sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Prova de amor maior não há

[domtotal]
Por Tânia da Silva Mayer*


Só no horizonte da Cruz se vislumbra a fragilidade do Filho de Deus envolto em faixas, desabrigado, desprotegido e perseguido pelos algozes desse mundo.


Há uma relação intrínseca entre a manjedoura e a cruz. (Divulgação)

Ainda estamos na oitava do Natal e a canção do Tríduo Pascal não para de ser tocada nos ouvidos da memória. Acontece que a teologia sempre apontou a intrínseca relação entre a Encarnação e a Páscoa, ou entre o Natal e o Tríduo Pascal do Senhor.
Os Evangelhos testemunham que, somente após a morte e ressurreição de Jesus, os discípulos foram capazes de compreender o mistério que lhes fora revelado por Deus. A passagem da desesperança para o anúncio, da qual os discípulos de Emaús se tornaram ícones, revela o quão incompreensível era, para os seguidores e seguidoras de Jesus, todos os acontecimentos que circunscreveram a vida e paixão do Filho de Deus. Está claro que os discípulos e as discípulas ainda não estavam imbuídos do Projeto do Reino e do messianismo de Jesus, obviamente, deveriam se desesperar e desesperançar diante da tragédia da Cruz. Só com o passar do tempo, uma leitura da vida partilhada com o Mestre fê-los compreender o sentido de tudo.
Os próprios escritos neotestamentários são consequências da Páscoa de Jesus. Eles foram redigidos como testemunho às comunidades cristãs nascentes, ao mesmo tempo em que garantiram que a Palavra de Jesus Cristo fosse transmitida às gerações de cristãos e de cristãs. As narrativas sobre o nascimento de Jesus, tal como em Lucas e Mateus, ou o prólogo de João, que indicam a origem de Jesus, só foram relatadas depois que Jesus foi morto pela maldade e injustiça humanas. Desse modo, só no horizonte da Cruz se vislumbra a fragilidade do Filho de Deus envolto em faixas, desabrigado, desprotegido e perseguido pelos algozes desse mundo. Há, portanto, uma relação intrínseca entre a manjedoura e a cruz. Essa relação foi bastantemente afirmada pela Igreja antiga, que percebia a cruz como a manjedoura do Menino, o Príncipe da Paz, e vice-versa. Também por isso é que afirmamos que a Encarnação de Jesus se concretiza na morte da Cruz.
Mas não é bem por essa teologia que a Canção Pascal ecoa pelo ar, embalada pela dor das vítimas que não podem ver o Sol da Justiça despontar no horizonte. O nome de Luiz Carlos Ruas nos faz cantar a máxima cristã, que é baliza da postura a que somos chamados a ter uns para com os outros, tal como Jesus: doar a vida. A vida do Luiz foi sepultada pela maldade de dois homens, que resolveram matá-lo no local mesmo onde ele trabalhava, há vinte anos. Isso só pode ser reconhecido como crueldade. Depois de agredirem duas travestis, os dois homens partiram para cima do vendedor ambulante que havia interferido na briga, a favor das moradoras de rua. Defendeu o direito daqueles que têm sua dignidade violada na rua, Luiz é o mártir que tombou defendendo as menores de suas irmãs. Eu não sei se ele as conhecia ou não, mas o fato é que elas eram próximas a ele e ele próximo a elas. Elas que sofrem a exclusão das ruas e das suas identidades sexuais (entre outras exclusões) foram socorridas pelo último gesto de bondade, de fraternidade e de misericórdia do seu irmão. O fato é que o Luiz Carlos as amou e, por amá-las, não pôde ficar indiferente às agressões que sofriam. Mas o amor não é, nunca, amado. E a prova disso são as lágrimas nos olhos dos familiares, dos amigos e dos que um dia já cruzaram com o Índio por aí.
Num país lgbtfóbico como o Brasil, no qual a população LGBT é violentada psicológica, moral, simbólica e fisicamente, desde a infância até a idosidade, e no qual a bancada religiosa do Congresso Nacional vomita, tal como de púlpitos religiosos, um rio caudaloso de preconceito e ódio contra essas pessoas, a postura do Luiz vai de encontro à máxima evangélica do ser cristão. Talvez ele nem tivesse fé em Jesus, talvez não frequentasse nenhuma religião, talvez ele nem fosse religioso, mas a sua vida doada interpela, e mais, provoca, ou deveria provocar, os que se dizem cristãos atrás das telas dos computadores e nos louvores das igrejas, afirmando certa defesa da vida e, muitas vezes, justificando o ódio e o preconceito contra pessoas, inclusive LGBTs.
Seus assassinos devem ser julgados e condenados pelo crime que cometeram. Que a justiça não tarde em fazer justiça. A narrativa da sua vida precisa ser contada sempre no encontro com posturas individualistas, fascistas e preconceituosas, seu nome e testemunho não podem ser esquecidos. Irmanado a Jesus e abraçado por Deus, celebrou, injustamente, a sua páscoa numa noite de natal. E na noite que era feliz para alguns, mas que para outros era triste, agora, a canção natalina cedeu à canção pascal. E o corpo violentado no chão fez ecoar com tristeza as palavras de Jesus: “Prova de Amor maior não há, que doar a vida pelo irmão”.

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

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