quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Arcebispo Aguer: A evangelização católica da sociedade argentina ‘fracassou’

Nos últimos 50 anos, a prática religiosa diminuiu notavelmente, os grupos evangélicos e pentecostais multiplicaram-se, a liturgia caiu em total desordem e a Igreja tornou-se ausente dos centros onde as expressões culturais se desenvolvem.  

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Arcebispo Héctor Aguer

  

 

A expressão "suporta" [sostiene] deu origem a inúmeras interpretações e a um debate entre juristas e inimigos da cláusula adotada em 1853. Naquela época era claro o que se entendia por estado católico; a história ofereceu exemplos abundantes. Naquela segunda metade do século XIX, o Papa Leão XIII havia atualizado a tradição secular, especialmente nas suas encíclicas Divinium illud munus e Immortale Dei. Os adversários da Igreja e da sua posição eram o liberalismo e o socialismo. Entre os argentinos, estas posições foram incorporadas na Maçonaria. O referido pontífice propôs os fundamentos da doutrina social católica num texto que se tornaria famoso, a encíclica Rerum novarum.

A Assembleia Constituinte Argentina levou em conta a realidade da sociedade argentina e não optou pela alternativa de um Estado laico ou ateu de acordo com a evolução das ideias da Revolução Francesa. A cláusula de “apoio” do Artigo 2 da Constituição Nacional não se reduz a um orçamento religioso, mas implica um reconhecimento do carácter público da religião católica, a fim de apoiá-la e encorajá-la. A opinião de Juan Bautista Alberdi a este respeito causa certa perplexidade.

O autor das Bases e Pontos de Partida para a Organização Política da República Argentina, que inspirou a Constituição, pensava que um Estado não pode apoiar [sostiene] uma religião [culto] que não seja a sua. Se bem entendi, esta expressão é de alguma forma equivalente à ideia do Estado católico. O catolicismo [La religión católica]  é a religião própria [culto] do estado argentino. É assim reconhecida a realidade social e cultural de um país onde a maior parte dos habitantes são baptizados na Igreja Católica, tendo sido reforçada pelos imigrantes espanhóis e sobretudo italianos. É verdade que nas décadas finais do século XIX a acção da Maçonaria (o inimigo secular da Igreja) teve uma enorme influência sobre os governos da época, alguns dos quais eram obedientes à Maçonaria, e a Igreja ficou praticamente confinada a os santuários e não teve uma influência real na cultura. Contudo, em diversas províncias do interior, a fé e a vida cristã tiveram ampla presença e desenvolvimento.

Para responder à pergunta “A Argentina é um país católico?” devemos julgar o estado da sociedade e a vida religiosa do povo. Padre Leonardo Castellani respondeu: “Sim, é confundido com católico”. Esta gíria misngo significa “não muito grave” [pouco serio]. O grande pensador e eminente escritor acertou com perspicácia aguçada. A condição que afeta o catolicismo argentino explica de alguma forma os seus altos e baixos históricos. Gostaria de acrescentar uma característica desta condição. Tradicionalmente, os católicos argentinos não vão à missa. O nosso país é um país sem Eucaristia. A análise feita hoje por qualquer estudioso da história religiosa argentina reconheceria dois pináculos liderados por leigos. Na década de 1880, um grupo de católicos na vida pública que ocupavam cargos políticos – especialmente deputados – lutou contra a Maçonaria nos campos da cultura e da educação: José Manuel Estrada, Pedro Goyena, Achával Rodríguez Pizarro e alguns outros defenderam a tradição nacional adotando uma religião católica posição que foi influenciada pelo liberalismo cristão de Charles de Montalembert. Eram leigos que antecipavam na sua experiência o que se tornaria a vocação leiga segundo o Concílio Vaticano II, 80 anos depois. Havia muito poucos bispos e eles não tiveram participação direta nos acontecimentos.

O segundo momento foi o fenômeno dos Cursos de Cultura Católica entre 1920 e 1945. É interessante notar que intelectuais e artistas que nada tinham a ver com o trabalho e a presença eclesial os acolheram. Toda uma geração se formou nos Cursos. Alguns padres acompanharam este outro movimento leigo.

Aplico a mesma questão ao tempo presente e concentro-me na tomada de posse do recém-eleito Presidente Javier Milei. Ele é ex-aluno de uma escola católica, onde se poderia pensar que recebeu alguma informação sobre a doutrina católica. É óbvio que ele não vive como católico, e a sua simpatia pelo Judaísmo é impressionante. Ele até mencionou uma vez o seu desejo de se converter ao Judaísmo. Olhando superficialmente seu caso, notamos que ele não faz o sinal da cruz corretamente e que ao entrar na Catedral de Buenos Aires fez uma genuflexão “agachada”. Devem ser resquícios de sua passagem pelo Colégio Cardeal Copello, em Buenos Aires.

O início do seu mandato presidencial respeitou sem entusiasmo a dimensão religiosa da época com um evento na Sé Catedral. Não foi o tradicional Te Deum, mas uma espécie de conferência inter-religiosa, com a participação do Judaísmo, da Ortodoxia Grega, do Islamismo, do Evangelicalismo e do Anglicanismo. A impressão causada pela cerimônia – se este nome vale a pena, já que não houve oração – é que a Argentina não é mais um país católico, nem mesmo mistongo. É verdade que o Arcebispo de Buenos Aires presidiu e leu um trecho do Evangelho. Era o final de Mateus 7, a comparação entre a casa construída sobre a rocha – invulnerável a todas as tempestades – e aquela construída sobre areia movediça e, portanto, frágil. O comentário do arcebispo primaz valorizou os alicerces que nos permitiram preservar a casa apesar de todas as vicissitudes que vivemos. É preciso fortalecer os alicerces: fraternidade, liberdade e memória. Invoquemos o Espírito Santo, disse ele, para nos ajudar a lançar os alicerces e assim construir a nossa casa: a Argentina.

Fiquei impressionado como o Presidente Milei ficou comovido com a participação do Rabino Shimon Axel Wahnish, com quem abraçou por muito tempo. Foi explicado que ele é um pai espiritual para ele. Aliás, como é possível que nenhum dos mais de 100 membros do episcopado argentino tenha abordado Javier Milei durante a campanha ou após a sua eleição? A Igreja o ignorou oficialmente. A responsabilidade por esta omissão recai sobre a liderança da Conferência Episcopal. É evidente que os executivos episcopais esperavam o triunfo de Milei. Sempre fora de foco!

Devo salientar aqui a influência do Concílio Vaticano II e a transformação da sociedade endossada pelo progressismo contra a ordem tradicional. Nos últimos 50 anos, a prática religiosa diminuiu notavelmente, os grupos evangélicos e pentecostais multiplicaram-se, a liturgia caiu em total desordem e a Igreja tornou-se ausente dos centros onde as expressões culturais se desenvolvem. Apesar da inquietação religiosa de muitos jovens, devemos dizer que a evangelização católica da sociedade fracassou.

Para concluir, volto ao significado da simpatia do novo presidente pelo Judaísmo. Milei participou de uma celebração tradicional da comunidade judaica, a festa de Chanucá, que aconteceu em uma praça do bairro de Palermo, em Buenos Aires. É um festival de luz; usando kipá, como é o ritual, ele acendeu uma vela no candelabro de nove braços. Ele destacou no palco que “a principal lição é que a luz prevalece sobre as trevas; depois de tantos anos a luz surgirá, e isso será uma revolução moral, porque vamos fazer isso em torno de valores.” Milei estava acompanhada por vários funcionários. O presidente não nomeou Deus, mas invocou “as forças do céu”, que garantiu “apoiarão a Argentina e Israel”. A sua participação ali foi mais ativa do que no evento inter-religioso da Catedral.

Retomo o que já mencionei: a indiferença dos bispos, que estavam ocupados com as suas divagações estratosféricas. Nenhum deles se aproximou do presidente, como era seu dever; isto constitui uma verdadeira vergonha que não deve ser esquecida.

+ Héctor Aguer
Arcebispo Emérito de La Plata

 

Fonte - lifesitenews

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