sábado, 22 de agosto de 2020

Dualismo gnóstico: ainda um desafio para a fé cristã

A reverência e o respeito ao corpo são centrais no culto e no modo de vida católicos. Mas a cultura ocidental deteriorou-se sob muitos aspectos, assumindo uma forma de gnosticismo: uma ideologia da separação entre corpo e alma, dualista e contrária à Encarnação.

Dualismo gnóstico: ainda um desafio para a fé cristã 

 

Por  Pe. Tim McCauley 

Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere

 

Como uma erva daninha, a filosofia gnóstica viceja no solo estéril da nossa cultura pós-cristã [1]. Ela também exala um odor desagradável parecido com a fumaça de Satanás, que se infiltra pelas portas da Igreja, influenciando a nossa antropologia e comprometendo a integridade do nosso culto a Cristo na Eucaristia.

O catolicismo tem uma dimensão encarnada. A reverência e o respeito ao corpo são centrais em nosso culto e modo de vida. Infelizmente, a cultura ocidental deteriorou-se sob muitos aspectos, assumindo uma forma de gnosticismo: uma ideologia da separação entre corpo e alma, dualista e contrária à Encarnação. O gnosticismo é um falso espiritualismo que valoriza a alma ou a mente como o verdadeiro eu. Ele denigre o corpo, transformando-o em objeto, uma criação inferior, um estorvo para a alma, ou o trata como matéria bruta a ser manipulada à vontade.

Da perspectiva católica, os seres humanos não são almas que “possuem” corpos como se fossem objetos; pelo contrário, somos sujeitos com uma unidade entre corpo e alma. Pensar que “temos” um corpo pode nos levar a viver no mundo das ideias, desconectados do nosso corpo.  

A “identidade de gênero” é o exemplo mais óbvio da influência de conceitos gnósticos na nossa cultura. Algumas pessoas realmente acreditam que podem ter em sua mente uma “identidade de gênero” oposta ao sexo físico! É óbvio que essas pessoas sofrem e precisam de compaixão, mas a absurdidade da ideologia de gênero é um indício do quanto os seres humanos podemos nos dissociar da realidade do nosso corpo.

A tecnologia pode refletir e reforçar essas ideias gnósticas nocivas ao perpetuar a tendência de nos identificarmos de forma exagerada com a nossa mente. A internet possibilita a comunicação de longa distância em maior escala, o que leva à consequência involuntária de nos tirar de nosso ambiente imediato. Uma caminhada por um quarteirão qualquer numa cidade confirma essa observação. As pessoas estão tão absorvidas por seus smartphones, que ficam completamente alienadas do seu entorno e das outras pessoas. Muitas horas gastas com meios de comunicação em massa podem afetar profundamente a psique, criando o hábito de viver em um mundo exclusivamente mental e virtual, separado da realidade do corpo.  

Na Eucaristia, a nossa comunhão com Cristo encontra-se viciada pelo hábito de vivermos fechados em nossa mente, separados e dissociados do nosso corpo e do momento presente. Se não estamos presentes para nós em nosso corpo, como podemos estar presentes para o Corpo de Cristo na Eucaristia? Cristo está verdadeiramente presente, mas nós não. É como alguém que está tão ocupado e distraído, que cumprimenta outra pessoa sem olhá-la nos olhos. É um gesto de amizade vazio. Com paciência e persistência, Jesus fica à porta do nosso coração e bate, mas não há resposta porque ninguém está em casa. A pessoa está tão distraída e distante, que recebe o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo como se fosse um pedaço de pão, e não uma pessoa viva.

 

No Catecismo da Igreja Católica, lemos o seguinte na seção que aborda o esforço na vida de oração: “A dificuldade habitual da nossa oração é a distração” (n. 2729). Essa falta de atenção na oração é um aspecto comum e normal na experiência humana. No entanto, quando a distração se aprofunda a ponto de virar dissociação, ficamos à beira de uma experiência de “desencarnação” que limita severamente a nossa capacidade de rezar e estar em comunhão com Deus e os outros.

Creio que precisamos trazer à luz a nossa colaboração inconsciente com ideias gnósticas. Por medo e orgulho, muitas vezes preferimos viver em nossa mente, não em nosso corpo. A mente pode nos dar ilusão de poder e controle. O corpo, fraco e limitado, faz-nos lembrar de uma realidade que muitos consideram desagradável e repugnante, para dizer o mínimo: somos seres mortais, contingentes, que a todo momento dependem por completo de Outro para permanecer na existência.  

No entanto, é somente através do nosso corpo, deficiente, fraco e mortal, que adoramos verdadeiramente e entramos em comunhão com Cristo em seu Corpo e Sangue. Cristo assumiu a natureza humana para que, por meio dela, pudéssemos entrar em comunhão com a sua divindade. E Ele, sendo Deus, abraçou a sua natureza humana com mais intensidade que nós! Não teve vergonha da pobreza nem da fraqueza humanas. Contudo, muitas vezes nos envergonhamos da nossa humanidade e desejamos desesperadamente libertar-nos dos limites e sofrimentos da condição humana. Mas dessa forma não podemos ter uma comunhão verdadeiramente física com Cristo.

Jesus é o nosso modelo para a adoração encarnada. Em sua Encarnação, quando veio ao mundo no seio de Maria, Ele disse ao Pai: “Mas me formaste um corpo [...]. Eis que venho para fazer a tua vontade” (Hb 10, 5.7).

Cristo não apenas se alegrou em fazer-se pequeno e indefeso como criança, mas também aceitou sofrer no próprio corpo uma dor incompreensível durante a Paixão. Poderia ter escolhido separar-se do corpo por um êxtase, graça dada a alguns mártires que foram milagrosamente poupados da violência de seus sofrimentos. Mas Cristo recusou beber vinho misturado com mirra, um tipo de analgésico, porque preferiu passar pela agonia plena da Paixão, a fim de esvaziar o cálice do seu sofrimento até os últimos resíduos amargos.  

Acima de tudo, surpreende-nos que Cristo tenha ressuscitado, retomando um corpo humano. Ele não ressuscitou como puro espírito, abandonando o corpo físico. Ascendeu aos céus com o mesmo corpo. Está agora sentado à direita do Pai com este corpo. Com este mesmo corpo humano glorificado Ele vive e reina para todo o sempre. 

E nós somos curados por sua Encarnação, Morte e Ressurreição. Por meio da “associação” permanente e irrevogável a seu próprio corpo, Cristo regenera a dissociação que tantas vezes experimentamos no nosso. Por meio da sua existência e adoração encarnadas, Ele nos torna capazes de abraçar amorosamente a nossa natureza humana e adorá-lo de modo reverente com todo o nosso ser. Pela nossa participação plena, ativa, consciente e corpórea na Missa, podemos experimentar a Eucaristia de forma mais profunda como fonte e ápice da nossa fé. Assim, estaremos capacitados para anunciar o Evangelho em nossa cultura secular. Nas palavras de São Paulo, espalharemos o “bom odor” de Cristo, afastando o ar envenenado das falácias gnósticas.

Notas

  1. Este texto sublinha especialmente a importância da corporalidade para a fé cristã; mas vale a pena destacar que o gnosticismo é mais do que desprezo do corpo, e nem todo desprezo do corpo é, só por isso, uma forma “derivada” de gnosticismo. Na verdade, a desvalorização do corpo, a perda de seu sentido sacro etc., é um traço mais ou menos comum às culturas pagãs, tenham ou não elementos gnósticos (Nota da Equipe CNP).

 

Fonte - padrepauloricardo

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