terça-feira, 2 de outubro de 2018

Liturgia: quando a fé se torna política

Por Márcio Pimentel*

Uma leitura dos fatos e dos 'fakes' à Luz do Mistério Celebrado



Eleição após eleição a conversa é a mesma: “acho que não deveríamos misturar religião com política”. Por mais que se assevere com palavras pontifícias que a “política é a forma sublime da caridade”, o incômodo é notório quando, na assembleia dos cristãos e cristãs – a Missa – o homiliasta envereda pelo assunto. Bocas torcidas e olhos baixos são facilmente detectados. Na minha comunidade, reunidos no fim do semestre passado, a maioria compreendia a importância do assunto, mas o incômodo era tal que se sugeria mudar o nome: “não, política não... chamemos de cidadania... etc.”
Neste tempo altamente desolador, um momento no qual vários analistas de plantão sugerem como decisivo, acredito que não há como fugir do assunto: política. É um momento decisivo porque estamos de fato numa encruzilhada. O caminho que a nossa digital indicar no próximo dia 7 de outubro, pode condenar o país a um regime no qual a decrepitude humana definitivamente se instalará ou nos oportunizará o ‘respiro’ necessário para por as coisas no rumo, o que exigirá uma revisão séria e cuidadosa de nossas opções nos últimos vinte anos.
Começando já com este processo, gosto sempre de lembrar a mim mesmo de quem sou seguidor. Respondo, repetindo, que sou discípulo – ao menos me esforço – de um ser humano nascido e criado na periferia, portador de uma fé religiosa rotulada por seus contemporâneos como, no mínimo, heterodoxa e duvidosa. Um homem que se atrevia a desafiar a hermenêutica oficial, que não definia sua conduta em relação aos outros pelos estigmas que a sociedade lhes infligia. Um Mestre que apostava na inteligência de seu auditório; não só falava, mas fazia e, o mais importante, por tudo isso foi perseguido pela religião e pelo Estado, tornou-se réu de um julgamento ‘fake’, foi condenado sem provas, torturado e executado como criminoso hediondo. Do ponto de vista histórico, é este o caso. Sim, a teologia soube ler o sentido que o próprio ‘delinquente’ – assim o status quo o compreendia – atribuiu a todos estes fatos e os designou como oblação, entrega de si, solidariedade máxima, redenção, sacrifício. Mas não se pode negar a ‘loucura da cruz’ conforme registra o Apóstolo em sua teologia.
Ser discípulo de um ser humano deste porte e sobretudo reconhecê-lo como Verbo de Deus, exige assumirmos posturas coerentes com o seu Evangelho. Lendo a carta de Tiago nestes últimos domingos, isto deveria ficar muito claro. Nossa conduta é o indicador, não a causa, de que a salvação é operante em nós. A Liturgia existe para modelar tal ethos. Aquele “fazei isto em memória de mim” que ressoa na boca da Igreja como obediência ao mandato de Jesus tem por finalidade vincular seus discípulos e discípulas ao seu perfil humano, seu jeito de ser pessoa. Esse é  o significado mais preciso de santificação – porque, afirma a patrística e o magistério repete solenemente: “sua humanidade, unida a pessoa do Verbo, tornou-se instrumento (causal) de nossa salvação” (SC 5). Dito de outra forma, a Liturgia, em especial a Eucaristia, pela qual “atua a obra da nossa Salvação” (SC 2) é o espaço para que a práxis política de Jesus se faça carne em nós.
Falar em política, tradicionalmente, é dizer do exercício responsável do cuidado com o outro, de estabelecer o espaço para uma convivência feliz. Para Aristóteles, a política é a ciência da felicidade humana que se alcança por uma determinada maneira de viver, de exercer as relações. Dando um salto, podemos dizer que para Jesus, a política é exatamente a mesma coisa, ainda que seus pressupostos estejam estabelecidos numa perspectiva teológica: na sua relação com Deus a quem chama “Pai”. Para Jesus, os seres humanos são uma só família porque assim Deus os trata. A Liturgia pós-conciliar soube distinguir este detalhe da ‘teoria’ (=olhar) política de Jesus, quando criativamente formulou as novas orações eucarísticas: “Por vosso Filho, reunis em uma só família os homens e as mulheres...”; “com a vida e com a palavra anunciou ao mundo que sois Pai e cuidai de todos como filhos e filhas” (Oração Eucarística VI C e D).
Jesus arriscou tudo por anunciar este novo paradigma das relações humanas, que ele sintetiza no mandamento do amor. Jesus arriscou-se e foi morto porque amou. Amou politicamente. E em cada Eucaristia somos desafiados a nos associar a Ele e repetirmos sua experiência. Por isso, tantas vezes cantamos a fórmula belíssima da comunidade ecumênica Taizé: “Deus é amor, arrisquemos viver por amor.” A cruz de Jesus – hoje, como ontem - é simultaneamente a denúncia de que muitos de nós não queremos correr o risco da cruz. É também a proclamação de que o serviço, o despojamento de si e doação aos outros é a via necessária para a felicidade da família humana. Mas vejam, a cruz não é sinônimo tão somente de sofrimento, dor e morte. Ela foi transfigurada pela vida de Jesus. Não há cruz de Jesus sem ministério de Jesus. Sua condição de Messias-Servo não militarizado, reafirmada em nossas últimas duas celebrações dominicais, qualifica a cruz e  a transmutam em ‘signo’.
Quando vemos as coisas por este ângulo, é quase insuportável perceber e conviver com pessoas que, qual Pedro antes da Páscoa, confessam a fé em Jesus com os lábios, mas se atrevem a negar a fé de Jesus com as mãos. São os “satanases” agindo (no sentido original de ‘pedra de tropeço’). Eles, que moram ao lado, que trocam beijos e apertos de mão e aos quais tantas vezes chamamos amigos, amigas. O desafio que Jesus lança é de nos apartarmos de sua lógica, sim, porque não pensam como Deus, mas como seres humanos, pondo sua confiança na própria razão ou nos próprios sentimentos.  Entretanto, nos insta a oferecermos-lhes a oportunidade de – no convívio comunitário – reorientar a vida e opções ao Evangelho.
Projetando um pouco o nosso contexto na época de Jesus, atento ao risco de qualquer anacronismo, penso que Jesus, em seu tempo, foi desafiado tornar público o que seria equivalente ao nosso contemporâneo “#elenão”. E, como Preta Gil disse recentemente de si mesma, Ele o fez não só  num momento pontual de sua existência, mas na inteireza de seu ser e na integralidade de sua vida. Embora não haja registro de uma só linha escrita por ele (há até mesmo quem teorize sobre seu semi-analfabetismo), o que Jesus escreveu, o fez na carne: na sua, pelo culto existencial que prestou ao Pai durante toda sua trajetória na Palestina; na nossa própria, pelo culto ritual pelo qual nos vinculamos a ele, de modo que vivamos segundo seu Espírito, o mesmo que o animava. Para que não vivamos mais para nós mesmos, como nos lembra a oração da Igreja. Por essa razão, nós que comungamos de seu altar jamais poderíamos fazê-lo esquecendo o motivo fundacional deste gesto. E neste sentido, a oração depois da comunhão do XXIV Domingo do Tempo Comum nos revela sem rodeios: “que a ação da vossa Eucaristia penetre todo o nosso  ser, para que não sejamos movidos pelos nossos impulsos, mas pela graça do vosso sacramento.” A tradução portuguesa está muito boa, mas o original é mais incisivo ainda. Eu traduziria por: “não nos deixeis mover segundo nossa mentalidade ou pelo senso que temos das coisas”.
Dito isso, é preciso nos perguntar muito seriamente se a experiência eucarística de nossas assembleias dominicais estão nos conduzindo a esta maneira de enxergar a vida, de viver e conviver. Sinceramente, seja no convívio comunitário, seja na virtualidade das redes, o que se faz notar parece o exato oposto. Sem fechar os olhos aos que buscam com sinceridade uma vida de acordo com sua fé, é desconcertante a grosseria, o autoritarismo, a tosquice com a qual lemos e interpretamos o livro da vida. Os valores (?) a partir das quais nos relacionamos não parecem brotar do Evangelho de Jesus. Perguntemo-nos, nós que participamos da Ceia do Senhor tão frequentemente, se tem sido a graça do Sacramento – isto é, Jesus mesmo, seu modo de pensar, sentir e agir – a estabelecer nossa humanidade, nosso jeito de ser pessoa, nossa maneira de ser gente.
Nossa vocação segundo o Novo Testamento é sermos, nós mesmos, “Boa Notícia” uns para os outros, sobretudo para os mais pobres e esquecidos deste mundo. Mas não é isso que parece mover muitos membros da Igreja – e isso se aplica a qualquer fiel seja ele um membro da ‘diretoria’ ou não. Quando, como cristão, me dou conta de irmãos e irmãs desfilando acusações, passando a frente notícias sem o menor cabimento, fabricando verdades, manipulando registros para alcançar o fim que lhes parece mais cômodo (porque em geral lhes deixa bem e não mexe com seu status), minhas entranhas se contorcem. Sobretudo quando constato que um amigo, um irmão, um companheiro (que come o mesmo pão comigo) apoia alguém que defenda métodos clara e evidentemente contrários ao Evangelho (como a tortura, o armamento da população, o desrespeito à condição sexual e de classe do outro, etc) e ainda o faça sob o pretexto de se considerar uma ‘pessoa de bem’ e de desejar o ‘novo’. Irmãos e irmãs que – infelizmente – não se deram conta que a caridade que apregoam deve chegar na ‘ponta do dedo’ no próximo dia 7 de outubro, para usar a expressão de um colega e amigo liturgista Pe. Danilo César.
Penso que seja esta a hora de uma averiguação cuidadosa de nossa conduta. Para nossa tristeza e infelicidade de muitos que precisam de nosso testemunho amoroso, solícito e cheio de paz, talvez descubramos que não só estamos produzindo ou transmitindo abundantemente fake News, mas nós mesmos nos estamos tornando imagem e semelhança delas: ‘cristãos-fake.’ Mas não posso esquecer que muitas destas pessoas são amigos, irmãos, camaradas. Participam como iguais da mesa que ponho em nome daquele que sigo. Cabe-me então, apenas, aquilo que o Papa Francisco diz que deve mover o cristão: ao lado da fé e do amor, a esperança. Não o otimismo, pois este já se foi. A esperança no ser humano – todo e qualquer um – como um projeto de Deus, pois foi concebido como cópia e semelhança de seu Filho.

*Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especialista em Liturgia (PUC-SP) e Música Ritual (FACCAMP), licenciado em Música (UEMG), Mestrando em Teologia (FAJE-CAPES). Atualmente é membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia e da Rede Celebra de Animação Litúrgica. Assessora encontros sobre temas de Teologia e Liturgia.

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