[unisinos]
Em uma entrevista recente ao jornal francês católico La Croix, o Cardeal Gerhard Ludwig Müller,
na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
mencionou que um dos deveres de seu departamento é a missão de
“estruturar teologicamente” o pontificado do Papa Francisco, dado que o atual Sucessor de Pedro não é teólogo de profissão.
Em referência às considerações expressas pelo prefeito do ex-Santo Ofício, o Vatican Insider fez uma série de perguntas ao Pe. Benoît-Dominique de La Soujeole,
OP, concernentes às tarefas da Congregação para a Doutrina da Fé e ao
que a Tradição da Igreja ensina sobre a relação entre a teologia, a
doutrina e o magistério. Em suas respostas, o professor dominicano
percorre, de forma simples e clara, alguns dos fatos “fundamentais” que,
às vezes, parecem obscurecidos pelas especulações infindáveis de
inúmeros comentadores na blogosfera que brincam de ser “agentes da
Ortodoxia”.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 21-04-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Pe. Benoît-Dominique de La Soujeole, OP, é frade
dominicano da Província de Toulouse, na França (onde nasceu em 1955).
Desde 1992, é membro do conselho editorial da importante publicação “La Revue Thomiste de Philosophie e de Théologie”.
Desde 1999 mantém o título de Professor de teologia dogmática (Igreja e
os sacramentos) da Faculdade de Teologia da Universidade de Friburgo,
na Suíça, onde também é o reitor do mosteiro dominicano de São Alberto
Magno.
Eis a entrevista.
Fornecer uma “estrutura teológica” ao pontificado está entre as tarefas da Congregação para a Doutrina da Fé?
Antes de tudo, devemos esclarecer as palavras aqui empregadas. A Congregação na qual o Cardeal Müller desempenha o papel de prefeito é a Congregação De doctrina fidei. Segundo o Artigo 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus,
de 26 de junho de 1988, é seu dever “promover e tutelar a doutrina
sobre a fé e os costumes em todo o mundo católico”. Doutrina (do latim docere,
que significa ensinar) é a inteligência que a Igreja tem de sua fé, que
o Colégio Episcopal, junto de seu líder – o Bispo de Roma –, guarda
graças ao auxílio específico do Espírito Santo.
Teologia é, em si, a inteligência que uma pessoa (o teólogo) ou um
grupo de pessoas (uma “escola de pensamento”) tem da fé de da Igreja. A
teologia não recebe auxílio especial do Espírito Santo, mas apresenta
opiniões que são livremente discutidas por teólogos. O único requisito
em termos da relação entre a teologia e a doutrina é que a teologia não
deve contradizer a doutrina.
Então, em resposta à sua pergunta, parece que o termo “teológico” que
o cardeal usou em sua expressão “estrutura teológica” é usado em
sentido muito amplo podendo, por outro lado, se referir à doutrina. O
que a Constituição Apostólica Pastor Bonus diz em geral
sobre a Cúria Romana nos parágrafos 7 e 8 de sua introdução pode nos
ajudar a compreender a expressão do cardeal: A natureza da Cúria é
ministerial e, de certo modo, instrumental (n. 7), auxiliando o papa
romano de forma vicária, em seu dever pessoal como pastor de toda a
Igreja e em sua relação com os bispos (n. 8). Como tal, a Congregação De doctrina fidei
auxilia o papa na responsabilidade que tem como garante da fé da
Igreja, suprindo-lhe com “instrumentos” adequados listados no Artigo 51
da Constituição Apostólica Pastor Bonus.
As palavras do Cardeal Müller fazem parecer que, se um pontífice não for um “teólogo de profissão”, então o seu pontificado poderá precisar da tutela de uma classe de teólogos que trabalhem na Congregação para a Doutrina da Fé. O senhor considera plausível esta forma de definir a relação entre o magistério pontifício e a Congregação para a Doutrina da Fé?
Cada Papa, devido ao fato mesmo de ser o Papa, possui o carisma de
Pedro, o que significa que ele tem a tarefa de fortalecer os seus irmãos
na fé (Lucas, 22,32) com a ajuda do Espírito Santo. É um papel de
julgar (no sentido de dizer a verdade) que Pedro e seus sucessores têm. Quanto a este papel, a Congregação De doctrina fidei
fornece auxílio através de um trabalho prelimitar feito antes de o Papa
executar o seu papel e através do trabalho de implementação, após ele
ter executado o seu dever. Até que ponto o Papa pode voltar-se à
Congregação para a Doutrina da Fé depende de até que ponto ele – o Papa –
está em condição de fazer todo o trabalho preparatório por si mesmo.
Ainda faz sentido estabelecer uma distinção dialética implícita entre papas “teólogos” e papas “pastores”?
A distinção entre “teologia” (ou doutrina também) e “acompanhamento
pastoral” é uma distinção apenas, o que não quer dizer que sejam duas
coisas separadas. O acompanhamento pastoral é a doutrina posta em
prática. Todas as partes da doutrina têm uma finalidade pastoral. Todos
os papas são tanto doutores da fé quanto pastores da Igreja. Uma relação
“dialética”, no sentido de uma dialética do tipo hegeliano de oposição,
não faz nenhum sentido.
Em tese, pode o ministério do Sucessor de Pedro ser considerado teologicamente “carente”, necessitando de uma certa “estruturação teológica” por pessoas outras que não o Papa?
Com certeza, não! O Papa tem tudo o que é preciso para enunciar a fé da Igreja. A Congregação De doctrina fidei ajuda-o nas fases de preparação e implementação, mas a “crux” consiste em enunciar a fé da Igreja, e isso é exatamente o ministério pessoal e próprio do Papa. Por “estruturar”, o Cardeal Müller pode ter desejado dizer este trabalho, sobretudo o preparatório.
Na estrutura apostólica da Igreja, que se acredita estar de acordo com a vontade do próprio Deus, quem é o guardião do depositum fidei? Será o Papa com os bispos, ou a Cúria Romana com suas Congregações e órgãos, incluindo o dicastério doutrinal?
[O guardião] é o próprio Papa. A Cúria Romana tem um papel meramente
instrumental e vicário: ela não existe nem opera por si mesma, mas
dentro de sua própria dependência essencial do pontífice. Quando a Sé de
Pedro está vacante, suspende-se todo o trabalho das Congregações
(exceto as tarefas rotineiras).
O Papa precisa ter uma “linha teológica de pensamento” própria, um perfil teológico original, reconhecido e característico?
O Papa, em virtude de ser o Papa, não pertence a nenhuma “escola de
pensamento” teológica específica. Ele enuncia a fé da Igreja (a
doutrina) de acordo com a Tradição que ele, no momento, representa. Ele
não é “teólogo” mas “doutor”. Ele pode, como indivíduo, ter as suas
próprias preferências, o seu próprio histórico, a sua própria formação
intelectual pessoal, mas estes elementos não são critérios para se
interpretar o seu ensinamento magisterial. O critério principal de
interpretação, como lembrou Bento XVI em sua alocução à Cúria em 2005, é aquele da continuidade substancial com a Tradição.
Será que, de alguma forma, as Congregações vaticanas ou os colaboradores do Papa participam do carisma da infalibilidade que este último, em certos casos, possui?
A infalibilidade é um carisma estritamente pessoal que o Papa tem; as
Congregações não a compartilham. As decisões tomadas pelas Congregações in forma communi
(não de forma específica) são decisões tomadas pelas Congregações em
suas funções como instrumentos vicários do Papa; a autoridade delas é
real, mas não carregam a autoridade pessoal do Papa no mesmo nível das
decisões aprovadas por ele de forma específica.
Certas expressões e lemas do linguajar jornalístico afirmam que, nos anos em que Wojtyla era o Papa, havia uma espécie de “diarquia”, com o Papa João Paulo II quase compartilhando o seu ministério com Joseph Ratzinger, ao confiar a este a gestão da doutrina. Seria esta uma interpretação legítima da realidade da época ou seria uma intepretação equivocada do ponto de vista da natureza e estrutura da Igreja Católica?
Do ponto de vista da natureza dogmática da Igreja, esta interpretação
não é legítima. O ofício papal é estritamente pessoal. Isso não
significa que um Papa não possa ser, particularmente, próximo ao
prefeito de uma Congregação e, no caso específico, do prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, como foi o caso com João Paulo II e o Cardeal Ratzinger. Mas não há dúvidas de que, dogmaticamente, a responsabilidade doutrinal reside no Papa, na base de seu carisma pessoal.
A ideia de um papado que seja “carente” em termos de “estrutura teológica” ecoa antigas teorias medievais sobre a possibilidade de um “Papa herege”?
Acho que não. A “estruturação teológica” da qual fala o Cardeal Müller
– até onde vai a minha compreensão dessa expressão – é uma colaboração
ativa no ministério pessoal do Papa e, com certeza, não um ofício de
supervisão que impeça o risco de um desvio papal.
Em termos da relação entre a teologia e o magistério, o que podemos aprender a partir da experiência teológica de São Tomás de Aquino (tendo em mente, por exemplo, a evolução de seu pensamento concernente à doutrina da Imaculada Conceição)?
Se aceitamos a distinção entre doutrina e teologia, devemos pensar que a teologia prepara os insights
(a doutrina) que virão da Igreja (do Concílio e do Papa). Quando se
adota uma opinião teológica no magistério, ela deixa de ser teológica e
se torna doutrinal. São Tomás de Aquino recebeu o título de Doctor Communis
porque ele é o doutor cujas opiniões foram adotadas pelo magistério.
Dito isso, algumas das opiniões dele não foram adotadas, mas foram, na
realidade, contraditas (por exemplo, aquelas sobre a Imaculada
Conceição). A distinção teologia/doutrina também se aplica a São Tomás de Aquino.
Há anos vem-se refletindo sobre a relação entre a teologia e o magistério. A teologia é um instrumento do magistério e/ou da Santa Sé, ou ela tem a sua própria autonomia legítima para além do escopo do magistério?
A teologia é a inteligência da fé. Está, pois, baseada na fé em seu
estado atual de inteligência (ou seja, a doutrina) e busca “ir além”. A
teologia não é, portanto, autônoma no sentido estrito, já que está
enraizada no que a Igreja acredita segundo a sua inteligência atual.
Dentro dessa dependência, ela é “livre” para desenvolver a inteligência
da fé, e as conclusões a que chega são verificadas pelo magistério, quer
este as rejeite, as adote ou permaneça em silêncio, até que a questão
seja suficientemente resolvida.
Nos anos pós-Conciliares, houve quem disse que certos círculos teológicos estavam querendo exercitar um “magistério paralelo”. Poderia esta tentação surgir novamente, talvez sob novas formas, entre “bispos teólogos” que recebam postos de responsabilidade dentro da Igreja?
Um “magistério paralelo” de teólogos é algo absurdo, sem sentido. Há
somente um magistério e a sua base é sacramental (ordenação episcopal,
com o ofício único próprio do Bispo de Roma).
Alguns teólogos têm, na realidade, exercido uma influência muito
forte e negativa graças a certos meios de comunicação. Este “magistério
paralelo” é a negação da distinção entre doutrina e teologia. Se um
bispo é também teólogo, quando ele adota uma postura, é seu dever sempre
distinguir, claramente, entre o seu papel como doutor da Igreja (ou
seja, doutrinal) e a sua competência como teólogo.
Quando parece que um aspecto doutrinal exige estudos posteriores no
intuito de responder às questões do nosso tempo, aqueles que formam o
magistério (os bispos e o Papa) devem examinar o sensus fidei
da comunidade eclesial (não apenas os teólogos, mas também os homens e
mulheres espirituais, os santos) no sentido de tentar discernir o que é
que o Espírito Santo está tentando dizer e expressá-lo nos termos mais
apropriados, como se lê no parágrafo 12 da Constituição conciliar Lumen Gentium.
A cultura dos meios de comunicação de hoje tende a eliminar a
distinção entre doutrina e teologia, quando um bispo se manifesta, e
isso é deplorável, podendo criar confusão no espírito dos fiéis.
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