quinta-feira, 19 de julho de 2018

Perspectivas de Gênero e Cristianismo

Por Élio Gasda

A partilha da experiência de sujeitos discriminados na sociedade por sua identidade pede uma postura diferente aos cristãos.


O corpo sexuado é um dom de Deus e a sexualidade é da ordem do dom.
O corpo sexuado é um dom de Deus e a sexualidade é da ordem do dom. (Madalena Veloso by Unsplash)
  
O que sabemos sobre questões de gênero? O que faz uma mulher ser mulher? O que faz um homem ser homem? Apenas sua anatomia? Existem questões de gênero na Política? E na família? Quais seriam estas questões? Como irromperam estas questões?
Vivemos na encruzilhada entre duas revoluções: a revolução sexual e a revolução biotecnológica. O processo revolucionário de legitimação das minorias faz compreender que ser mulher ou homem não se reduz à identidade biológica (macho ou fêmea), mas existem outras dimensões. Ser mulher e ser homem é um chamado à liberdade e à responsabilidade que todo ser humano deve ter si.

Não há nenhum mal em mudar de opinião a partir de novas evidências. Informação! Repetir condenações severas ou advertências apocalípticas sem informação suficiente sobre o assunto nos fecha ao diálogo. Precisamos escutar com humildade, espírito de acolhida e dialogar com liberdade e honestidade sobre o tema. As questões de gênero estão vinculadas à sexualidade, ao corpo e à forma com que a cultura os configura.
Deus criou a pessoa humana à sua imagem e semelhança e viu que era muito bom. O corpo sexuado é um dom de Deus e a sexualidade é da ordem do dom. Nada é mais misterioso aos olhos do ser humano que a densidade do seu próprio corpo. A sexualidade está presente nele. Ela expressa o mistério da pessoa como “ser humano todo inteiro, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade” (Gaudium et spes, 3). A sexualidade está integrada na totalidade da nossa personalidade (Gaudium et spes, 51) e somente pode ser compreendida adequadamente dentro desta visão integral.
Uma avaliação justa e respeitosa da pessoa humana leva em consideração a sua totalidade. Não reduz a pessoa à sua genitália ou a um ato sexual ou a comportamentos esporádicos insuficientes para qualquer avaliação justa. O corpo é um referente obrigatório na construção da identidade humana. Corpo e vivência da sexualidade são indissociáveis, são a condição básica para que cada pessoa viva seu projeto de vida no mundo. A sexualidade deste corpo é uma realidade dinâmica que não aparece em um momento fixo da vida e de uma vez por todas. Seus elementos estão submetidos, do nascimento até a morte, à lei da evolução e das relações com os outros. Toda a existência é experimentada através do corpo. Portanto, é preciso conhecer as diversas tendências da sociedade dentro da qual se elabora a relação entre corpo e sexualidade. Caso contrário, seria anacrônico abordar problemas de hoje com categorias científicas, religiosas e morais de séculos passados. Princípios precisam ter viabilidade na realidade das pessoas.
A perspectiva de gênero oferece elementos para o reconhecimento de outras identidades. A acolhida destas identidades nas comunidades cristãs leva a reavaliar as práticas da Igreja e sua doutrina moral. A partilha da experiência de sujeitos discriminados na sociedade por sua identidade pede uma postura diferente aos cristãos. Fazer das igrejas um espaço de acolhida.
“Deus não é de modo algum à imagem do homem. Deus é puro espírito, não havendo nele lugar para a diferença dos sexos” (Catecismo §370). É preciso evitar qualquer discrepância com esta mensagem da Revelação. Mulheres e homens são criados à imagem divina. A cultura do patriarcalismo presente na Bíblia e na história do cristianismo outorgou aos homens o monopólio da representação divina. Uma teologia majoritariamente feita por homens colocou os homens em posição de superioridade em relação às mulheres. O conceito de gênero pode ajudar a corrigir essa visão.
Está em jogo a fidelidade ao Evangelho. Abordar as questões de gênero nos ajudará a superar as relações alicerçadas na discriminação: “Na América Latina é necessário superar a mentalidade machista que ignora a novidade do cristianismo, onde se reconhece e se proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem” (Aparecida, 453).
Toda a Lei se resume num só mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 39). Sejamos solidários na busca da felicidade. A finalidade da diferença entre as pessoas é a comunhão. O conceito visa erradicar as desigualdades surgidas na diferença para construir um mundo em que as pessoas possam viver sua própria identidade. Nenhum indivíduo se resume à sua identidade de gênero ou orientação afetivo-sexual. “Toda pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, todas têm uma mesma identidade fundamental: ser criatura e, pela graça, filho de Deus, herdeiro da vida eterna” (Congregação para a Doutrina da Fé. Carta aos Bispos sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais, 1986, n. 16).
A dignidade de uma pessoa é anterior a qualquer sistema de normas morais religiosas. Deus infere a cada um a mesma e inalienável dignidade e o torna destinatário de sua Graça. “Cada pessoa deve ser respeitada e acolhida com respeito, procurando evitar qualquer sinal de discriminação e, particularmente, toda a forma de agressão e violência” (Amoris Laetitia, 250). É preciso respeitar o modo que as pessoas determinam sua existência para viverem felizes. “O ódio vem do medo de deixar os outros viverem de forma diferente da sua” (Judith Butler).


*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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