidade de opções, de técnicas, de respostas políticas igualmente lícitas.
Brasília,
(Zenit.org)
Por Paulo Vasconcelos Jacobina
Não é justo que um leigo, ou um grupo de leigos, resolva
dissentir publicamente do Sagrado Magistério naquilo que este, por graça
própria, tem por missão específica. Igualmente não é justo que algum
leigo seja levado a crer que, para ser um bom católico, tenha que se
submeter aos gostos desta ou daquela parte do clero em matéria secular.
A recente história da Igreja tem sido bela para aqueles fiéis que
sempre foram chamados de leigos; alçados a um grau de responsabilidade
muito alto pelo recente Concílio Vaticano II, que na Constituição
Dogmática Lumen Gentium define, pela primeira vez, o leigo a partir de
um conceito afirmativo. De fato, se ele era anteriormente definido por
exclusão, como “aquele fiel que não recebeu nem o sacramento da Ordem,
nem fez profissão de vida religiosa”, agora ele é definido
positivamente, na LG 31, como aquele a quem “por vocação própria,
compete procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e
ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer
ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida
familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São
chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados
pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a
partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos
outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação
da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente,
iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão
estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e
progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.”
Cabem ao leigo, portanto, os assuntos temporais, opináveis, aqueles
nos quais é permitida uma pluralidade de opções, de técnicas, de
respostas políticas igualmente lícitas: ou seja, aquilo que se rege pela
conveniência, pela oportunidade, pela discricionariedade, pela
negociação e acomodação, dentre as várias realidades culturais,
históricas e ideológicas que se apresentam na lícita ordenação daquilo
que é material, secular, temporal, contingente. Aqui se manifesta a
catolicidade da fé, porque no berço maternal da Igreja cabem cristãos
leigos das mais diversas matizes políticas, culturais, étnicas e
ideológicas, todos igualmente abertos aos ensinamentos da Igreja
naquelas matérias que se ordenam com a vida eterna ou a ela se
encaminham: os meandros da fé e as definições magisteriais de cunho
moral, o que envolve a lei eterna, a lei revelada, a lei natural e a
doutrina social que delas decorre. Firmes nestes princípios
inegociáveis, os leigos católicos respondem com entusiasmo ao convite
eclesial de se envolver cada vez mais profundamente na vida política,
pública, social e cultural, para santificar o mundo.
Discernir e ensinar estes assuntos, aqueles nos quais não há espaço
para escolhas, pertence propriamente à hierarquia, ao clero, de quem
todos os leigos das diversas matizes esperam uma palavra de orientação,
de rumo, de abertura e de verdadeira guia. Assuntos como a defesa da
vida, da família, da liberdade religiosa e da defesa do bem comum são
matéria vinculante para o leigo. E é aqui que os leigos cristãos
deparam-se com um grande desafio na vida social, cultural e política:
podem encontrar-se perante uma cultura ateia ou agnóstica, ou mesmo
violentamente laicista, em que os outros cidadãos não entendem a
natureza dessa relação entre o leigo católico e o clero, e o acusam,
quando recusa-se a desobedecer ao santo Magistério nestes assuntos, de
violar a separação entre a Igreja e o Estado laico, e de não ser mais
voz legítima para o debate democrático estatal. É um preço bem alto para
alguns, a quem só resta o recurso à escusa de consciência, com seus
consectários e inevitáveis prejuízos sociais, econômicos e financeiros
pessoais.
Há, no entanto, um problema que ocorre no sentido justamente inverso:
é quando os outros membros da Igreja, aqueles que recebem a Sagrada
Ordem ou professam votos, sofrem a tentação de invadir a esfera laical e
passam a agir politicamente, partidariamente; foi exatamente contra
esta tentação que o Papa Francisco alertou na sua primeira homilia como
Papa, em 14.03.2013, na Capela Sistina. Ele disse que a Igreja Católica
deve se concentrar no Evangelho de Jesus Cristo, caso contrário, corre o
risco de se transformar em uma "ONG piedosa". "Se não professamos Jesus
Cristo, nos converteremos em uma ONG piedosa, não em uma esposa do
Senhor". É claro que em tempos excepcionais, como grandes crises
institucionais ou grandes catástrofes naturais, estes limites tornam-se
menos claros, mas quando o clero quer impor ao leigo, em nome da
obediência religiosa, decisões unilaterais em matérias opináveis, que
versam sobre assuntos temporais, seculares, estritamente políticos ou
político-partidários, ou vale-se da estrutura eclesial para impor
socialmente suas próprias escolhas ideológicas particulares, ainda que a
pretexto de “justiça social” ou de “opção pelos pobres”, desobedece à
orientação papal citada e, pior que isso, desconfia da própria graça que
Deus não pode deixar faltar àqueles que foram legitimamente chamados
para isto, os leigos.
Não é justo que um leigo, ou um grupo de leigos, resolva
dissentir publicamente do Sagrado Magistério naquilo que este, por graça
própria, tem por missão específica. Igualmente não é justo que algum
leigo seja levado a crer que, para ser um bom católico, tenha que se
submeter aos gostos desta ou daquela parte do clero em matéria secular.
Este é o desvio que a história chama de “clericalismo”: a tendência
lamentável de imaginar que os clérigos seriam mais competentes que os
leigos católicos no exercício direto do governo daquele campo que,
segundo o próprio Magistério, vocacionalmente cabe aos leigos de maneira
ordinária.
Por isto, dói no coração dos leigos profundamente comprometidos com
Jesus ver, em determinados âmbitos de luta partidária, símbolos
eclesiais ao lado de logotipos de ONGs e organizações que,
ordinariamente, são exatamente os adversários que os leigos católicos
muitas vezes enfrentam para viver com lealdade o seu cristianismo no
mundo e santificá-lo a partir de dentro. Lembremos o Papa Francisco: a
Igreja não é uma ONG. Exatamente porque é dever do clero corrigir o
leigo, na lógica da estrutura eclesial, é muito difícil para o leigo
corrigir o clero, quando ultrapassa a fronteira que o próprio clero
ensinou existir. É preciso, portanto, que os órgãos hierárquicos e
clericais confiem nos leigos católicos, mesmo quando as suas escolhas
temporais contrariem as ideologias deste ou daquele ordenado; uma mãe
deve demonstrar amor e paciência por todos os filhos, mesmo se muitas
vezes, pelas melhores intenções, tem vontade de substituí-lo e caminhar
no lugar dele.
E mesmo quando este filho já está com o coração tantas vezes
malferido por não pertencer a nenhum dos grupos por quem tantas vezes os
documentos eclesiais declaram uma “opção preferencial”, merece ser
respeitado no seu direito de reger livremente o que é secular, no âmbito
do opinável. Entre o laicismo e o clericalismo, muitas vezes dói mais
no coração do leigo cristão sofrer o clericalismo, que o vê como um
menor de idade. Mas como diz a bela canção sertaneja de Sérgio Reis, não
raro é aquele filho adotivo, sofrido e esquecido, que, embora tendo
menos espaço no coração materno, não raro permanece mais leal nos
momentos mais difíceis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário