Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
sexta-feira, 8 de julho de 2022
O Calvário e a Missa
Como a Cruz se tornou visível? Onde encontraremos o Calvário perpetuado?
Nós o encontraremos renovado, revivido e reapresentado… na Missa. O
Calvário é um só com a Missa e a Missa é uma só com o Calvário, pois em
ambos existe o mesmo Sacerdote e a mesma Vítima.
Por Fulton J. Sheen
Tradução: Equipe Christo Nihil Præponere
Existem certas coisas na vida belas demais para ser esquecidas. É o
caso do amor materno; por isso, ele é guardado carinhosamente numa foto.
O amor dos soldados que sacrificaram as próprias vidas pelo seu país
também é belo demais para ser esquecido; por isso, sua memória é
reverenciada no Memorial Day. Mas a maior bênção que já
aconteceu aqui na terra foi a visita do Filho de Deus em forma e hábitos
humanos. Sua vida, acima de todas as outras, é bela demais para ser
esquecida; por isso, nós guardamos com carinho a divindade de Suas
Palavras, na Sagrada Escritura, e a caridade de Seus Atos, em nossas
ações cotidianas. Infelizmente, isto é tudo que algumas almas recordam:
Suas Palavras e Seus Atos; por importantes que sejam, no entanto, estas não são a maior característica do Divino Salvador.
O mais sublime ato na história de Cristo foi Sua Morte. A morte é
sempre importante porque ela sela um destino. Todo homem morrendo é um
acontecimento. Toda cena de morte é um lugar sagrado. É por isso que a
grande literatura do passado, ao abordar as emoções que acompanham a
morte, nunca foi ultrapassada. De todas as mortes registradas pelo
homem, porém, nenhuma foi mais importante que a Morte de Cristo. Todas as pessoas que nasceram neste mundo, nasceram para viver; Nosso Senhor veio ao mundo para morrer.
A morte foi uma pedra de tropeço na vida de Sócrates, mas foi a coroa
da vida de Cristo. Ele mesmo nos disse que veio “para dar a sua vida em
resgate de muitos”; que ninguém tiraria a Sua vida, mas que Ele a daria
por Si mesmo.
Se foi a Morte, então, o supremo momento pelo qual Cristo viveu, ela
foi, consequentemente, a realidade mais importante que Ele desejou que
fosse lembrada. Ele não pediu que os homens registrassem Suas
Palavras numa Escritura; Ele não pediu que sua gentileza com os pobres
fosse gravada na história; mas Ele pediu que os homens fizessem memória
de Sua Morte. E, a fim de que esta memória não tivesse nenhuma
narrativa confusa por parte dos homens, Ele mesmo instituiu a maneira
correta de recordá-la.
O memorial foi instituído na noite anterior à Sua Morte, e desde
então ficou conhecido como “A Última Ceia”. Tomando o pão em Suas Mãos,
Ele disse: “Isto é o meu corpo, que será entregue por vós”, isto é,
entregue à morte. Depois, sobre o cálice de vinho, Ele disse: “Este é o
meu sangue, do novo testamento, que será derramado por muitos para
remissão dos pecados”. Desta forma, em um símbolo incruento de separar o
Sangue do Corpo, separando a consagração do Pão e do Vinho, Cristo se
comprometeu a morrer ante o olhar de Deus e dos homens, e representou
Sua Morte que aconteceria no dia seguinte, às três da tarde. Ele estava
oferecendo a Si mesmo como Vítima para ser imolada; e, para que os
homens nunca se esquecessem de que “não há maior amor do que dar a vida
por seus amigos”, Ele deixou à Igreja o divino mandamento: “Fazei isto
em memória de mim”.
No dia seguinte, Ele realizou em sua plenitude o que fora prefigurado
e indicado no dia anterior, ao ser crucificado entre dois ladrões e Seu
Sangue se esvair de Seu Corpo para a redenção do mundo. A Igreja que
Cristo fundou não só preservou a Palavra que Ele pronunciou e as
maravilhas que Ele operou; ela também O levou a sério quando Ele disse:
“Fazei isto em memória de mim”. E a ação por meio da qual nós revivemos Sua Morte na Cruz éo sacrifício da Missa, no qual nós celebramos como um memorial o que Ele fez na sua Última Ceia, para prefigurar a Sua Paixão.
Por essa razão, a Missa é para nós o ápice do culto cristão. Um
púlpito de onde se repetem as palavras de Nosso Senhor não nos une a
Ele; um coro onde se cantam doces emoções não nos aproxima mais de Sua
Cruz que de Suas Vestes. Um templo sem altar de sacrifício não existe
entre os povos primitivos, e não tem sentido entre os cristãos. Por
isso, na Igreja Católica, é o altar, e não o púlpito ou o coro
ou o órgão, o centro da liturgia, pois nele se revive o memorial de Sua
Paixão. Seu valor não depende de quem o diz ou de quem o ouve;
depende d’Aquele que é o único Sumo Sacerdote e Vítima, Jesus Cristo,
Nosso Senhor.
Com Ele nós estamos unidos, apesar do nosso nada; em certo sentido,
nós perdemos por um momento a nossa individualidade; nós unimos nosso
intelecto e nossa vontade, nosso coração e nossa alma, nosso corpo e
nosso sangue, tão intimamente com Cristo, que o Pai Celeste não vê mais a
nós, com nossas imperfeições, mas nos vê n’Ele, o Filho Amado no qual
Ele se compraz. A Missa é, por essa razão, o maior evento na história da humanidade;
o único Ato Santo que protege o mundo pecaminoso da ira de Deus, porque
sustenta a Cruz entre o céu e a terra, renovando assim o decisivo
momento em que nossa triste e trágica humanidade, de repente, começou
uma viagem rumo à plenitude da vida sobrenatural.
O importante nessa altura é que tenhamos a atitude mental adequada
para com a Missa, e lembremos este importante fato: o Sacrifício da Cruz
não é algo que aconteceu há dezenove séculos. Ele ainda está
acontecendo. Não é algo que aconteceu no passado, como a assinatura da Declaração de Independência; é um drama permanente sobre o qual as cortinas ainda não vieram abaixo. Não
deixemos que se pense que ele já aconteceu há muito tempo, e por isso
não nos diz respeito mais do que qualquer outra coisa no passado. O
Calvário pertence a todos os tempos e a todos os lugares.
É por isso que, quando Nosso Santíssimo Senhor subiu às alturas do
Calvário, Ele foi despojado de Suas vestes: Ele salvaria o mundo sem os
andrajos de um mundo passageiro. Suas vestes pertenciam ao tempo, porque
elas O localizavam e O identificavam como um habitante da Galileia.
Agora que Ele foi despojado delas e completamente despossuído das coisas
terrestres, Ele não mais pertence à Galileia, nem a uma província
romana, mas ao mundo. Ele se tornou o homem pobre universal do mundo,
pertencendo não a um povo, mas a todos os homens.
Para expressar melhor a universalidade da Redenção, a Cruz foi
levantada na encruzilhada da civilização, num ponto central entre as
três grandes culturas de Jerusalém, Roma e Atenas, com cujos nomes Ele
foi crucificado. A inscrição na Cruz foi assim afixada aos olhos dos
homens a fim de atrair os negligentes, apelar aos imprudentes, despertar
os mundanos. Foi o único fato inescapável ao qual as culturas e as
civilizações do Seu tempo não puderam resistir. É também o único fato
inescapável do nosso tempo ao qual não podemos resistir.
As personagens que estavam diante da Cruz são símbolos de todos que crucificam.
Nós estivemos lá, em nossos representantes. O que nós fazemos agora
para o Cristo Místico, eles fizeram em nosso nome para o Cristo
histórico. Se temos inveja dos bons, nós estivemos lá nos escribas e
fariseus. Se temos medo de perder alguma vantagem temporal por abraçar o
Amor e a Verdade Divinos, estivemos lá em Pilatos. Se confiamos nas
forças materiais e procuramos dominar através do mundo, ao invés de
dominar através do espírito, estivemos lá em Herodes. E assim continua a
história para os pecados típicos do mundo. Todos eles nos tornam cegos
para o fato de que Ele é Deus. Havia, portanto, uma espécie de
inevitabilidade na Crucifixão. Os homens que eram livres para pecar, também o são para crucificar.
Enquanto houver pecado no mundo, a Crucifixão é uma realidade. Como diz a poetisa:
O Filho do Homem avistei
A caminhar, de espinhos coroado. “Não chegara então ao fim”, perguntei, “Todo o sofrimento carregado?”
Voltou-me o olhar extraordinário:
“Ainda não hás então assimilado
Que toda alma é um Calvário
E é uma cruz todo pecado?” [i]
Nós estávamos lá, portanto, durante a Crucifixão. O drama já
foi completado quanto à visão de Cristo, mas ainda não foi desfraldado
para todos os homens, e todos os lugares, e todos os tempos. Se
o rolo de um filme, por exemplo, tivesse consciência de si mesmo,
saberia o drama do início ao fim, mas os espectadores no cinema não o
saberiam até que tivessem visto o filme se desenrolar na tela. Do mesmo
modo, Nosso Senhor na Cruz viu em Sua mente eterna todo o drama da
história, a história de cada alma individual, e de como, mais tarde,
cada uma reagiria a Sua Crucifixão; mas, embora Ele tenha visto tudo,
nós não poderíamos saber de que modo reagiríamos à Cruz até que fôssemos
apresentados na tela do tempo.
Nós não temos consciência de ter estado presentes no Calvário aquele dia, mas Ele estava consciente de nossa presença.
Hoje nós sabemos o papel que desempenhamos no palco do Calvário,
através do modo como vivemos e atuamos agora, no palco do século XX. Eis
por que o Calvário é atual; por que a Cruz é a Crise; por que em certo
sentido as chagas ainda estão abertas; por que a Dor ainda permanece
deificada; e por que o sangue, como estrelas cadentes, continua a
gotejar sobre as nossas almas. Não há como escapar da Cruz, nem mesmo
negando-a, como fizeram os fariseus; nem mesmo vendendo a Cristo, como
fez Judas; nem mesmo O crucificando, como fizeram os carrascos. Nós
todos a vemos, seja para a abraçarmos, como salvação, seja para dela nos
afastarmos, rumo à miséria.
Mas como ela se tornou visível? Onde encontraremos o Calvário
perpetuado? Nós encontraremos o Calvário renovado, revivido,
reapresentado, como vimos, na Missa. O Calvário é um só com a Missa e a Missa é uma só com o Calvário, pois em ambos existe o mesmo Sacerdote e a mesma Vítima.
As Sete Últimas Palavras são como as sete partes da Missa. E assim como
existem sete notas na música permitindo uma infinita variedade de
harmonias e combinações, assim também na Cruz existem sete notas
divinas, que o Cristo que morre fez soar durante os séculos, todas
combinando para formar a bela harmonia da redenção do mundo.
Cada palavra é uma parte da Missa. A Primeira Palavra, “Perdoai”, é o Confiteor; a Segunda Palavra, “Ainda hoje… no Paraíso”, é o Ofertório; a Terceira Palavra, “Eis a tua Mãe”, é o Sanctus;
a Quarta Palavra, “Por que me abandonaste?”, é a Consagração; a Quinta
Palavra, “Tenho sede”, é a Comunhão; a Sexta Palavra, “Está consumado”, é
o Ite, Missa est; a Sétima Palavra, “Pai, em tuas mãos”, o Último Evangelho.
Imagine, então, Cristo, o Sumo Sacerdote, deixando a sacristia do céu para o altar do Calvário.
Ele já vestiu a túnica da nossa natureza humana, o manípulo do nosso
sofrimento, a estola do sacerdócio, a casula da Cruz. O Calvário é Sua
catedral; a rocha do Calvário é a pedra do altar; o sol avermelhado é a
lâmpada do santuário; Maria e João são os altares laterais vivos; a
Hóstia é o Seu Corpo; o vinho é o Seu Sangue. Ele está de pé como
Sacerdote, mas prostrado como Vítima. Sua Missa está para começar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário