sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Celibato consagrado: dom e desafio para Igreja

[domtotal]
Por Padre Rodrigo Ferreira da Costa, SDN

Se o celibato é dom, sua compulsoriedade para todo o clero pode ser um problema eclesial



A sexualidade há muito tem sido vista de forma neurótica. Quando não é tida como algo a ser expurgado, ou como uma energia avassaladora a ser contida, ela fica reduzida ao contato genital. Essa visão dicotômica e reducionista da sexualidade afeta também a Igreja que, às vezes, tem dificuldade em perceber as muitas nuances que a sexualidade possui e suas multifacetadas formas de se apresentar. Quiçá por trás do celibato compulsório não se esconda uma compreensão reducionista da sexualidade que impede uma discussão mais aberta acerca do mesmo.A sexualidade é porta de intersubjetividade, ela é caminho de santificação, seja na entrega de um para o outro na vida conjugal, ou na consagração total a Deus e à causa do Reino (cf. Mt 19,12) no celibato e na virgindade consagrados. Essa condição sexuada do ser humano deve nortear toda a reflexão acerca do celibato, do contrário cairemos facilmente num "moralismo desencarnado" que esconde a beleza e a maravilha deste dom.
O celibato consagrado só pode ser compreendido a partir do "dom do amor". Por isso o celibato não pode ser pensado como um prêmio dos fortes, nem como uma lei arbitrária da Igreja; mas como dom de Deus confiado a seres humanos frágeis, porém, com o coração transbordante de amor. “O celibato cristão é motivado pelo amor, e a vida celibatária é o resultado de uma opção adulta e livre por essa motivação mais profunda. Quem não quer amar Cristo e os membros do reino numa forma radical, não pode celebrar e viver a castidade cristã. Sem um amor fogoso, é difícil ser profeta da castidade nesse mundo” (Lourenço Kearns, 1999, p. 157).  Noutras palavras, o dom do celibato fundamente-se na vida de fé e não simplesmente na lei ou na moral da Igreja. Pois o celibato não é um dom para si mesmo, mas uma graça recebida de Deus em favor de outrem.
A oferta da sexualidade a Deus por meio do celibato ou da virgindade consagrados encontra-se fundamentos escriturísticos e está presente em toda tradição da Igreja. Porém, o celibato compulsório não se fundamenta na Bíblia nem tampouco nos primeiros séculos do cristianismo. Como reconhece São Paulo VI em sua carta encíclica sobre o Celibato Sacerdotal, “o Novo Testamento não exige o celibato dos ministros sagrados, mas propõe-no simplesmente como obediência livre a uma vocação especial ou a um carisma particular (cf. Mt 19, 11-12). Jesus não impôs esta condição ao escolher os doze, como também os apóstolos não a impuseram àqueles que iam colocando à frente das primeiras comunidades cristãs (cf. 1 Tm 3, 2-5; Tt 1, 5-6)” (Sacerdotalis caelibatus, 1967, nº 5).
A primeira declaração oficial do Magistério da Igreja acerca do celibato eclesiástico aparece no Concílio de Elvira (ano 300-303, Cânone 27), quando prescreve que “um bispo, como qualquer outro clérigo, apenas tenha consigo uma irmã ou uma virgem consagrada a Deus; ficou decidido que de modo algum tenha uma estranha consigo”. E acrescenta no cânone 33 “ficou plenamente decidido impor aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, como a todos os clérigos no exercício do ministério, a seguinte proibição: que se abstenham das suas esposas e não gerem filhos; quem, porém, o fizer deve ser afastado do estado clerical” (DZ, 118-119).
O Concílio Ecumênico Lateranense I (ano 1123), no Cânone 3, voltou a tocar neste tema reafirmando a proibição dos clérigos de conviverem “com concubinas ou com esposas e coabitarem com outras mulheres” (DZ, n. 711). Os documentos eclesiásticos mais recentes, após o Concílio Vaticano II, são unânimes em reafirmarem o celibato como uma obrigação aos padres e bispos. Como afirma o Catecismo da Igreja Católica publicado em 1992: “Todos os ministros ordenados na Igreja Latina, à exceção dos diáconos permanentes, são normalmente escolhidos entre os homens que vivem celibatários e têm vontade de guardar o celibato ‘por amor do Reino dos Céus’ (Mt 19,12) e do serviço dos homens” (cf. CIC, n. 1579).
Nota-se que mesmo gozando de uma “inspiração apostólica”, como afirma a Congregação para o Clero por ocasião do 40º aniversário da carta encíclica Sacerdotalis caelibatus do papa Paulo VI, há que se reconhecer o caráter histórico do celibato, ou seja, o celibato, mesmo sendo um dom para a Igreja não é dogma de fé. Como afirmou recentemente o papa Francisco: “o celibato não é um dogma de fé; é uma regra de vida que eu aprecio muito e acredito que seja um dom para a Igreja. Não sendo um dogma de fé, sempre temos a porta aberta”. Porém, acrescenta Francisco, “não concordo em permitir o celibato opcional”, e, recordou ainda uma frase de São Paulo VI que dizia preferir “dar a vida antes de mudar a lei do celibato” (Papa Francisco, Valência, 29 jan. 2019).
Ao lermos os documentos da Igreja Católica acerca do celibato percebemos que este acompanha a própria história da Igreja. Isso mostra a sua importância, pois séculos e séculos se passaram e o celibato permanece vivo e atraente a milhares de jovens e adultos do mundo todo. Por outro lado, essa associação estreita entre o sacerdócio e o celibato traz um grande desafio para a Igreja, uma vez que parece não valorizar a beleza da sexualidade na vida de seus ministros sagrados, bem como não se leva em conta as novas culturas nas quais o movimento cristão foi se inserindo, nem tampouco reconhece a necessidade pastoral de milhares de comunidades cristãs que são privadas da Sagrada Eucaristia aos domingos pela carência de sacerdotes.
Penso que para fazermos uma sincera discussão acerca do celibato precisamos aprofundar duas questões essenciais. A primeira é a de não ver o celibato consagrado como negação da sexualidade e da afetividade. Porque o chamado de Deus não é uma fantasia espiritual. O sacerdote não é um “anjo assexuado”. Deus nos chama na realidade humana, muitas vezes dramática, pois a nossa humanidade é a terra fértil donde nasce toda vocação. Respondemos ao chamado de Deus numa consagração total da nossa vida, não apesar da nossa condição humana, mas a partir dela. Neste sentido, não podemos falar de vocação e, muito menos do celibato consagrado, sem levar em conta a condição sexuada do ser humano. Como dizia Cirilo de Alexandria: “Por seus sacramentos, meu corpo é enxertado sobre o corpo de Cristo, Deus me atinge na minha corporeidade.”
A segunda questão importante é compreender o ministério ordenado como um chamado livre e gratuito de Deus, e sendo dom, ele não pode ficar “enclausurado” numa única forma de vida. Noutras palavras, o celibato obrigatório parece não respeitar a diversidade de dons do Espírito, já que aqueles que não têm o dom do celibato, também não podem servir à Igreja e ao Reino no ministério ordenado, como se o celibato constituísse a essência do ministério ordenado.
Assim sendo, o celibato consagrado poderia se desvencilhar da mera questão moral, pois a pessoa não é mais santa ou mais pura somente por viver celibatariamente, haja vista que a Igreja reconhece o matrimônio também como lugar de santificação, nem seria um “fardo pesado” para os ministros ordenados, considerando que o celibato assumido livremente como uma opção de vida seria uma das formas de servir a Deus e ao Reino respeitando a diversidade de carismas e ministérios que o Espírito suscita na Igreja.

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