terça-feira, 13 de outubro de 2020

Deus castiga?

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Por Luís Sérgio Solimeo

 

Para alguns altos prelados, Deus jamais castiga. Dizer que o flagelo da atual pandemia possa ser um castigo divino seria, para eles, uma coisa pagã.

Foi o que declarou Dom Mario Delpini, atual arcebispo de Milão: “Essas são teorias sobre Deus, que eu não sei de onde veem, e que não compartilho. A oração agora não pretende pedir a Deus que remova um castigo que Ele mesmo enviou; nós não temos um Deus irado que deve ser acalmado. Para mim, isso parece uma concepção muito pagã”.1

O Cardeal Antônio Marto, bispo de Leiria-Fátima, Portugal, se pronunciou do mesmo modo. 2 O Cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago, também parece dar pouco valor à oração durante a pandemia. 3

O Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap., Pregador da Casa Pontifícia desde 1980, também negou, em sermão na noite da Sexta-Feira Santa na Basílica de São Pedro que a atual pandemia pudesse ser um castigo de Deus:

“Se esses flagelos fossem castigos de Deus, seria inexplicável, porque eles atingem bons e maus; e porque, geralmente, os pobres sofrem as maiores consequências. São eles mais pecadores que outros?”.4
Cristo no Apocalipse. Notre Dame de Paris
Cristo no Apocalipse. Notre Dame de Paris

 

Não existem razões para uma punição?

Como podem esses eclesiásticos ter tanta certeza de que a pandemia de coronavírus não é uma manifestação da ira de Deus, pelos muitos pecados hodiernos? E certeza também de que não é um castigo ou um aviso de Deus?

Deus não estaria enviando uma mensagem à humanidade por meio do coronavírus, dizendo: “Eu repreendo e castigo aqueles que amo. Reanima, pois, o teu zelo e arrepende-te” (Apoc. 3,19).5

Se considerarmos apenas o aborto voluntário, por exemplo, não poderia a pandemia ser um castigo divino pelo sangue de milhões de vítimas inocentes, que sobe ao Céu clamando a Deus por justiça? 6

As declarações dos eclesiásticos acima mencionados resultam de uma falsa noção da misericórdia e justiça divinas, e estão em contradição com a doutrina católica e a Tradição.

Por isso parece oportuno relembrar alguns pontos doutrinários e responder a algumas objeções.

"Se a pandemia pode ser explicada cientificamente, não pode ser uma intervenção divina". 

Esta é a objeção usual à intervenção de Deus. Pois, embora a ciência positiva possa explicar a mecânica dos desastres naturais, ela não explica seu significado transcendente.

Excluir qualquer intenção divina nos eventos, seria negar que “todas as coisas, na medida em que participam da existência, devem igualmente estar sujeitas à providência divina”.7

Caso contrário, Deus teria feito a criação sem fim e propósito. Mas isso equivaleria a negar sua existência, pois a simples possibilidade de um Deus imperfeito contradiz a própria noção de Deus.

Deus não apenas criou todos os seres, mas os sustenta na existência e os guia para o fim para o qual os criou.  

 

Em outras palavras, toda a Criação está sob o poder do governo divino, e sujeita aos sábios desígnios de Deus. Como ensina São Tomás de Aquino:

“Assim como nada pode existir sem ser criado por Deus, assim também nada há que lhe possa escapar ao governo. [...] Por onde, como nada pode haver que não se ordene à bondade divina como fim, segundo do sobredito se colhe, impossível é a qualquer ser subtrair-se ao governo divino”.8

São Tomás explica que Deus pode usar os anjos ou até homens para intervir na História. Ele pode usar as forças naturais e as leis físicas, que Ele criou, e seus relacionamentos entre si.9

Deus normalmente se utiliza dessas causas secundárias para executar seus planos. Agindo assim Ele sempre direciona todas as coisas para o seu verdadeiro propósito, que é a sua glória.

Por exemplo, quando o Profeta Elias orou pedindo pela chuva em Israel, Deus fez com que muitas nuvens se juntassem e chovesse fortemente (1 Reis 18, 41-45).

Em outras ocasiões Ele suspendeu as leis da natureza, como, por exemplo, quando os israelitas cruzaram o Mar Vermelho (Ex 14, 16).

Portanto, ao analisar a atual catástrofe, o governo de Deus no mundo deve ser levado em consideração.

"Deus é a própria bondade, portanto, jamais castiga os homens".

Esta é outra objeção comum ao castigo divino que levada à sua consequência lógica e última, negaria o dogma da existência do inferno.

Deus é o Ser absolutamente perfeito e a causa de toda perfeição, que tem em Si todas as perfeições possíveis.10 Ele não é apenas infinitamente bom e misericordioso, mas também infinitamente justo.

Deus reserva a recompensa ou o castigo final e definitivo para a outra vida, como pode ser visto na parábola do trigo e do joio (Mt 13, 24-30).

Mas Ele também castiga nesta Terra. Esta verdade é formalmente encontrada nas Sagradas Escrituras.

Alguns exemplos são as pragas do Egito (Ex 7-8), o dilúvio (Gen. 6-8), a destruição de Sodoma e Gomorra (Gen. 19) e a destruição de Jerusalém (Mt 24, 1-2).

Saque de Roma. Século XVII
Saque de Roma. Século XVII

Deus julga e castiga os homens, e cada um individualmente.

São Paulo afirma que a “autoridade [terrena] está a serviço de Deus, [...] não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal” (Rom. 13, 4).

Além disso, afirma que a “autoridade [terrena] está a serviço de Deus, [...] não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal” (Rom. 13, 4).

Mas, nenhuma autoridade humana poderia ser um ministro ou agente da justiça divina, se o próprio Deus não aplicasse o castigo terrestre.

“Como a calamidade afetou tanto os bons quanto os maus, não pode ser um castigo divino — Deus jamais castigaria o bom”

Para tratar adequadamente desta objeção, cumpre primeiro relembrar alguns ensinamentos básicos de nossa Fé católica:

a – Deus é o Senhor da vida: a Ele devemos nossa existência; e, assim como Ele livremente nos deu vida, é livre para no-la tirar. Não há injustiça quando Ele o faz.

b – A nossa vida e a felicidade terrena não são fins em si mesmas. São o caminho, o meio para alcançarmos a vida eterna, que é nosso verdadeiro objetivo.

c – Deus pune o pecado coletivo coletivamente: quando o pecado se generaliza e é grandemente tolerado, ou cometido por indivíduos muito representativos, ele compromete toda a família, a cidade, a região, a nação, e mesmo épocas históricas.

Os bons e os maus sofrem: os primeiros, para se tornarem mais perfeitos; os segundos, como castigo por suas faltas e convite à conversão.

Vinda de Cristo em pompa e majestade. Ottheinrich-Bibel Bayerische Staatsbibliothek Cgm 8010
Vinda de Cristo em pompa e majestade.
Ottheinrich-Bibel Bayerische Staatsbibliothek Cgm 8010

 

Santo Agostinho explica o castigo coletivo

O grande Santo Agostinho, bispo de Hipona, Doutor e Padre da Igreja, viveu durante as invasões bárbaras que provocaram a queda do Império Romano do Ocidente.

Nesse período, os romanos pagãos culparam a Igreja pelo colapso do Império e da Civilização. Argumentavam eles que, se o Império não se tivesse tornado cristão, Júpiter e os outros deuses de Roma o teriam salvo da destruição.

Santo Agostinho respondeu no livro “A Cidade de Deus” explicando o motivo dos castigos coletivos. Seu raciocínio diz:

1 – Como as nações ão passam para a vida eterna, elas são recompensadas ou castigadas nesta vida pelo bem ou pelo mal que praticam. 11

2 – Quanto aos bons, o castigo purifica neles o amor a Deus. Pode até levá-los das tribulações desta vida para a vida eternamente feliz do Céu. 12

3 – Por outro lado, com frequência os bons são justamente castigados pelo egoísmo, falta de coragem e de zelo apostólico, que os impede de apontar para os maus o desacerto de seus caminhos.13

4 – Quanto aos maus, eles são castigados pela “divina Providência que costuma, com guerras, purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens”.14

Este é também o ensinamento de Santo Tomás, que afirma:

“Justiça e misericórdia aparecem no castigo dos justos neste mundo, uma vez que pelas aflições são limpos de falhas menores, e eles são mais elevados das afeições terrenas a Deus. Da mesma forma, São Gregório diz: ‘Os males que nos pressionam neste mundo nos forçam a ir a Deus’”.15

Nossa Senhora de Fátima: uma advertência profética e maternal

Juizo Final, detalhe, Fra Angelico. Gemadegalerie, Berlim
Juizo Final, detalhe, Fra Angelico. Gemadegalerie, Berlim

Em 1917, Maria Santíssima apareceu em Fátima para advertir que, se o mundo não se convertesse e não fizesse penitência, seria castigado:

“Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. [...] Espalhará [a Rússia] seus erros pelo mundo [...]; os bons serão martirizados, [...] várias nações serão aniquiladas”.16
Por todas as razões expostas acima, e de maneira particular pela mensagem de Nossa Senhora em Fátima, a prudência exige que consideremos com seriedade a possibilidade de que Deus esteja nos advertindo de nossas falhas e nos conclamando ao arrependimento.

Deus não quer a morte do pecador, mas a sua conversão.17

No entanto, se o mundo não atender ao chamado de conversão de Nossa Senhora, não ficaremos surpresos se tragédias ainda piores afligirem o mundo — a aniquilação de nações inteiras, por exemplo, como mencionado por Ela em Fátima.

Seja qual for o futuro que nos é reservado, devemos sempre lembrar que Nossa Senhora também predisse em Fátima a conversão definitiva da humanidade e sua vitória: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!”.

Notas:

* Este artigo encontra-se disponível em inglês no link: https://www.tfp.org/is-the-voice-of-god-resounding-in-the-present-pandemic/

1. Salvatore Cernuzio, “Delpini: Da Pagani Pensare a um Dio Che Manda Flagelli. A Milano Chiese Chiuse Mai‘“, La Stampa, 16 de março de 2020, https://www.lastampa.it/vatican-insider/it/2020/03/16/news/delpini-da-pagani-pensare-a -un-dio-che-manda-flagelli-a-milano-chiese-chiuse-mai-1.38600147 . (Nossa ênfase).

2. João Francisco Gomes, “‘Ignorância, Fanatismo ou Loucura.’ Cardeal António Marto Crítica Quem Diz Que Pandemia É Castigo de Deus”, Observador, 15 de abril de 2020, https://observador.pt/2020/04/15 / ignorancia-fanatismo-ou-loucura-cardeal-antonio-marto-critica-quem-diz-que-pandemia-e-castigo-de-deus /

3. Bernie Tafoya, “Cardinal Cupich Prepares For A First-Of-Its-Kind Easter Amid Coronavirus” WBBM780.radio.com, Apr. 9, 2020, https://wbbm780.radio.com/articles/cardinal-cupich-prepares-for-a-first-of-its-kind-easter.

4. Notícias do Vaticano, “O Papa celebra a paixão do Senhor, como o pregador papal reflete na pandemia de Covid-19”, Vatican News, 10 de abril de 2020, https://www.vaticannews.va/en/pope/news/2020 -04 / papa-francis-paixão-do-senhor-cantalamessa-sermon-coronavirus.html.

5. As citações bíblicas são da Biblia Ave Maria.

6. Adaptação do Salmo 78: 3, 9–10, Tracto da Missa dos Santos Inocentes, Mártires, (dia da festa 28 de dezembro) antigo missal romano latino.

7. São Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, q. 22, a. 2c.

8. Ibid., Q. 103, a. 5.

9. Ver Idem, Ibid., a. 6.

10. Assim, Santo Tomás diz: “Visto que Deus é a causa primeira e eficaz das coisas, as perfeições de todas as coisas devem preexistir em Deus de uma maneira mais eminente”. (I, q. 4 a. 2).

11. Ver A. Rascol, s.v. “Providence, S. Augustin”, em Vacant-Magenot-Amann, Dictionnaire de Théologie Catholique (Paris: Letouzey et Ané, 1936), vol. 13, col. 963.

12. Santo Agostinho, A Cidade de Deus, livro I, cap. IX. Tradução de J. Dias Pereira. 2.a Edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1996, p. 124.

13. Ibid.

14. Ibid., Cap. 1.

15. São Tomás, Summa Theologica, I, q. 21, a. 4.

16. Antonio Augusto Borelli Machado, As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia, Editora Vera Cruz Ltda., 35ª edição, São Paulo, 1993, pp. 46-47.

17. Terei eu prazer com a morte do malvado? – oráculo do Senhor Javé –. Não desejo eu, antes, que ele mude de proceder e viva?” Ezequiel 18:23.

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